"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/11/2017

Jurisprudência (737)


Competência internacional; Reg. 1215/2012
direito interno; princípio da causalidade



1. O sumário de RP 1/6/2017 (10310/16.0T8PRT-A.P1) é o seguinte:

I - As regras de competência do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro de 2012, aplicam-se desde que o demandado tenha domicílio num Estado-Membro; à competência dos tribunais desse Estado-Membro, decorrente das normas do Regulamento, não obsta a circunstância de o demandado não ser nacional desse Estado ou de nenhum outro Estado da União Europeia, nem a circunstância de a relação material controvertida possuir elementos de conexão com a ordem jurídica de um Estado não Membro da União Europeia.
 
II - Um órgão jurisdicional de um Estado-membro não pode declinar a competência que lhe é conferida pelo Regulamento por considerar que um órgão jurisdicional de um Estado não Membro é um foro mais adequado para conhecer do litígio.
 
III - Nos termos da alín. b) do art. 62.º do CPC, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes mesmo que só alguns dos factos que constituem a causa de pedir tenham sido praticados em território português, independentemente da sua importância no conjunto dos pressupostos do direito do autor, da complexidade do apuramento dos demais factos na instrução do processo ou da maior ligação dos demais factos a outro Estado.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Discute-se nos autos a competência internacional dos tribunais portugueses para preparar e julgar a presente acção.

Sendo a acção instaurada por uma sociedade comercial (autora) cuja sede social é em Portugal contra um cidadão nacional (réu) que a autora indica como tendo domicilio em Portugal, facto que este contesta alegando ter domicilio no Brasil, e tendo a acção como causa de pedir o incumprimento pelo réu de um contrato celebrado no Brasil entre a autora e o réu no âmbito da qual este se obrigou a prestar àquela determinados serviços no Brasil (não se cuida por ora da sua qualificação jurídica mas apenas de definir e localizar a execução das prestações), estamos seguramente perante um litígio emergente de uma relação plurilocalizada ou transnacional. [...]
 
Não temos conhecimento da existência de qualquer instrumento internacional que vincule em simultâneo e de forma recíproca Portugal e o Brasil sobre esta matéria. Contudo, uma vez que Portugal faz parte da União Europeia, não podem ser ignoradas as normas jurídicas europeias sobre esta matéria, mais especificamente o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012.

Nos termos do artigo 81.º, com excepção dos artigos 75.º e 76.º que se aplicam desde data anterior, este Regulamento aplica-se desde o dia 10.01.2015 às acções judiciais intentadas a partir dessa data, cujo objecto seja constituído por matéria civil e comercial, na acepção do próprio Regulamento, isto é, por relações jurídicas de direito privado que não estejam incluídas nas que o próprio Regulamento exclui de forma expressa (cf. Marco C. Gonçalves, in Competência Judiciária na União Europeia, in Scientia Iuridica, n.º 339, 2015, pág. 417 e seguintes), como sucede com a presente acção.

Nos termos do artigo 4.º, em regra as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado-Membro, independentemente de a sua nacionalidade corresponder ou não à do Estado-Membro do domicílio. Nos termos do artigo 6.º, se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro. Daqui resulta que o Regulamento é aplicável sempre que o demandado tenha domicílio num Estado-Membro, não sendo necessário que o demandado tenha a nacionalidade desse Estado-Membro ou de qualquer outro Estado-Membro. 

Em sede de interpretação do artigo 2.º da Convenção de Bruxelas que é o antecedente legislativo desta matéria na Europa, o Tribunal de Justiça, no Acórdão de 01.03.2005 (processo C-281/02, Owusu/Jackson), manifestou o entendimento de que que «…para efeitos da aplicação do artigo 2.° da Convenção de Bruxelas, o carácter internacional da relação jurídica em causa não tem de necessariamente decorrer da implicação de diversos Estados contratantes, devido ao mérito da questão ou ao domicílio respectivo das partes no litígio. A implicação de um Estado contratante e de um Estado terceiro, em virtude, por exemplo, do domicílio do demandante e de um demandado no primeiro Estado e da localização dos factos controvertidos no segundo, também é susceptível de conferir natureza internacional à relação jurídica em causa. Com efeito, esta situação é susceptível de suscitar no Estado contratante, como acontece no processo principal, questões relativas à determinação da competência dos órgãos jurisdicionais na ordem jurídica internacional, que constitui precisamente uma das finalidades da Convenção de Bruxelas, como resulta do terceiro considerando do seu preâmbulo» (n.º 26), e que por isso mesmo «…o artigo 2.° da Convenção de Bruxelas se aplica a uma situação [...] que abrange as relações entre os órgãos jurisdicionais de um único Estado contratante e as de um Estado não contratante e não as relações entre os órgãos jurisdicionais de diversos Estados contratantes».

