"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/11/2017

Jurisprudência (736)


Depoimento de parte; valoração
[depoimento de parte; declarações de parte]


1. O sumário de RP 5/6/2017 (549/13.5TBGDM-B.P1) é o seguinte:

I - O depoimento de parte não pode ser valorado em sede de prova, quando não resulta do mesmo a confissão dos factos, nem o depoente admite factos desfavoráveis à sua pretensão e, por isso, não pode constituir um meio de criar a dúvida sobre o valor da prova pericial.

II - No exame pericial em que estava em causa aferir da genuinidade da assinatura aposta no documento o tribunal não pode afastar-se do parecer dos peritos, quando os peritos tenham analisado os mesmos factos que cumpre ao juiz apreciar e porque os demais elementos úteis de prova existentes nos autos não invalidam o laudo dos peritos.

III - Não admitindo o embargante a sua intervenção na relação imediata e situando-se a sua obrigação no estrito domínio da relação cambiária entre avalista e portador do título apenas poderia defender-se invocando o pagamento ou um qualquer vício de natureza formal.

IV - Inserido o aval completo no verso das livranças, a situação não se configura como nulidade daquela garantia porque as assinaturas dos avalistas foram encimadas pela expressão «dou o meu aval à subscritora».

V - Ocorrendo a respetiva interpelação por parte do beneficiário da livrança, quanto à data aposta para pagamento da livrança, são devidos os juros a contar da data de vencimento por se tratar de obrigação com prazo certo.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Considerou-se na sentença recorrida a propósito do depoimento de parte: ”Na verdade, a própria forma como o embargante prestou o seu depoimento de parte em audiência - apesar de negar a autoria da assinatura que lhe vem imputada -, que nos pareceu autêntica e sincera, levou a que o tribunal o tivesse considerado, à luz da livre convicção do tribunal. Nesse sentido, o tribunal observou a forma impressiva e que nos pareceu coerente como o embargante relatou a relação desavinda que tem com a sua mãe (e que já data de, pelo menos, 2008), que leva até a que os seus filhos (netos da mãe do embargante e aqui coexecutada E…) nem sequer mantenham contactos com a avó paterna. Ora, este facto, analisado à luz do padrão do cidadão médio nacional, certamente que é, no mínimo, confrangedor e difícil de admitir – mais a mais num ambiente solene de tribunal.

Este quadro de má relação entre o embargante e a sua mãe, a par do pormenor relatado por aquele no sentido da mesma ter acesso aos seus documentos, bem como o facto do embargante não ter qualquer relação comercial com o banco exequente e nem sequer ser titular de alguma conta nessa instituição bancária, fez com que o tribunal reforçasse o seu estado de dúvida”.

Contudo, o depoente referiu, ainda, que os pais se divorciaram quando tinha 4 anos e o depoente e a irmã ficaram a residir com a mãe, seguindo-se um processo judicial de grande conflito entre os pais. Viveu até aos 18 anos na companhia da mãe sem manter qualquer contato com o pai. Referiu que quando atingiu a idade de 18 anos o pai procurou-o e a partir dessa data passou a ter contato com a família alargada do pai. Considerou que a mãe lhe tinha criado uma realidade que não correspondia à verdade, mas nada mais adiantou.

Disse, também, que a mãe sempre trabalhou “ligada à informação médica” e quando cessou essa atividade, por efeito de reestruturação da empresa onde trabalhava, recebeu uma indemnização. Em 2002-2003 abriu um restaurante em regime de take away, ao abrigo de um programa de incentivo a novos investidores.

Referiu, que em 2005 residia na casa da mãe e que no ano de 2008 já não residia na casa da mãe, para além de estar incompatibilizado com a mãe. Disse também que no 2º ou 3º ano da faculdade deixou de residir com a mãe (entrou para a faculdade com 18 anos).

Não reconhece como sua a assinatura aposta na livrança, nem a rubrica que consta no canto superior direito das folhas do contrato, por não assinar o nome completo e não usar a rubrica que consta do contrato. Admitiu a semelhança da assinatura aposta no documento contestado com a anterior assinatura que escrevia nos documentos.

