"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/11/2017

Jurisprudência (734)


Inquirição de testemunhas; deficiência da gravação; arguição
excepção de prescrição; dever de cooperação do tribunal; omissão; consequências



1. O sumário de RL 30/5/2017 (298/1.4.TBSCR.L1-7) é o seguinte: 

I - A deficiência da gravação de inquirição de testemunha tem de ser arguida pela parte no tribunal a quo, no prazo de dez dias a partir do momento em que a gravação é disponibilizada (Artigo 155º, nº4, do Código de Processo Civil).
 
II - Decorrido esse prazo sem que seja arguido o vício em causa, fica o mesmo sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade ser arguida nas alegações de recurso.
 
III - Sendo a inquirição (parcialmente impercetível) essencial para a apreciação do recurso na parte em que ocorre impugnação da decisão de facto, fica o Tribunal da Relação impossibilitado de efetuar a reapreciação da prova pretendida pelo apelante porquanto a reapreciação da prova tem de ser feita com os mesmos elementos com que o tribunal recorrido se defrontou.
 
IV - Perante a alegação genérica de um ato de reconhecimento interruptivo da prescrição, cabia ao tribunal
a quo proferir despacho de aperfeiçoamento tendo em vista designadamente a precisão da data em que ocorreu tal ato interruptivo (Artigo 326º, nº1, do Código Civil).
 
V - Tendo o tribunal
a quo omitido tal despacho, deve o Tribunal da Relação - em obediência ao princípio denominável de proibição da oneração da parte pela Relação com o risco da improcedência - anular nessa parte a decisão da primeira instância com base na deficiência do julgamento da matéria de facto (Artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil), entendida essa deficiência, não por referência à matéria de facto constante da causa, mas por referência à matéria de facto que podia constar da causa se a parte tivesse seguido o convite que lhe deveria ter sido dirigido pela 1.ª instância. 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] no que tange à apreciação da exceção da prescrição das faturas referentes aos serviços prestados, é pertinente a sua subsunção ao regime de prescrição de cinco anos prevista no Artigo 310º, alínea g), do Código Civil( cf. Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.7.2012, Pedro Brighton, 815/11 e de 18.6.2015, Octávia Viegas, 425/13.

Todavia, há que atentar na factualidade que estribou a apreciação do tribunal a quo:

«7.º

O Réu primeiro foi apelando à boa vontade da Autora, invocando dificuldades financeiras para não proceder ao pagamento das faturas e solicitando mais algum tempo para as pagar.

8.º

Consciente das dificuldades financeiras dos Condomínios, a Autora condescendeu às solicitações do Réu, adiando a apresentação de ação judicial para a cobrança destes valores.

9.º

O Réu não efetuou os pagamentos conforme se comprometera a fazê-lo perante a Autora.
»

Tal factualidade foi textualmente alegada pela Autora na resposta à contestação, nos seus artigos 7º a 9º [...].

O regime da interrupção da prescrição pelo reconhecimento consta dos Artigos 325º e 326º do Código Civil, valendo como reconhecimento tácito com eficácia interruptiva o pedido de prorrogação de prazo de pagamento – cf. Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, p. 155.

No que tange aos efeitos, a interrupção inutiliza todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo – Artigo 326º, nº 1, do Código Civil. Na economia desta norma, é essencial determinar o momento em que ocorreu o ato interruptivo, como é bom de ver. Doutro modo, a duração da interrupção passaria a ter regime equivalente ao previsto no Artigo 327º, nº 1, do Código Civil, sendo que este tem justificação própria e diversa.

Ora, a alegação genérica feita pela Autora nos artigos 7º a 9º, subsequentemente dada como provada é omissa quanto a esse elemento crucial, qual seja, em que data(s) é que o Réu solicitou mais prazo para pagamento (facto 7), devendo ainda ser precisado o facto 9 no sentido de saber se foi acordado um plano de pagamento que não terá sido cumprido. Só na posse de tais elementos factuais é que o tribunal pode apreciar, fundadamente, a exceção da prescrição.

Apesar do caráter genérico de tais alegações, o tribunal a quo não proferiu despacho de convite ao aperfeiçoamento das mesmas em cumprimento do disposto no Artigo 590º, nº 4, do Código de Processo Civil. Esse convite devia ser dirigido à Autora nos termos do Artigo 342º, nº 2, do Código Civil.

