"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/11/2017

Jurisprudência (728)


Revisão de sentença estrangeira;
ordem pública internacional


1. O sumário de STJ 27/4/2017 (93/16.9YRCBR.S1) é o seguinte:


I - O sistema de revisão de sentenças estrangeiras, estabelecido nos arts. 978.º e ss. do CPC é um sistema que aponta para um reconhecimento facilitado das sentenças estrangeiras, dependente da mera verificação de determinados pressupostos simples, de ordem formal ou quase formal.

II - Não se trata, propriamente, de um exame da sentença revidenda, no sentido em que o tribunal de revisão não aprecia o seu mérito, ou seja, se naquela sentença o julgamento foi ou não acertado.

III - No entanto, existe um limite para este reconhecimento de decisões estrangeiras: a não violação dos princípios de ordem internacional do Estado Português (cfr. art. 22.º do CC).

IV - A ordem pública internacional manifesta-se em concreto, isto é, perante o resultado a que conduza a aplicação do Direito ou da sentença estrangeira: quando os resultados a que se chegue não contundam com os valores substanciais do nosso ordenamento, nada há a dizer.

V - Não afecta os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, para efeitos da al. f) do art. 980.º do CPC, a sentença revidenda proferida por um tribunal brasileiro que, numa ação cuja causa de pedir consistia no incumprimento de um contrato de compra e venda e o pedido no pagamento do respectivo preço, condenou solidariamente os sócios de uma sociedade que havia sido declarada despersonalizada e afastou a ilegitimidade passiva das pessoas singulares, até porque na ordem jurídica interna portuguesa a derrogação do princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela atuam tem sido aceite em diversos casos concretos.

VI - Resultando dos autos que não houve recurso do acórdão que confirmou a sentença revidenda e tendo sido proferido despacho a ordenar o cumprimento do acórdão, uma vez que se presume o trânsito em julgado e impende sobre os réus a elisão dessa presunção – o que não aconteceu –, entende-se como comprovado o requisito previsto na al. b) do art. 980.º do CPC para que a sentença estrangeira seja confirmada.

VII - Apesar de na ação objecto da sentença revidenda serem demandadas pessoas singulares portuguesas, não há fundamento para a recusa da confirmação ao abrigo do disposto no art. 983.º, n.º 2, do CPC (que prevê como fundamento da impugnação que a ação teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português), na medida em que, sendo manifesto que a responsabilização dos réus se baseou na responsabilidade contratual, de acordo com o critério supletivo estabelecido no art. 42.º do CC, inexistindo residência comum entre as partes e não havendo elementos para determinar onde foi celebrado o contrato, não se pode concluir que a lei competente para regular as obrigações provenientes do contrato em causa, assim como a própria substância, seja a lei portuguesa.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Outro pressuposto para a revisão e confirmação de uma sentença estrangeira, previsto na alínea f) do referido artigo 980º, consiste em que esta sentença “não contenha decisão cujo reconhecimento conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português.”

No acórdão recorrido entendeu-se “que a sentença em questão está fundamentada – pouco interessa saber agora se bem ou mal – e dá a conhecer as razões pelas quais os Réus foram condenados ao cumprimento de uma obrigação que havia sido contraída pela sociedade de que eram sócios, sem que se detete qualquer incompatibilidade entre o resultado a que conduz a decisão aí proferida e os princípios da ordem pública internacional do Estado Português (…)” pelo “que a aludida sentença não contém decisão que conduza a resultado incompatível com os princípios da ordem pública internacional e, portanto, tem-se como demonstrado o requisito a que alude a alínea f) do citado art. 980º do Código de Processo Civil”.

Os réus recorrentes entendem que foram violados princípios de ordem pública internacional do Estado Português “quanto à aplicação da justiça, quanto à garantia de justiça e do direito a decisão justo, quanto à confiança da justiça e quanto ao ónus de alegar factos”, na medida em que na sentença revidenda não teriam sido alegados factos consubstanciadores de uma causa de pedir e de um pedido, ela carecia de fundamentação factual, não teria sido respeitado o princípio de que condenação estava limitada na quantidade e no objeto pelo pedido e teria considerado a limitação da responsabilidade das pessoas jurídicas, não sustentado as razões para a responsabilidade individual dos sócios da sociedade ré.

Cremos que também não têm razão.

Antes de mais, atentemos em alguns conceitos sobre a matéria de revisão e confirmação de sentenças estrangeiras, extraídos de uma intervenção do prof. Menezes Cordeiro proferida no IV Congresso do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa.

