"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/11/2017

Jurisprudência (730)


Reg. 1215/2012;
contrato individual de trabalho


1. O sumário de RL 30/5/2017 (27891/16.0T8LSB.L1-4) é o seguinte:

I. Havendo conexão com duas ou mais ordens jurídicas pertencentes à União Europeia importa apurar a qual delas, e face aos factos descritos pelo autor na petição inicial, pertencem os Tribunais com competência internacional para dirimir o conflito laboral.
 
II. A competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer de determinado litígio de natureza laboral afere-se pelas normas do Regulamento UE 1215/2012, mormente, sendo a ação interposta pelo trabalhador, o seu art.º 21, sendo princípio geral aplicável em matéria de contratos individuais de trabalho o de que as pessoas, independentemente da sua nacionalidade, devem ser judicialmente demandadas no Estado-Membro onde se acham domiciliadas, só o podendo ser em outros Estados membros que não o do seu domicílio nos termos previstos nas restantes normas do Regulamento, nomeadamente no do lugar onde ou a partir do qual o trabalhador efetua habitualmente o seu trabalho, ou no tribunal do lugar onde efetuou mais recentemente o seu trabalho.

III. Se uma trabalhadora portuguesa se propõe cobrar créditos laborais vencidos e não pagos no âmbito de um contrato de trabalho doméstico com empregadores que têm domicílio na Áustria, onde vivem, a competência pertence aos Tribunais austríacos, mesmo que os empregadores sejam também portugueses e o contrato tenha sido celebrado em Portugal.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No caso da competência internacional há que lançar mão das convenções internacionais pertinentes, e, não as havendo, das normas do código do processo laboral (cfr. art.º 10 e 15, n.º 2) (neste sentido, por todos, cfr. Ac. do STJ, 10.12.2009: 1. A competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer de determinado litígio de natureza laboral afere-se, na falta de convenções de direito internacional ao caso aplicáveis, pelo disposto no Código de Processo do Trabalho. 2. Para aferir dessa competência, atende-se aos termos em que a acção foi proposta).

Rege esta matéria o “Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho”, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial. Com efeito, o artº 80 deste diploma revoga o Regulamento CE 44/2001, e aplica-se às acções intentadas a partir de 10.01 2015 (art.º 66). É o caso da presente acção, proposta em 11.11.2016, sendo que os próprios factos narrados pela A. são posteriores a janeiro de 2015.

Dispõe o art.º 21 deste Regulamento 1215 que:

1. Uma entidade patronal domiciliada num Estado-Membro pode ser demandada:
a) Nos tribunais do Estado-Membro em que tiver domicílio; ou
b) Noutro Estado-Membro:
i) no tribunal do lugar onde ou a partir do qual o trabalhador efetua habitualmente o seu trabalho, ou no tribunal do lugar onde efetuou mais recentemente o seu trabalho, ou
ii) se o trabalhador não efetua ou não efetuava habitualmente o seu trabalho num único país, no tribunal do lugar onde se situa ou se situava o estabelecimento que contratou o trabalhador.
2. O disposto na presente secção não prejudica o direito de formular um pedido reconvencional no tribunal em que, nos termos da presente secção, tiver sido intentada a ação principal.

Corresponde este artigo, no que importa, ao art.º 19 do Regulamento 44/2001, de 16.1, seguido na decisão recorrida. As suas considerações mantêm, pois, pertinência, sendo que seguem os termos normativos, os quais, aliás, são claros. Pretendendo o trabalhador demandar o empregador num caso que envolva uma ordem jurídica da União Europeia onde resida o empregador, e outra ordem jurídica (no caso as duas, de Portugal e da Áustria, são da União Europeia),

a) No Tribunal do Estado membro onde o empregador tiver domicilio;

b) No Tribunal competente na área de outro Estado membro em que o trabalhador prestou a actividade habitualmente ou o fez mais recentemente.

Pois bem: a A. prestou a actividade sempre na Áustria, pelo que poderá demandar, com fundamento na al. b), naquele país (isto exclui, também, a aplicabilidade do disposto em ii), que se reporta aos casos em que a atividade é exercida em mais do que um país, situação que não se verifica, já que a actividade teve lugar apenas num país).

Resta a al. a): demandar os RR. no país do domicílio.

Onde é o seu domicílio?

De acordo com a A., na descrição que efetua na p.i., é na Áustria: repare-se que a trabalhadora foi contratada, seguindo a sua versão, “para trabalhar para os RR, em Viena, Áustria, para fazer o trabalho doméstico e tomar conta da filha menor (de 2 anos) dos RR.” (art.º 1º da pi); tinha direito, além do vencimento, “a dormida (na residência dos RR.), refeições (na residência dos RR.), viagem de avião de Lisboa para Viena e regresso pagas” (art.º 3º). Em lado algum se diz que os RR., que se depreende que são portugueses, regressaram a Portugal.

É certo que, no cabeçalho da petição a A. indica uma morada dos RR. em Belas, onde foram citados na pessoa de um terceiro.