Confrontado com as assinaturas que constam dos requerimentos de bilhete de identidade, que foram analisados no relatório de peritagem, admitiu que em 2005 a assinatura era completa. Contudo, depois refere que a morada indicada não corresponde ao seu endereço.

Se num primeiro momento refere que o B… não lhe deu qualquer explicação sobre o motivo da execução, refere depois que após muitas exigências o banco elucidou-o que era avalista e o depoente confrontou a mãe que não lhe deu qualquer explicação.

Anota-se no depoimento do embargante que dificilmente respondia diretamente às perguntas que lhe eram colocadas, por se prender sempre com uma explicação lateral fugindo à questão colocada, o que dificulta a análise do seu depoimento.

O depoimento prestado não pode ser valorado em sede de prova, porque não resulta do mesmo a confissão dos factos, nem o depoente admite factos desfavoráveis à sua pretensão, porque acaba sempre por atribuir uma justificação favorável à sua pretensão e por isso, não podem constituir um meio de criar a dúvida sobre o valor da prova pericial.

Com efeito, o depoimento de parte é a declaração solene prestada sob compromisso de honra por qualquer das partes sobre os factos da causa – art. 552º CPC.

O depoimento de parte não se confunde com a confissão e como refere o Professor ANTUNES VARELA: “constitui uma das vias processuais através das quais se pode obter a confissão” [ JOÃO MATOS ANTUNES VARELA et al Manual da Processo Civil, [2001], pag. 539].

LEBRE DE FREITAS refere, aliás, que “o depoimento de parte constitui um meio de provocar a confissão” [JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO Código de Processo Civil – Anotado, vol.II, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pag. 496].

O depoimento de parte pode levar o juiz à convicção da realidade de um facto desfavorável ao depoente, mas sem que a declaração por ele prestada tenha revestido a forma de uma declaração confessória.

A confissão, conforme resulta da definição contida no art. 352º CC, consiste no reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.

Como refere LEBRE DE FREITAS, a confissão consiste no reconhecimento “de um facto constitutivo dum seu dever ou sujeição, extintivo ou impeditivo dum seu direito ou modificativo duma situação jurídica em sentido contrário ao seu interesse, ou, ao invés, a negação da realidade dum facto favorável ao declarante, isto é, dum facto constitutivo dum seu direito, extintivo ou impeditivo dum seu dever ou sujeição ou modificativo duma situação jurídica no sentido do seu interesse“ [JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Declarativa Comum – À Luz do Código Revisto, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, pag. 227-228].

O valor probatório atribuído à confissão, assenta na regra de experiência segundo a qual ninguém mente contrariamente ao seu interesse [Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Declarativa Comum – Á Luz do Código Revisto, ob. cit., pag. 228 e JOÃO MATOS ANTUNES VARELA et al Manual da Processo Civil, ob. cit, pag. 553].

A declaração de ciência constitui presunção da realidade do facto (desfavorável ao confitente) ou, ao invés, da inocorrência do facto (favorável ao confitente) que dela é objecto [JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Declarativa Comum – À Luz do Código Revisto, ob. cit., pag. 228].

A força probatória da confissão judicial (única que para o caso nos interessa) depende da forma que ela revista.

Determina o art. 358º/1 CC que a confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente.

Não sendo reduzida a escrito, a confissão feita no depoimento de parte ficará sujeita à regra da livre apreciação da prova pelo tribunal, conforme determina o art. 358º/4 CC.

Podemos, assim, concluir que o depoimento de parte tem diferente valor probatório consoante estamos perante uma confissão ou apenas perante a afirmação de factos desfavoráveis ao depoente.

Daqui resulta que o depoimento de parte quando não obedece aos requisitos exigidos para que tenha eficácia probatória plena, a declaração de reconhecimento de factos desfavoráveis pode constituir meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador (art. 361º CC).

