"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/11/2017

Jurisprudência (731)


Título executivo; cheque; 
documento quirógrafo


1. O sumário de STJ 4/5/2017 (440/13.5TBVLN-A.G1.S1) é o seguinte: 

I. O título executivo, podendo não gozar de suficiência, para a definição completa da obrigação exequenda, pode ser completado mediante alegação no requerimento executivo.

II. Os cheques, como meros quirógrafos, constituem títulos executivos, nos termos do art. 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil/1961, ainda que sem identificação do beneficiário, desde que o exequente seja também credor do executado na relação jurídica subjacente ou causal à emissão dos cheques.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O acórdão recorrido, revogando a decisão da 1.ª instância, julgou os embargos de executado procedentes, baseado no entendimento de que os cheques, como meros quirógrafos, e ao portador, não valem como títulos executivos.

A Recorrente, porém, insurgiu-se contra tal entendimento, alegando essencialmente que, estando os cheques nas relações imediatas, consubstanciam títulos executivos.

Desenhada, em termos genéricos, a controvérsia emergente dos autos, impõe-se tomar posição, nomeadamente se o cheque, como mero quirógrafo, e ao portador, mas mantido nas relações imediatas, constitui título executivo. [...]

Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam, designadamente, o fim e os limites da ação executiva.


As espécies de títulos executivos encontram-se taxativamente fixadas na lei, em particular no art. 46.º do CPC/1961.

Estipula-se nesse art. 46.º, n.º 1, alínea c):

“Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético (…) ”.

É, neste âmbito, que aos títulos de crédito, já como meros quirógrafos, tem sido atribuída a natureza de títulos executivos, desde que assinados pelo devedor e importem a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, num sentido de ampliação dos títulos executivos, encetado pela reforma processual de 1995/1996, mas que, entretanto, por razões de segurança jurídica e aumento exponencial das execuções, sofreu uma redução acentuada, com a entrada em vigor do atual CPC (art. 703.º, n.º 1, alínea c)), obrigando, mais vezes, à instauração prévia da ação declarativa ou do procedimento de injunção para a aposição da fórmula executória.

No requerimento executivo, o exequente pode ainda fazer uma exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo – art. 810.º, n.º 1, alínea e), do CPC/1961.

Esta possibilidade de alegação, introduzida através do DL n.º 38/2003, de 8 de março (art. 810.º, n.º 3, alínea b)), embora já admitida por alguma doutrina e jurisprudência, traduz o reconhecimento expresso de que o título executivo pode não gozar de suficiência, para a definição completa da obrigação exequenda, permitindo-se completá-lo mediante alegação no requerimento executivo. Embora o título executivo deva gozar de suficiência, passou, no entanto, a admitir-se positivamente que, em certas circunstâncias, possa ser completado no requerimento executivo, porventura por razões de economia processual.

No caso vertente, a Recorrente apresentou à execução três cheques que, tendo já perdido as características de títulos de crédito, como se reconhece, correspondem agora a meros quirógrafos, ou seja, a documentos particulares, assinados pelo devedor, supostamente importando a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias.

Os cheques preenchidos e assinados pelo Recorrido foram entregues à Recorrente, para pagamento do preço da construção de moradia pertencente ao Recorrido e a que a Recorrente contratualmente se obrigara. Tais documentos incorporam tanto a assinatura do devedor como a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária. Não obstante o cheque corresponder a uma ordem de pagamento dada pelo sacador ao banco a favor do seu legítimo portador, a circunstância de ter sido entregue para pagamento do preço da empreitada, como foi alegado no requerimento executivo e também provado, reflete a constituição ou reconhecimento da obrigação pecuniária. O contexto fornecido pelos próprios cheques, complementado pela alegação adicional sobre a relação jurídica subjacente, permite afirmar, com segurança, que os cheques dados à execução, como meros quirógrafos, correspondem aos documentos particulares previstos na alínea c) do n.º 1 do art. 46.º do CPC/1961 e, por isso, com a natureza de títulos executivos.

A circunstância de os cheques terem sido emitidos ao portador, sem identificação do seu beneficiário, mas mantidos em poder do outro sujeito da relação jurídica subjacente, não altera a sua natureza de títulos executivos. Com efeito, provada a relação creditícia emergente do contrato de empreitada e tendo os cheques sido entregues ao credor para pagamento do preço da empreitada da construção da moradia, encontra-se constituída ou reconhecida a obrigação pecuniária, não se justificando, no contexto descrito, a identificação do beneficiário dos cheques. Os cheques, ao terem sido entregues pelo Recorrido à Recorrente, com a intenção de pagar o preço da empreitada, e vindo a última a exigir coercivamente o cumprimento, estiveram sempre no âmbito das relações imediatas, com o beneficiário identificado, nomeadamente pelo contrato de empreitada, podendo até ser redundante a identificação do beneficiário nos cheques.

A partir do momento em que a lei passou a permitir completar a insuficiência do título executivo, não pode vir a argumentar-se, de forma válida, com a sua insuficiência, por omissão da identificação do beneficiário do cheque, quando através do requerimento executivo se identifica o exequente como credor, nomeadamente no âmbito da relação causal originária da emissão dos cheques.

Efetivamente, a Recorrente, tendo direito ao preço da empreitada, que esteve na origem da emissão e entrega dos cheques, que, como meros quirógrafos, foram apresentados à execução, sempre tem a qualidade de credora relativamente ao Recorrido.

