"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/11/2017

Jurisprudência (735)



Competência internacional; Reg. 44/2001;
lugar de cumprimento da obrigação


1. O sumário de RC 23/5/2017 (1012/16.8 T8CTB.C1) é o seguinte: 

I – A competência afere-se, conforme entendimento jurisprudencial constante, face ao objecto da ação, tal como o autor o configura na petição inicial, sendo irrelevantes as alterações posteriores.

II
Tem sido comummente entendido que motivado pela necessidade de garantir a segurança jurídica em matéria de competência internacional nos tipos de contratos mais comuns e, nessa medida, previsivelmente na origem do maior número de litígios a dirimir, o legislador comunitário consagrou, no caso dos contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, um conceito autónomo de lugar do cumprimento das obrigações deles emergentes, fazendo relevar o lugar do cumprimento da obrigação de entrega ou do lugar onde os serviços foram ou deveriam ser prestados, a este critério puramente factual - com dispensa, portanto, da intervenção do direito de conflitos do estado do foro - havendo de se atender mesmo que o pedido formulado pelo autor seja o de condenação do pagamento do preço fundado no incumprimento dessas obrigações.

III
Verdadeira definição autónoma ou a consagração da regra de que na venda de bens só releva o lugar de cumprimento da obrigação de entrega e na prestação de serviços o lugar do cumprimento da obrigação do prestador de serviços, a conclusão inevitável é a da irrelevância, para efeitos de determinação da competência do tribunal, do lugar de cumprimento da obrigação de pagamento do preço dos bens ou dos serviços, mesmo que o pedido se fundamente nesta obrigação.

IV - Sendo indiscutido nos autos que o lugar da entrega dos bens é (foi) a Alemanha, os tribunais portugueses são, conforme foi correctamente entendido, incompetentes em razão da nacionalidade para o julgamento da causa, excepção dilatória de conhecimento oficioso conducente à absolvição da ré da instância nos termos das disposições conjugadas dos artigos 96.º, al. a), 99.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. a), 578.º e 278.º, n.º 1, al. a), todos do Código de Processo Civil.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte: 

"À decisão interessam os factos relatados [...], cumprindo fazer notar que, tal como a apelante aceita expressamente, ao caso é aplicável o Regulamento CE 44/2001, de 22 de Dezembro, relativo à competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial, uma vez que quer Portugal, país onde a autora se encontra sediada, quer a Alemanha, país do domicílio da ré, são Estados-Membros. Indiscutida ainda é a prevalência daquela legislação sobre as regras de direito interno tal como, de resto, consta expressamente consagrado no art.º 59.º do CPC, e resultava já do disposto nos art.ºs 8.º, n.º 4 da CRP e 249.º do Tratado de Roma. [...]

Mostra-se ainda assente nos autos sem controvérsia a qualificação do acordo celebrado entre autora e ré como de compra e venda/fornecimento, donde não ser aplicável a disposição geral do art.º 2.º do Regulamento, mas antes o seu art.º 5.º, em cuja interpretação se centra a desavença da apelante com o decidido.

Estatui o convocado preceito, no seu n.º 1, que “Uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro:

a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar do cumprimento da obrigação em questão será: no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues; no caso de prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;

c) se não se aplicar a al. b) será aplicável a al. a)”.

Face ao assim preceituado, tem sido comummente entendido, entendimento expresso na decisão apelada, que motivado pela necessidade de garantir a segurança jurídica em matéria de competência internacional nos tipos de contratos mais comuns e, nessa medida, previsivelmente na origem do maior número de litígios a dirimir, o legislador comunitário consagrou, no caso dos contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, um conceito autónomo de lugar do cumprimento das obrigações deles emergentes, fazendo relevar o lugar do cumprimento da obrigação de entrega ou do lugar onde os serviços foram ou deveriam ser prestados, a este critério puramente factual -com dispensa, portanto, da intervenção do direito de conflitos do estado do foro- havendo de se atender mesmo que o pedido formulado pelo autor seja o de condenação do pagamento do preço fundado no incumprimento dessas obrigações. Neste sentido, consignou-se no acórdão do STJ de 3/3/2005, processo 05B316, acessível em www.dgsi.pt “(…) Releva a alínea b) do referido n.°1 do artigo 5.°, segundo o qual, para efeito da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será, no caso de venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues.

É um normativo inspirado, por um lado, pela ideia divulgada pela doutrina nacional e estrangeira de que a prestação característica do contrato de compra e venda é a do vendedor, por assumir natureza não monetária (…).