Mas trata-se de uma mera indicação da A. para efeitos de citação, pois que, como vimos, a sua descrição aponta sempre e só no sentido de que os RR. residem na Áustria. Nada impede que alguém saia do país e deixe um contacto nomeadamente para efeitos administrativos, podendo até ser a casa de um terceiro, vg familiar, que aceite um tal encargo. Dito de outro modo: a citação em tal sitio, para mais feita na pessoa de outrem, não significa que os RR. tenham aí domicilio, quando o próprio autor assegura que o domicilio é no estrangeiro.

Isto resulta da noção de domicilio, o centro onde a pessoa tem a sua vida organizada, a qual se apura, nos termos do art.º 62, nº 1 do citado regulamento 1215, tendo em conta a lei portuguesa. Com efeito, tendo em conta o artigo 82º do Código Civil, "o domicílio é o lugar de residência habitual”, a habitação onde o sujeito vive com estabilidade e onde tem instalada e organizada a sua economia doméstica, o centro da sua organização pessoal.

Dir-se-ia: é uma questão de prova. No caso não é, já que a A. não o alega, para que depois possa demonstrar (a afirmação de que é em Portugal que trabalha habitualmente, mas não para os RR., cfr. conclusão 21, é evidentemente irrelevante para o caso). Mas mesmo que fosse questão de prova, a competência surge como um pressuposto processual, quer dizer, tem de ser dirimida necessariamente antes da produção da prova. É por isso que importa decidir com os elementos disponíveis e estes, como vimos, dizem que os RR. não residem em Portugal.

Não se diga que a lei interna é aplicável face aos preceitos do Código de Processo do Trabalho: prevalecem as normas de direito internacional quando regulem a mesma questão. Ora, sendo embora a trabalhadora e os empregadores portugueses, existe norma que regula expressamente a questão em face do domicílio dos RR., pelo que é esta que cumpre aplicar.

Pretende ainda a A. que foi recrutada por uma agência portuguesa. Isto não releva: uma mera intermediação não envolve qualquer vínculo com uma empresa portuguesa, logo não há destacamento algum nem qualquer relação com um empregador em Portugal.

Como decidiu o Ac. desta R. Lisboa, de 10.9.2014, "I. O princípio geral estabelecido no artigo 2.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 16 de Janeiro - que é aplicável à matéria derivada dos contratos individuais de trabalho - é de que as pessoas, independentemente da sua nacionalidade, devem ser judicialmente demandadas no Estado-Membro onde se acham domiciliadas, só o podendo ser em outros Estados membros que não o do seu domicílio, nos termos das normas das secções 2 a 7 do Capítulo II do Regulamento, sobrepondo-se as mesmas às regras de competência nacionais referidas no anexo I. II - Estando em causa a existência de uma relação de trabalho subordinado firmada entre duas partes domiciliadas em Estados-Membros, a sua cessação (considerada ilícita pelo Autor) e os créditos laborais daí derivados, é aplicável o regime dos artigos 18.º, 19.º e 21.º do referido Regulamento. III - Os artigos 18.º e 19.º do Regulamento não definem a competência internacional dos tribunais dos Estados-Membros em função do domicílio do trabalhador. IV - O domicílio das partes é estabelecido de acordo com o disposto nos artigos 59.º e 60.º do Regulamento, possuindo este último dispositivo legal uma natureza especial, por referência à regra geral do artigo 59.º, sendo o regime daquele outro dispositivo legal que se aplica às sociedades, o que implica que, fora da situação prevista no número 3 do dito artigo 60.º, o juiz não possa recorrer à sua lei interna, para efeitos de determinação do domicílio da parte. V - O regime constante do número 2 do artigo 18.º do Regulamento só pode ser invocado nas hipóteses em que «uma entidade patronal (...) não tenha domicílio no território de um Estado-Membro mas tenha uma filial, agência ou outro estabelecimento num dos Estados-Membros». (…) VII - A apreciação e julgamento da exceção de incompetência internacional (assim como de outras) têm de resultar do confronto entre as versões, de natureza fáctica e jurídica, apresentadas pelas partes nos seus articulados e dos documentos e demais meios de prova que os complementam, sem perder de vista, naturalmente, as regras que regulam o ónus de alegação e prova de tal exceção. (…)"

3. [Comentário] Uma nota sobre um aspecto que era irrelevante no caso sub iudice, mas é importante: a aplicação do Reg. 1215/2012 não depende da circunstância de o elemento de estraneidade da situação resultar da conexão com a ordem jurídica de um outro Estado-Membro. Dito pela positiva: o Reg. 1215/2012 também é aplicável na hipótese de esse elemento decorrer de uma conexão com a ordem jurídica de um Estado terceiro (cf, por exemplo, Rauscher/Mankowski, EuZPR/EuIPR (2016), Vorbem zu Art 4 Brüssel Ia-VO 26).

Convém também ter presente que o disposto no art. 21.º, n.º 1, al. b), e 2, Reg. 1215/2012 deve ser interpretado em conjunto com o estabelecido no art. 8.º, n.º 2, Reg. 593/2008 (Roma I): "Se a lei aplicável ao contrato individual de trabalho não tiver sido escolhida pelas partes, o contrato é regulado pela lei do país em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato ou, na sua falta, a partir do qual o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato. Não se considera que o país onde o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho mude quando o trabalhador estiver temporariamente empregado noutro país."

MTS