Podendo as partes discutir, no processo de execução, a relação jurídica subjacente, nomeadamente o contrato de empreitada, salvaguardando o princípio do contraditório, seria de uma exigência manifestamente desproporcionada e incompreensível, à luz dos princípios jurídicos aplicáveis, obrigar a Recorrente, a utilizar o procedimento declarativo para a obtenção do título executivo.

Conclui-se, assim, que os cheques, como meros quirógrafos, constituem títulos executivos, nos termos do art. 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC/1961, ainda que sem identificação do beneficiário, desde que o exequente seja também credor do executado na relação jurídica subjacente ou causal à emissão dos cheques.

O sentido normativo evidenciado foi afirmado, nomeadamente, nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de maio de 2014 (780/13.3TBEPS.C1.S1), 15 de outubro de 2013 (1138/11.4TBBCL-A.S1), 21 de outubro de 2010 (172/08.6TBGRD-A.L1) e 27 de novembro de 2007 (07B3685), todos acessíveis em www.dgsi.pt."


3. O acórdão tem um voto de vencida, no qual se diz nomeadamente o seguinte:

"Discute-se nos autos se, à luz do artigo 46º, nº 1, al. c) do Código de Processo civil, na redacção do decreto-Lei nº 226/2008, de 20 de Novembro, aqui aplicável, a exequibilidade do cheque, como quirógrafo da obrigação, se estende a todos os cheques, incluindo os emitidos ao portador, ou se fica limitada aos cheques nominativos por só estes conterem a indicação do respectivo beneficiário.

O texto da lei aponta no sentido de restringir a força executiva aos cheques nominativos ao exigir expressamente para a exequibilidade dos documentos particulares, assinados pelo devedor, que estes importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias.

Tal exigência, extensiva aos documentos referidos na al. b) do nº 1 do citado artigo 46º, apresenta-se como um «requisito de fundo» necessário para ser conferida força executiva aos documentos particulares assinados pelo devedor, nos quais se inclui o cheque que perdeu as características de título cambiário.

Não obstante o alargamento significativo do leque de documentos susceptíveis valer como título executivo resultante da reforma de 1995/1996, introduzida pelo DL nº 329-A/95, de 12/12, de cujo diploma preambular se extrai a intenção declarada de contribuir significativamente para a diminuição do número das acções declaratórias de condenação propostas, evitando-se a desnecessária propositura de acções tendentes a reconhecer um direito do credor sobre o qual não recai verdadeira controvérsia», o legislador optou, em todo o caso, por restringir a força executiva dos documentos particulares, assinados pelo devedor, aos «que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias», isto é, aos que sejam fonte de um direito de crédito ou que neles se reconheça uma obrigação já constituída.

É certo que na reforma de 2013 tal exigência foi abandonada (artigo 703º nº 1 al. c)). Porém, também é certo que o legislador reduziu significativamente o elenco dos títulos executivos com finalidade de travar "o aumento exponencial de execuções", mantendo apenas, no que ora releva, a exequibilidade dos títulos de crédito quer enquanto títulos cambiários, quer como meros quirógrafos da obrigação, sem qualquer restrição ou exigência suplementar.

Neste contexto e com apelo aos factores interpretativos consignados no artigo 9º do Código Civil, atendendo, nomeadamente, ao texto legal (elemento gramatical) à finalidade e às circunstâncias em que os regimes em análise foram elaborados (elementos teleológico e histórico), consideramos que sem a indicação do beneficiário da ordem dirigida a um estabelecimento bancário para pagamento da quantia nele inscrita pelo seu emitente (devedor), o cheque, enquanto mero quirógrafo da obrigação, não envolve reconhecimento de dívida perante o seu portador com o sentido que decorre do artigo 458º do Código Civil, que aqui não deixar convocar-se.

Do cheque ao portador (artigo 5º § 5 da Lei Uniforme) não pode extrair-se o reconhecimento da existência de uma dívida anterior a favor de quem o venha a apresentar à execução, que poderá ser ou não quem interveio na relação fonte da obrigação de pagamento. Nem poderá o credor beneficiar da presunção de causa estabelecida no artigo 458º do Código Civil, presunção que conduz à inversão do ónus da prova relativamente à existência de uma relação jurídica subjacente à emissão do documento assinado pelo devedor, dispensando o credor de a demonstrar (mas não de a alegar) e fazendo recair sobre o devedor o ónus de demonstrar o contrário.

E a circunstância de o seu portador ser sujeito da relação jurídica subjacente, e de, por efeito da reforma de 2003 (DL nº 38/2003, de 8 de Março), o artigo 810º nº 3 al. b) ter passado a consagrar a possibilidade de o requerimento executivo conter uma exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido quando não constem do título executivo, não afasta tal entendimento, porquanto, em simultâneo, se manteve na lei a exigência de os documentos particulares, assinados pelo devedor, importarem «constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias» para valerem como títulos executivos.

Consequentemente, não se fundando a execução no regime cambiário especifico do cheque, a falta de menção no mesmo do respectivo beneficiário, concretamente o exequente, quando apresentado como mero documento particular assinado pelo devedor - quirógrafo - , impede que se lhe reconheça a natureza de título executivo por do mesmo não constar o requisito de constituição ou reconhecimento de uma dívida perante outrem exigido pelo referido artigo 46º nº 1 al. c) do Código de Processo Civil."


4. [Comentário] A posição que fez vencimento no acórdão merece acolhimento. Repare-se que a execução decorria entre o credor e o devedor da relação subjacente à emissão do cheque e que, tendo o cheque sido emitido ao portador, bastaria ao exequente preenchê-lo para o tornar título executivo de acordo com a exigência colocada no voto de vencida.

MTS