"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/11/2017

Jurisprudência (727)


Impugnação pauliana;
título executivo


1. O sumário de RL 31/5/2017 (640/10.0TTFUN-A.L1-4) é o seguinte:


Declarada procedente a excepção da impugnação pauliana e, em consequência os contratos de compra e venda e de cessão de créditos celebrados pela executada ineficazes em relação ao embargado, devendo as embargantes restituir ao património da executada os bens e os créditos que constituem objecto dos referidos negócios, não há, ainda assim, titulo executivo que permita a prossecução da execução contra as embargantes para pagamento integral dos créditos do exequente independentemente do âmbito e dos limites da penhora. 

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"O exequente propôs contra BBB, Lda e contra CCC, Lda, execução de decisão judicial de 5.11.14, desta Relação de Lisboa, que [...] julgou “procedente a excepção da impugnação pauliana e, em consequência” considerou “os contratos de compra e venda e de contrato de créditos [...] ineficazes em relação ao embargado, devendo por isso as embargantes BBB, Lda e CCC, Lda, restituir ao património da executada os bens e os créditos que constituem objecto dos referidos negócios” [...].


*

O Tribunal a quo proferiu então o seguinte despacho:

“Na presente execução, veio o Exequente [...] apresentar articulado superveniente, requerendo:

1. O prosseguimento da presente execução, em litisconsórcio passivo, contra:

a) “BBB, Lda”, … com sede no (…);

e

b) “CCC, Lda., … com sede no (…).

2. A execução directa do património das referidas executadas que respondem pela totalidade da quantia exequenda, incluindo juros, despesas e demais encargos com o processo, uma vez que o valor do património que receberam da devedora originária ultrapassa, em larga medida, a quantia exequenda ainda em dívida (nos termos do n.º 1 do artigo 616.º do CC).

Decidindo: [...]

[...] do acórdão exequendo, para o que ora interessa, consta: “Considerar os contratos de compra e venda e de contrato de créditos [...] ineficazes em relação ao embargado, devendo por via disso as Embargantes restituir ao património da Executada os bens e os créditos que constituem objecto dos referidos negócios”.

Donde se constata que a pretensão do requerente Exequente carece de título, na parte em que se requer o prosseguimento da execução contra as Embargadas [
sic] e pela totalidade ou parte da quantia exequenda.

O que inquestionavelmente se depreende do referido acórdão é que, tendo o mesmo recaído sobre o objecto do recurso da sentença que ordenou o levantamento da penhora sobre os bens penhorados às Embargantes, que foram objecto de embargos de terceiro (quer na parte em que os embargos foram julgados improcedentes, quer na parte em que fora objecto de recurso) [
sic, para toda a frase].

Na verdade, a penhora que deu causa aos embargos constitui o âmbito e os limites do litígio.

Por isso, o requerimento em apreço apenas merece deferimento na parte e que a execução deve prosseguir quanto aos bens penhorados, nomeadamente os pertencentes às embargantes, o que ora se determina. [...]

*

Inconformado, o exequente recorreu desta decisão, concluindo:

[...] 3. A sentença ou acórdão condenatório que julga procedente a excepção de impugnação pauliana constitui título executivo contra o terceiro adquirente. [...]

8. A decisão do TRL foi clara e inequívoca no sentido de julgar procedente a excepção de impugnação pauliana, fixando as respectivas consequências, designadamente a obrigação de os terceiros adquirentes restituírem ao património da devedora os bens e os créditos que constituem objecto dos negócios declarados ineficazes em relação ao exequente, aqui recorrente.

9. O acórdão do TRL que “julga procedente a excepção da impugnação pauliana e, em consequência, considerar os contratos de compra e venda e de cessão de créditos atrás referidos ineficazes em relação ao embargado, devendo por via disso as embargantes BBB Lda, e CCC, Lda, restituir ao património da executada os bens e os créditos que constituem objecto dos referidos negócios”, em conjugação com os demais elementos existentes no processo executivo pendente, é título suficiente e bastante para o prosseguimento da execução, em cumulação sucessiva, contra os terceiros adquirentes nele identificados.

10. Os terceiros adquirentes “BBB, Lda” e “CCC, Lda” respondem pela totalidade da quantia exequenda, uma vez que o valor do património que receberam da devedora originária ultrapassa, em larga medida, a quantia exequenda, que é no montante de € 37.008,48. [...]


*

FUNDAMENTAÇÃO

Cumpre apreciar neste recurso – considerando que o seu objecto é definido pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e exceptuando aquelas cuja decisão fique prejudicada pela decisão dada a outras, art.º 635/4, 608/2 e 663, todos do Código de Processo Civil – se pode a execução prosseguir contra outros executados e bens. [...]

De Direito

No âmbito do acórdão desta Relação de Lisboa aludido no relatório aos embargos de terceiro opôs o ora recorrente aos embargos que todos os bens pertenciam à executada, e excecionou também a impugnação pauliana.

E foi precisamente a pauliana que relevou para a decisão, na parte que importa aos autos, como o Tribunal ad quem fez constar na própria parte decisória. [...]

Qual o efeito da impugnação em relação ao credor e a terceiros? Rege quanto ao primeiro o art.º 616:

“1. Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei. [...]"


Considerou o Tribunal a quo que a pretensão do exequente carece de título na parte em que requer o prosseguimento da execução contra as embargadas [sic] e pela totalidade ou parte da quantia exequenda.