Em texto denominado “A proibição da oneração da parte pela Relação com o risco da improcedência: um novo princípio processual?”, datado de 29.1.2014, acessível em https://blogippc.blogspot.pt/2014/01/a-proibicao-da-oneracao-da-parte-pela.html, o Prof. Teixeira de Sousa aprecia a questão nestes pertinentes termos:

«A pergunta envolve uma questão fundamental, que é a seguinte: perante a insuficiência da matéria de facto alegada pelas partes, cabe ao tribunal de 1.ª instância convidar a parte a completar o seu articulado (art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4, nCPC); se esse tribunal não realizar esse convite, cabe perguntar se, no recurso interposto, a Relação pode julgar a acção improcedente com base numa por ela mesma entendida insuficiência da matéria de facto. Pode também perguntar-se se a Relação pode extrair outras consequências dessa insuficiência da matéria de facto.

Ao impor ao tribunal de 1.ª instância o dever de convidar as partes a completarem os seus articulados incompletos ou deficientes, a lei pretende repartir entre as partes e o tribunal o risco da improcedência da causa por insuficiência da matéria de facto, ou seja, pretende salvaguardar as partes, através de uma função assistencial do tribunal, do risco de não obterem a condenação ou a absolvição que solicitam por insuficiência dessa matéria. No entanto, se se considerar que essa insuficiência é irrelevante para a Relação e, portanto, se se admitir que este tribunal pode considerar a acção improcedente atendendo a essa insuficiência, então o risco da improcedência da causa passa a recair exclusivamente sobre a parte que não foi convidada a aperfeiçoar o seu articulado. Noutros termos: se se entende que a insuficiência da matéria de facto não obsta ao proferimento de uma decisão de improcedência pela Relação, então o risco da improcedência que o convite ao aperfeiçoamento procura retirar à parte passa a recair exclusivamente sobre esta mesma parte. Em suma: o que a lei pretende evitar na 1.ª instância é o que, não tendo sido evitado, passa a constituir fundamento da decisão da 2.ª instância.

O sumariamente descrito basta para que se possa concluir que uma insuficiência da matéria de facto não detectada na 1.ª instância não pode constituir fundamento de uma decisão de improcedência decretada pela 2.ª instância (e, a fortiori, não pode constituir justificação para extrair outras consequências, como, por exemplo, a não obrigação de uma das partes se submeter a um exame hematológico).

Se se pretender teorizar um pouco a situação, poderá dizer-se que a 2.ª instância não pode onerar a parte com o risco da improcedência decorrente da insuficiência da matéria de facto. Se esse risco deve ser combatido na 1.ª instância com o convite dirigido à parte para aperfeiçoar o seu articulado, então a Relação não pode fazer recair sobre essa parte esse mesmo risco. Numa época em que se generaliza a construção de novos princípios processuais, talvez se possa falar do princípio da proibição da oneração da parte pela Relação com o risco da improcedência.

A lei fornece a solução para evitar esta oneração pela Relação do risco da improcedência: a solução é a anulação pela Relação da decisão proferida pela 1.ª instância com base na deficiência do julgamento da matéria de facto (art. 662.º, n.º 2, al. c), nCPC), desde que essa deficiência seja entendida, não por referência à matéria de facto constante da causa, mas por referência à matéria de facto que podia constar da causa se a parte tivesse seguido o convite que lhe deveria ter sido dirigido pela 1.ª instância.»

Temos esta proposta por inteiramente válida e ajustada aos atuais princípios processuais, designadamente o princípio da cooperação na sua vertente de dever de prevenção (Artigo 7º, nº1, do Código de Processo Civil), princípio esse que vigora também em segunda instância.

Assim sendo, deve a decisão de facto da primeira instância ser anulada nos termos do Artigo 662º, nº2, alínea c) no que tange aos factos em causa, devendo ser proferido despacho de aperfeiçoamento quanto aos mesmos e, sendo acatado, seguindo o processo para julgamento no que tange aos factos concretizados (cf. Artigo 662º, nº3, alínea b) do Código de Processo Civil)."


[MTS]