As declarações do depoente podem ainda ser objeto de livre valoração pelo tribunal quando falte algum dos pressupostos do art. 353º CC, quando a confissão não seja escrita ou reduzida a escrito e quando falte o requisito da direcção à parte contrária (art. 358º/ nº3 e 4 CC) e também, quando a confissão conste duma declaração complexa, nos termos do art. 360º CC, e a parte contrária não se queira dela prevalecer como meio de prova plena.

Nestas circunstâncias as declarações prestadas pelo depoente com valor de prova livre constituem um ato distinto do da confissão com valor de prova plena, que tem requisitos de forma e pressupostos, necessários à sua validade, mais amplos do que os daquela. A sua eficácia probatória exige que o juiz a confronte com todos os outros elementos de prova produzidos sobre o facto confessado para que tire a sua conclusão sobre se este se verificou ou não [Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Declarativa Comum – À Luz do Código Revisto, ob.cit., pag. 245-247].

Analisado o depoimento prestado pelo embargante verifica-se que não confessou os factos, porque negou ter assinado a livrança em causa, ou que a assinatura ali aposta o foi pelo seu punho. Depôs sobre um conjunto de circunstâncias a respeito da sua relação pessoal com os seus progenitores, mas não alegou factos desfavoráveis à sua pretensão, sendo certo que as circunstâncias que enunciou a propósito da sua relação com a mãe, a coexecutada E…, e às quais se faz referência na fundamentação da decisão de facto, não constituem factos desfavoráveis e não resultaram demonstradas por qualquer outro elemento de prova.


3. [Comentário] O caso analisado no acórdão da RP suscita uma questão interessante: quando o juiz determine a prestação de depoimento por uma das partes (cf. art. 452.º, n.º 1, CPC) ou quando uma das partes requeira o depoimento da outra parte (cf. art. 452.º, n.º 2, CPC), pode a parte requerer que o seu depoimento valha também como prova por declarações de parte (cf. art. 466.º, n.º 1, CPC)? Noutros termos mais explícitos: pode a parte a quem é determinado ou requerido o depoimento de parte com a finalidade de obter a confissão de certos factos desfavoráveis requerer que o seu depoimento valha como prova por declarações de parte, de forma a que os factos favoráveis que venha a alegar também possam ser valorados pelo tribunal?

Supõe-se que se justifica uma resposta afirmativa à questão suscitada. A circunstância de ter sido determinado pelo tribunal o depoimento de uma parte ou de ter sido requerido por uma das partes o depoimento da outra parte não pode precludir a possibilidade de a parte que deve prestar depoimento requerer a prestação de declarações de parte. O tribunal exerceu os seus poderes inquisitórios em matéria probatória e a parte exerceu uma faculdade na mesma matéria, mas isto não pode retirar à parte à qual é solicitado o depoimento o poder de requerer a prestação de declarações de parte.

Pode até ir-se mais longe. Dado que o tribunal também pode determinar oficiosamente a prestação de declarações de parte (como resulta da remissão efectuada pelo art. 466.º, n.º 2, CPC designadamente para o art. 452.º, n.º 1, CPC), deve entender-se que o tribunal que toma a iniciativa de determinar o depoimento de parte deve considerar este depoimento, em tudo o que não tenha carácter confessório, como uma declaração de parte e valorar livremente esta declaração de acordo com o disposto no art. 466.º, n.º 3, CPC. O tribunal que tem de aceitar a confissão de factos desfavoráveis pela parte à qual determinou o depoimento tem também de aceitar e valorar os factos favoráveis alegados pela parte depoente.

Em suma: a solução proposta obriga o tribunal a valorar, num depoimento de parte, os factos favoráveis alegados pela parte segundo a óptica da prova por declarações de parte numa das seguintes situações:

-- Quando o tribunal tenha determinado oficiosamente o depoimento de parte; ou

-- Quando uma das partes tenha requerido o depoimento da outra parte e esta tenha requerido que o seu depoimento valha igualmente como prestação de declarações de parte.

MTS