O ora recorrente insurge-se, entendendo que o acórdão e a sentença de 1ª instância constituem o título executivo.

Porém a conclusão do Tribunal a quo é incontornável. Na realidade apenas foi declarada a ineficácia dos contratos de compra e venda e do contrato de cessão de créditos em relação ao embargado, não resultando de aqui titulo executivo quanto às terceiras, que apenas ficaram obrigadas, então, a “restituir ao património da executada os bens e os créditos que constituem objecto dos referidos negócios”.


3. [Comentário]  a) Segundo se percebe do afirmado pelo tribunal de 1.ª instância e pela RL (apesar do que se depreende serem meros lapsos de escrita), entendeu-se que uma decisão que considerou “os contratos de compra e venda e de contrato de créditos [...] ineficazes em relação ao embargado, devendo por isso as embargantes BBB, Lda e CCC, Lda, restituir ao património da executada os bens e os créditos que constituem objecto dos referidos negócios” não constitui título executivo contra estas terceiras adquirentes.

b) A situação sobre a qual se pronunciou a 1.ª instância foi esta:

-- AAA propôs uma execução contra uma executada, na qual foram penhorados determinados bens;

-- BBB e CCC opuseram-se à penhora destes bens através de embargos de terceiro;

-- O embargado AAA opôs a impugnação pauliana contra a alienação a BBB e a CCC dos bens que se encontravam penhorados na execução;

-- A impugnação pauliana foi julgada procedente.

Com base nestes elementos, a 1.ª instância considerou que os bens que já tinham sido penhorados continuavam penhorados. Mais em concreto: parece que a 1.ª instância considerou que, como os bens que foram objecto da impugnação pauliana já se encontravam penhorados, não se justificava a intervenção na execução das terceiras adquirentes (e partes vencidas nos embargos de terceiro por elas deduzidos).

A solução faz sentido: dado que os bens já se encontravam penhorados na execução e, atendendo à improcedência dos embargos de terceiros deduzidos pelas terceiras adquirentes, não se vislumbra que sentido prático poderia ter a intervenção destas adquirentes na execução. Estas adquirentes encontravam-se vinculadas a aceitar a penhora de bens que já estavam penhorados. 

Menos feliz é a conclusão de que não há titulo executivo contra as terceiras adquirentes. Não se percebe como é que a afirmação que consta do acórdão exequendo -- "Considerar os contratos de compra e venda e de contrato de créditos atrás referidos ineficazes em relação ao embargado, devendo por via disso as Embargantes restituir ao património da Executada os bens e os créditos que constituem objecto dos referidos negócios” -- não é julgada suficiente para constituir um título executivo contra as terceiras adquirentes.

Lembre-se que o art. 616.º, n.º 1, CC estabelece que, em caso de procedência da impugnação pauliana, o credor tem direito à restituição dos bens e pode executá-los no património do obrigado à restituição, o que pressupõe que a procedência da impugnação pauliana é susceptível de constituir título executivo contra o terceiro adquirente. Aliás, o mesmo decorre do disposto no art. 818.º CC.

A circunstância de, no caso sub iudice, não se justificar a execução no património das terceiras adquirentes, atendendo a que os bens já se encontravam penhorados na execução, não é motivo para negar que haja título executivo contra essas adquirentes. Título há; o que não há é a necessidade de o accionar.

Tentando explicar: no caso concreto, as terceiras adquirentes eram, ao mesmo tempo, embargantes de terceiro vencidas, isto é, não tinham obtido êxito na oposição que deduziram contra a penhora de bens na execução. Este aspecto permite entender que as terceiras adquirentes não tinham de intervir na execução: o que podiam fazer contra a penhora já tinham feito e não tinham sido bem sucedidas. 
 
A situação seria diferente se -- como sucede normalmente -- os bens sobre os quais recaiu a impugnação pauliana ainda não se encontrassem penhorados numa execução pendente. Neste caso, haveria que concluir que uma decisão com o teor do primeiro acórdão da RL constituiria título executivo para a execução dos bens no património do terceiro adquirente. 
 
c) Apesar de a decisão do tribunal de 1.ª instância não ser, em termos práticos, contrária aos interesses do exequente (afinal os bens que suscitaram os embargos de terceiro pelas terceiras adquirentes continuaram penhorados), este exequente, ainda assim, decidiu interpor recurso da decisão do tribunal de 1.ª instância. 
 
No relatório do acórdão intui-se a razão da interposição do recurso. Aconteceu que, depois da interposição do recurso, a executada foi declarada insolvente, pelo que o tribunal notificou o exequente para declarar se mantinha interesse no recurso, tendo esta respondido "afirmativamente, alegando pretender obter título executivo contra terceiros adquirentes de bens da insolvente, aproveitando o mesmo processo, através da cumulação de execuções". 
 
Foi neste circunstancialismo (em que o próprio exequente parecia reconhecer que afinal não havia titulo executivo contra as terceiras adquirentes) que a RL se pronunciou. 
 
d) Apreciando o caso de acordo com o algo equivocado recurso do recorrente (que entendeu dever insistir na responsabilidade das embargantes e terceiras adquirentes pela obrigação exequenda), a RL considerou que, apesar do teor do anterior acórdão da mesma RL, não se formou título executivo contra essas embargantes e adquirentes. 
 
Pelos motivos já acima referidos, não se pode acompanhar esta opinião da RL. 
 
MTS