Segundo Teixeira de Sousa, in https://blogippc.blogspot.pt/2016/07/jurisprudencia-414.html, esta interpretação do Tribunal de Justiça sobre o artigo 2.º da Convenção de Bruxelas deve ser seguida na interpretação do «…correspondente art. 4.º, n.º 1, Reg. 1215/2012, pelo que a circunstância de a acção ter conexão com um Estado terceiro (Moçambique) não é suficiente nem para afastar a aplicação do Reg. 1215/2012, nem para excluir a competência internacional dos tribunais do Estado do domicílio do demandado que é atribuída pelo art. 4.º, n.º 1, Reg. 121572012 (na doutrina, cf. Kropholler/von Hein, Europäisches Zivilprozessrecht. 9.º ed. (2011), vor Art. 2 EuGVO 8; Schlosser/Hess, EuZPR, 4.ª ed. (2015), Vor Art. 4-35 EuGVVO 5). Noutros termos: a circunstância de a opção ser entre a competência internacional dos tribunais portugueses ou a competência internacional dos tribunais moçambicanos não é suficiente para excluir a aplicação do Reg. 1215/2012, pelo que teria bastado a aplicação do disposto no art. 4.º, n.º 1, Reg. 1215/2012 para justificar a competência internacional dos tribunais portugueses. Dado o primado do direito europeu sobre o direito nacional, a aplicabilidade do Reg. 1215/2012 à determinação da competência internacional dos tribunais portugueses afasta a aplicação de qualquer regime interno.»

Por aqui se vê, portanto, a importância de determinar se o demandado tem domicílio em Portugal ou no Brasil: se tiver domicílio em Portugal, por força do disposto no próprio Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, e no artigo 59.º do Código de Processo Civil, os tribunais portugueses serão, sem mais, internacionalmente competentes para preparar e julgar a presente acção, independentemente do local da celebração do contrato ou onde as respectivas obrigações deveriam ser cumpridas.

Não obstará a essa conclusão a intensidade da ligação do caso ao Brasil pois no já citado Acórdão de 01.03.2005 (processo C-281/02, Owusu/Jackson) o Tribunal de Justiça decidiu que a mencionada norma da Convenção de Bruxelas «opõe-se a que um órgão jurisdicional de um Estado contratante decline a competência que lhe é conferida pelo artigo 2.° da referida convenção por considerar que um órgão jurisdicional de um Estado não contratante é um foro mais adequado para conhecer do litígio em causa, mesmo que a questão da competência de um órgão jurisdicional de outro Estado contratante não se coloque ou que esse litígio não tenha qualquer nexo com outro Estado contratante» [Segundo Marco C. Gonçalves, loc. cit., «Sendo a competência fixada em função do domicílio do réu, o Reg. 1215/ 2012 não permite a aplicação da teoria do fórum non conveniens, tradicionalmente adoptada nos países da common law, segundo a qual um tribunal pode declinar a sua jurisdição para conhecer um determinado litígio se considerar que um tribunal de uma outra jurisdição está em melhores condições para conhecer esse mesmo litígio.»].

As partes divergem quanto a esse aspecto, sustentando a autora que o réu tem domicílio em Portugal e defendendo este que o seu domicílio é no Brasil. Sendo esse aspecto controvertido nos autos não cremos, salvo melhor opinião, que o mesmo pudesse ser decidido sem a produção de prova e, sobretudo, decidido apenas pelo facto de o réu ter sido citado por via postal em Portugal e ter junto aos autos procuração forense onde indica como sua residência o local para onde a citação foi expedida. [...]

Sendo assim, como nos parece, se a questão da competência não puder ser decidida independentemente da determinação do domicílio do réu (isto é, não puder, por aplicação das regras de competência internacional do direito interno, ser decidida no mesmo sentido em que o seria por aplicação das regras do Regulamento n.º 1215/2012, qual seja, no sentido da competência dos tribunais portugueses por força do domicílio em Portugal), a decisão recorrida terá de ser anulada para que se proceda à instrução do incidente e se apure o local de domicílio do réu por forma a decidir só então a questão da competência.

Impõe-se assim apurar se as regras de competência internacional do direito interno permitem concluir, por outro critério que não o do domicílio, no sentido da competência dos tribunais portugueses.

Excluída a possibilidade de a acção estar compreendida em alguma das situações de competência exclusiva dos tribunais nacionais previstas no artigo 63.º do Código de Processo Civil, resta a possibilidade de se verificar o preenchimento de algum dos factores de atribuição de competência internacional previstos no artigo 62.º do mesmo diploma.

