"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/11/2017

Jurisprudência (739)


Prova documental;
documento essencial; consequências da falta


1. O sumário de RE 8/6/2017 (702/14.4TBCTX.E1) é o seguinte: 

I - Um documento que prove um elemento da causa de pedir não é um documento essencial no sentido do art.º 590.º Cód. Proc. Civil.

II - A fase dos articulados não finda enquanto todos os réus não estiverem citados.

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:


"O A. (…) intentou a presente acção contra (…), (…) e (…), pedindo a sua condenação no pagamento de metade das despesas que realizou com a Quinta de São (…), prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o nº (…)/19870421, da freguesia do Cartaxo e inscrito na matriz rústica sob o artigo (…) da secção S e na matriz urbana, sob os artigos (…), (…) e (…), do qual o A. é proprietário de metade e as RR. proprietárias da outra metade, sob pena de enriquecimento sem causa.
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Notificado para juntar suporte documental onde conste que as RR. são titulares inscritas relativamente ao imóvel, o A. juntou nova descrição predial do imóvel na qual consta o A. como titular inscrito na proporção de 1/3. Para além do A., constam como titulares inscritos na proporção de 1/3 (…), e 1/3 (…), casado com (…), no regime da separação de bens. 

Novamente notificado, o A. não juntou suporte documental relativo à titularidade das RR. como proprietárias do imóvel.
*
Foi, depois, proferida decisão em que, considerando-se verificada uma excepção dilatória inominada (falta de documento essencial à acção), absolveu as RR. da instância.
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Desta sentença recorre o A. [...]
*
O despacho recorrido considerou o seguinte:

«O presente processo visa responsabilizar as RR. pelo pagamento de metade das despesas de manutenção do imóvel, suportadas apenas pelo A., na qualidade de comproprietário de metade do prédio, sendo as RR. proprietárias da outra metade. 

«Não dispondo o A. de suporte documental relativo à titularidade do prédio que afirma, e resultado dos documentos juntos que a titularidade do mesmo é diversa da invocada, os autos não podem prosseguir os seus termos, pois a prova do facto invocado não pode ser suprida por outro meio. 

«A junção da certidão de registo predial na qual conste que as RR. são as titulares inscritas relativamente ao imóvel, é um documento essencial para o prosseguimento da acção e para a apreciação do mérito da causa, pois constitui um pressuposto essencial de que depende esse prosseguimento».
 *
 O art.º 590.º, n.º 2, al. c), Cód. Proc. Civil, manda que, findos os articulados, o juiz profira, se for caso disso, despacho destinado a determinar a «junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador». A função do documento é possibilitar a decisão da causa sem se chegar à fase do julgamento.

O n.º 3 acrescenta que o juiz pode ainda convidar as partes para juntar um documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.

Caso típico é o das acções de estado, dadas as regras estritas do Código de Registo Civil no que à prova respeita. Por um lado, «os factos cujo registo é obrigatório só podem ser invocados depois de registados» (art.º 2.º); por outro, a prova resultante do registo civil quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil correspondente não pode ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas acções de Estado e nas acções de registo» (art.º 3.º, n.º 1). São estes, aliás, os primeiros exemplos que os autores dão sobre este assunto (cfr. Antunes Varela et alli, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 263; e, por mais recente, Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013, p. 163). Nestes casos existe uma ligação inextricável entre o documento e o próprio objecto da acção. Como escreve o autor citado em último lugar, o «documento é essencial à prova de um facto que constitua situação jurídica (necessariamente) precedente daquela que a parte quer fazer valer» (ob. et loc. cit.[...])

Mas noutros casos tal ligação não existe, pelo menos de forma tão íntima. Referimo-nos, por exemplo, aos casos em que, simplesmente, a lei exige o documento; tais serão os casos de revisão de sentença estrangeira (art.º 981.º) ou de acção de anulação de deliberação social (art.º 59.º, n.º 4, Cód. Soc. Comerciais).

Mas o documento pode ainda provar um facto constitutivo da situação jurídica alegada e neste caso ele não é um documento essencial mas um mero meio de prova cuja apresentação ou não terá influência no desfecho da acção.

No nosso caso, entendemos que apenas se verifica a terceira situação.

Não estamos perante uma acção real stricto sensu; um dos pressupostos da presente acção é, sem dúvida, a co-titularidade de um direito de propriedade mas o verdadeiro fundamento da acção é a despesa que o A. alega que teve com o prédio. 

E aqui, das duas uma: ou as partes são comproprietárias e numa dada proporção ou o não são e será com base num documento do Registo Predial que tal será definido (sem pôr em crise que o registo predial é apenas fonte de uma presunção, nos termos do respectivo art.º 7.º, e que os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes, nos termos do art.º 4.º, n.º 1).

E daqui, com este documento, não se avança mais para o objecto da acção que é o da repartição das despesas que o A. alega ter tido; queremos dizer, não é a falta ou a existência da certidão do Registo Predial que vai demonstrar que o A. tem razão no seu pedido.

Pode-se provar um pressuposto da acção (se calhar, com mais rigor, a legitimidade material das partes) mas não se prova mais do que isso quando há mais a provar.

Por estes motivos, entendemos que a certidão do Registo Predial não é um dos documentos a que se refere o art.º 590.º."

3. [Comentário] O decidido pela RE merece acolhimento, embora por uma razão não aduzida no acórdão: é que, como pode ser depreendido do disposto nos art. 4.º, n.º 1 ("Os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros") e 5.º, n.º 1, CRegP ("Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo"), a prova da compropriedade entre os próprios comproprietários não depende da apresentação de uma certidão predial. Logo, numa acção que corre entre os próprios comproprietários, a certidão predial nunca pode ser um documento essencial nos termos do disposto no art. 590.º, n.º 3, CPC para provar a compropriedade.

O tribunal de 1.ª instância não andou bem ao absolver as rés da instância com base na falta de apresentação da certidão predial pelo autor. O documento essencial a que se refere o art. 590.º, n.º 3, CPC é um documento essencial para a prova de um pressuposto processual ou de um elemento do mérito da causa. Logo, a falta do documento essencial implica a falta da prova desse pressuposto ou desse elemento, pelo que o que o tribunal pode fazer é retirar as consequências, não da falta do documento, mas da falta do pressuposto ou do elemento.

MTS