O sistema de revisão de sentença estrangeiras, estabelecido nos artigos 978º e seguintes de Código de Processo Civil, é um sistema que aponta para um reconhecimento facilitado das sentenças estrangeiras, dependente da mera verificação de determinados pressupostos simples, de ordem formal ou quase formal.

Não se trata de um sistema em que o tribunal nacional tenha que examinar o processo estrangeiro no qual foi proferida a sentença revidenda e, achando-a conforme, confirmá-la, dando-lhe o “exequatur”, o que implicaria maior morosidade e, levado até ao fim, inutilizaria a sentença estrangeira, obrigando à repetição de todo o processo, no foro nacional.

Não há, propriamente, um exame da sentença revidenda, no sentido de que o tribunal de revisão não aprecia o seu mérito, ou seja, se naquela sentença o julgamento foi ou não acertado.

No entanto, existe sempre um limite para esta subserviência perante decisões estrangeiras: a não violação dos princípios de ordem pública internacional do Estado Português.

A ordem pública funcionou, na generalidade dos países, como uma reserva de base doutrinária, imposta pelo sistema e, de algum modo, foi consagrada no artigo 22º do Código Civil Português.

A ordem pública internacional manifesta-se em concreto, isto é, perante o resultado a que conduza a aplicação do Direito ou da sentença estrangeira.

Assim sendo, não será, em rigor possível dizer de antemão se um certo instituto é contrário à ordem pública internacional: antes há que simular a sua aplicação.

De tudo que ficou dito, parece poder concluir-se que num grande número de casos em que se pede, ao Tribunal, que faça valer a reserva de ordem pública internacional, apenas são agitadas questões de ordem formal.

Quando os resultados a que se chegue não contundam com os valores substanciais do nosso ordenamento, nada há dizer.

Voltemos ao caso concreto em apreço.

Está provado que a autora intentou a ação onde se proferiu a sentença revidenda, para além de outros, contra os aqui recorrentes, invocando como causa de pedir factos relativos a um incumprimento de um contrato de compra e venda e formulando o respectivo pedido – condenação no pagamento do preço da mercadoria vendida.

Os réus foram citados e contestaram, invocado a sua ilegitimidade e alegando que a mercadoria em causa estava imprópria para consumo.

A autora, alegou que os réus eram sócios da aí primeira ré – a sociedade “FF - Comércio e Importação S/A” - e que esta sociedade já havia sido declarada despersonalizada e inexistente pela Secretaria da Receita Federal, não tendo sido localizada, razão pela qual os sócios deveriam ser responsabilizados.

Em 2013.12.17, foi proferida sentença pela 5ª Vara Cível do Fórum Regional da B…T…, Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, em que o pedido da autora foi julgado procedente, condenando-se os réus, solidariamente, a pagar à autora a quantia de 383.680,00 USD, considerando-se, na fundamentação dessa decisão, que devia ser afastada a ilegitimidade passiva das pessoas singulares – entre as quais se encontrava os aqui recorrentes - na medida em que sociedade inicialmente responsável pela obrigação encontrava-se em situação irregular junto à Receita Federal e tão pouco se havia conseguido citar no local indicado pelo seu procurador, razão pela qual seria “necessária a aplicação a Teoria da Desconsideração da personalidade jurídica” para satisfazer o crédito da Autora, em conformidade com o art. 50º do Código Civil Brasileiro.

Como decorre do que acima ficou dito, não se trata aqui de apreciar se a responsabilização dos aqui recorrentes na ação em que foi proferida a sentença revidenda foi correta ou incorreta.

Por isso, a invocação da questão relativa à não alegação de factos que sustentasse a responsabilização individual dos mesmos não tem aqui qualquer cabimento.

De qualquer forma, sempre se dirá que a autora, na resposta à invocação, por parte dos réus, da sua ilegitimidade, invocou a desconsideração da personalidade jurídica da ré sociedade como motivo para a responsabilização dos recorrentes, sendo tal invocação atendida na sentença revidenda.

Sendo certo que na ordem jurídica interna portuguesa, a derrogação do princípio da separação entre a pessoa coletiva e aqueles que por detrás dela atuam tem sido aceite em diversos caso concretos.

Como se disse, se perante tal invocação o tribunal estrangeiro decidiu bem ou mal, não é questão que que possa ser aqui conhecida.

Nestes termos, não vemos como a responsabilização dos recorrentes estabelecida na sentença revidenda pode, em concreto, afetar os princípios de ordem pública internacional, invocados pelos mesmos."


[MTS]