Esses factores são os seguintes: a acção poder ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa [alínea a)]; ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram [alínea b)]; o direito invocado não poder tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real [alínea c)].

O último dos factores não foi sequer alegado e quanto ao primeiro, elegendo a lei interna o critério de competência do domicílio do réu (artigo 71.º do Código de Processo Civil), a verificação do seu preenchimento levar-nos-ia de novo à necessidade de apurar a localização desse domicílio. Por essa razão apenas nos interessa o factor da alínea b): se através dele for possível afirmar a competência internacional dos tribunais portugueses, estes serão competentes tenha o réu domicílio em Portugal ou no Brasil.

Segundo a norma de competência em causa, os tribunais portugueses são competentes desde que tenha sido praticado em território português «o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram».

Como vimos, na presente acção a autora pretende recuperar uma quantia que pagou ao réu como contrapartida de um contrato no qual este assumiu a obrigação de representar os interesses da autora em determinados projectos de investimentos no Brasil e obter para a autora uma participação nesses projectos.

Para fundamentar esse pedido a autora alegou que o contrato foi celebrado, que ela cumpriu a sua prestação e que o réu, por sua vez, não cumpriu a respectiva prestação que era contrapartida daquela, fundando a obrigação sucedânea de restituição do valor entregue na resolução do contrato por incumprimento culposo do réu ou, subsidiariamente (incorrectamente o réu fala em alternatividade), no enriquecimento sem causa.

As partes parecem convergir quanto ao local de celebração do contrato e ao local onde a prestação do réu deveria ter sido cumprida, aceitando que se trata do Brasil. Da mesma forma parecem aceitar que o pagamento da contraprestação da autora foi realizado através de transferências a partir de conta da autora aberta em banco a operar em Portugal para conta do réu aberta em banco igualmente a operar em Portugal, ou seja, que esse pagamento foi efectuado em Portugal.

A causa de pedir da presente acção tem, assim, em simultâneo, ligações com Brasil e Portugal. A celebração do contrato teve lugar no Brasil, a prestação do réu alegadamente não cumprida deveria ser executada no Brasil, o incumprimento dessa prestação ocorreu no Brasil, a prestação da autora foi executada em Portugal e o réu obteve em Portugal o enriquecimento que a autora alega ser sem causa. [...]

Nos termos da alínea b) do artigo 62.º do Código de Processo Civil, para os tribunais portugueses serem internacionalmente competentes não é imprescindível que tenham sido praticados em território português todos os factos que constituem a causa de pedir [...], basta que algum desses factos o tenha sido, independentemente da sua importância no conjunto dos pressupostos do direito do autor, da complexidade do apuramento dos demais factos na instrução do processo ou da maior ligação dos demais factos a outro Estado.

Ora no caso concreto a autora pretende que o réu seja condenado a restituir-lhe a quantia que recebeu da autora ao abrigo do contrato celebrado entre ambos, fundamentando o seu direito a obter a restituição na circunstância de o réu não ter cumprido a sua prestação contratual e a autora ter, em consequência, procedido à resolução do contrato (ou, numa certa leitura dos artigos 25.º e 26.º da petição inicial, terem as partes acordado essa resolução), sendo que essa resolução tem efeitos equiparados à nulidade.

Pese embora a autora alegue que em virtude desse incumprimento tem ainda o direito de ser indemnizada dos danos que o comportamento do réu lhe causou, a verdade é que não formula qualquer pedido de indemnização, formula apenas o pedido de restituição da prestação que efectuou a favor do réu e que era contrapartida da prestação contratual que este não realizou.

Configurada assim a acção, parece inevitável a conclusão de que a causa de pedir da acção não é constituída somente pela celebração do contrato e pelo incumprimento da prestação a cargo do réu, cujos factos ocorreram no Brasil, mas ainda pelo cumprimento por parte da autora da sua prestação contratual, o pagamento da retribuição do réu, o qual ocorreu, como vimos, em Portugal. Com efeito, para poder reclamar da outra parte do contrato que lhe restitua a prestação realizada (artigos 801.º, n.º 2, 433.º, 434.º e 289.º do Código Civil), a parte não inadimplente necessita de alegar e demonstrar que realizou a prestação cuja restituição pretende, sendo certo que do contrato resulta a obrigação, não o cumprimento da prestação que constitui o objecto dessa obrigação.

Nesse contexto, uma vez que o pagamento da retribuição do réu cuja restituição a autora reclama teve lugar em Portugal e que tal pagamento não pode deixar de ser considerado facto que integra a causa de pedir da acção, a competência internacional dos tribunais portugueses acaba afinal por resultar do disposto na alínea b) do artigo 62.º do Código de Processo Civil."

[MTS]