Visou-se o estabelecimento de um conceito autónomo de lugar de cumprimento da obrigação nos mais frequentes contratos, que são o de compra e venda e o de prestação de serviços, por via de um critério factual, com vista a atenuar os inconvenientes do recurso às regras de direito internacional privado do Estado do foro.

Decorrentemente, é fundado o entendimento de que a alínea b) do n.° 1 do artigo 5° abrange qualquer obrigação emergente do contrato de compra e venda, designadamente a obrigação de pagamento da contrapartida pecuniária do contrato e não apenas a de entrega da coisa que constitui o seu objecto mediato

Assim o “lugar do cumprimento da obrigação” é o local efectivo da entrega dos bens, sendo a jurisdição desse local (país Estado-Membro) a competente internacionalmente para apreciar o alegado incumprimento do preço”.

Verdadeira definição autónoma ou a consagração da regra de que na venda de bens só releva o lugar de cumprimento da obrigação de entrega e na prestação de serviços o lugar do cumprimento da obrigação do prestador de serviços, a conclusão inevitável é a da irrelevância, para efeitos de determinação da competência do tribunal, do lugar de cumprimento da obrigação de pagamento do preço dos bens ou dos serviços, mesmo que o pedido se fundamente nesta obrigação (assim, Lima Pinheiro, in "Direito Internacional Privado" vol. III, págs. 83 e 84).

No caso vertente está em causa a obrigação do pagamento do preço pela ré e que, nos termos alegados pela autora, deveria ter sido satisfeita na data do vencimento das facturas mediante transferência bancária a efectuar para conta sediada em Portugal. Daqui resultaria, em seu entender, a existência de acordo das partes no sentido do lugar do pagamento se situar em território português, excepção à regra vinda de enunciar, a deferir a competência internacional para o julgamento da causa aos tribunais portugueses.

Não cremos, porém, em face ao que se deixou já referido, que lhe assista razão.

Assim, e antes de mais, tal como se defendeu no acórdão desta Relação e secção antes citado e também no acórdão do TRG de 21/2/2008, processo n.º 2745/07-1, ambos acessíveis no identificado sítio, afigura-se que a “convenção em contrário” relevante para efeitos de afastamento da regra da al. b) é apenas a que decorre da celebração do pacto atributivo de jurisdição a que se reporta o art.º 23.º, não valendo como tal o acordo sobre a forma e local do pagamento do preço; depois, e decisivamente, já se disse que o critério do cumprimento da obrigação em questão -ainda quando, como é o caso, esteja em causa o pagamento do preço- remete para o lugar da entrega dos bens, sendo portanto irrelevante para este efeito o local onde o pagamento devia ser efectuado, mesmo que as partes nele tenham acordado (cf., neste mesmo sentido, aresto do STJ de 5/4/2016, processo n.º 27630/13.8 YIPRT-A.G1.S1, também em www.dgsi.pt, entendimento que se afigura não ter sido contrariado pela Relação do Porto, no acórdão convocado pela apelante, no qual estava em causa essencialmente a aplicação do art.º 24.º, consagrador da denominada competência convencional tácita, e também a interpretação da al. a) do art.º 5.º, uma vez que a relação contratual estabelecida entre as partes não configurava nenhum dos tipos contratuais contemplados na previsão da al. b) do preceito).

Deste modo, sendo indiscutido nos autos que o lugar da entrega dos bens é (foi) a Alemanha, os tribunais portugueses são, conforme foi correctamente entendido, incompetentes em razão da nacionalidade para o julgamento da causa, excepção dilatória de conhecimento oficioso conducente à absolvição da ré da instância nos termos das disposições conjugadas dos artigos 96.º, al. a), 99.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. a), 578.º e 278.º, n.º 1, al. a), todos do Código de Processo Civil. Tal qual foi decidido, que assim merece confirmação."


3. [Comentário] Deixa-se apenas uma chamada de atenção: ao contrário do que se dá a entender no acórdão, o critério do domicílio do demandado (art. 2.º, n.º 1, Reg. 44/2001; art. 4.º, n.º 1, Reg. 1215/2012) é sempre aplicável. Os critérios especiais -- como é o caso daquele que se encontra estabelecido no art. 5.º, n.º 1, Reg. 44/2001 ou no art. 7.º, n.º 1, Reg. 1215/2012 -- são sempre alternativos em relação àquele critério geral: é o que resulta do disposto no art. 3.º, n.º 1, Reg. 44/2001 ou no art. 5.º, n.º 1, Reg. 1215/2012.

MTS