"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/11/2017

Jurisprudência (719)


Processo de insolvência; administrador de insolvência;
venda executiva; impugnação; inconstitucionalidade


1. O sumário de STJ 4/4/2017 (1182/14.0T2AVR-H.P1) é o seguinte: 

A interpretação que o acórdão recorrido acolhe, no que respeita ao art. 163.° do CIRE, sentenciando que um credor hipotecário, alegadamente prejudicado pela actuação do administrador da insolvência, no contexto de venda por negociação particular de dois imóveis, não pode suscitar tal questão perante o juiz do processo, e que a decisão judicial proferida na 1.ª instância, que decretou a pedida nulidade daquela venda, é ilegal por o acto ser eficaz, restando ao lesado intentar acção de responsabilidade civil contra o administrador da insolvência, e/ou pedir a sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os actos ilegais praticados; viola o art. 20.°, n.os 1 e 5, da CRP, por não assegurar, imediatamente no processo, tutela efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de pronta intervenção do julgador. 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O Recorrente considera que a actuação do AI foi discriminatória e parcial, no que respeita ao tratamento do seu crédito garantido por hipoteca, no que respeita à alienação, em 13.11.2014, de duas fracções prediais pelo preço unitário de € 141 000,00 – cfr. factos provados 10) e 14).

Estando em causa a venda de imóveis sobre os quais o Recorrente tinha tal garantia, estava o AI obrigado, nos termos do art. 164º, nº2, do CIRE, a ouvi-lo sobre a modalidade da venda e a informá-lo do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada.

O AI, no uso dos seus poderes-deveres funcionais de prover à liquidação dos bens compreendidos na massa, escolheu a venda por negociação particular sem publicitação.

Sendo seu dever maximizar o produto da venda, tendo em vista satisfação dos credores (tratava-se de liquidar a insolvente e não de a recuperar), pode considerar-se discutível a opção, mais a mais se se atentar que, segundo o facto provado 14), o fez sem que tenha consultado ou solicitado autorização da comissão de credores para o efeito, tendo contratado um perito para proceder à avaliação dos imóveis apreendidos.

A possibilidade de reacção contra os actos do administrador está hoje dependente da qualificação desse acto como assumindo “especial relevo para o processo de insolvência”.

Nos termos do nº 2 do art. 161º do CIRE – “Na qualificação de um acto como de especial relevo atende-se aos riscos envolvidos e às suas repercussões sobre a tramitação ulterior do processo, às perspectivas de satisfação dos credores da insolvência e à susceptibilidade de recuperação da empresa.”

O art. 161º, nº 3, do CIRE elenca, sem carácter taxativo, actos qualificados de especial relevo: sendo o conceito indeterminado ficará à consideração do intérprete uma ponderação qualificativa casuística.

Não parecem merecer a qualificação de “actos de especial relevo” procedimentos de carácter processual, pois, aquele normativo ao estatuir que “a violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos atos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”, apenas confere excepcional relevância violadora, geradora de invalidade, aos casos em que da actuação do AI resulte a assunção de obrigações caso excedam manifestamente as da contraparte.

A regra é, pois, a que os actos omissivos ou comissivos praticados pelo AI, infractores dos arts.161º e 162º do CIRE, não deixam de ser eficazes.

De notar que o nº 4 do art. 161º, estatuindo que “a intenção de efectuar alienações que constituam actos de especial relevo por negociação particular…”, repete, enfatizando, quiçá desnecessariamente, face ao seu nº 3, que constitui acto de especial relevo a intenção de efectuar alienações que constituam actos de especial relevo por negociação particular.

Parece, desta pouco clara técnica legislativa, que alienações por negociação particular podem constituir actos de especial relevo. [...]

Será o regime legal vigente, de reacção aos actos ilegais do AI, mormente o art. 163º do CIRE, compatível com a tutela jurisdicional efectiva dos direitos afectados no processo da insolvência?

Recusando-se ao juiz do processo de insolvência [...], poder apreciar e anular a venda por negociação particular, promovida pelo AI, em violação das normas que lhe impõem a adopção das formalidades previstas nos arts. 161º e 162º do CIRE, não sairá afectado o direito fundamental dos prejudicados, de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva previsto no art. 20º da Constituição da República?

Cremos que tal entendimento viola o art. 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República se se entender, como no Acórdão recorrido, que “O administrador está vinculado a actuar como administrador criterioso e ordenado, sob pena de responder pelos danos que a sua actuação cause aos credores. Contudo, os seus actos não podem ser impugnados perante o juiz, já que perante terceiros, em regra, se mantém válidos e eficazes, sem prejuízo do dever de indemnização que façam recair sobre o administrador. Tanto basta para concluir que o recurso não pode deixar de improceder uma vez que não cabe na competência jurisdicional apreciar a regularidade dos actos praticados pelo administrador que motivaram o recurso.” [...]

Este entendimento foi, mais recentemente, sufragado nos Acórdãos da Relação do Porto de 23.1.2017[5] – Proc. 571/12.9T2AVR-H.P1 – e de 30.1.2017[6] – Proc. 530/16.2T8AVR-F.P1 - in www.dgis.pt., no que parece constituir jurisprudência pacífica daquele Tribunal. [...]

A tutela jurisdicional deve ser efectiva, e não o é quando a lei assegura, mas de forma colateral, a “protecção” de direitos, quando a parte, que se considera prejudicada em processo pendente, argui perante o Juiz, a existência de vícios processuais que contendem com o seu direito.

No caso, mesmo que a prática de actos de especial relevo da competência do administrador da insolvência, na fase de liquidação da massa insolvente, evidenciem terem sido por si violados os arts. 161º e 162º do CIRE pelo administrador da insolvência, o art. 163º do CIRE estatui que tal violação “não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepeto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”.

Este normativo, na interpretação do Acórdão recorrido, não contempla o direito de a parte lesada, no incidente de liquidação, por acto ou omissão do AI, poder arguir, perante o Juiz do processo, vícios procedimentais. A vingar tal interpretação, o remédio ao alcance de quem no processo for lesado, por actuação ilegal daquele órgão, é nenhum em termos imediatos e de proporcionalidade, exprimindo indefesa.

Disporá, quem for prejudicado, do direito de intentar acção indemnizatória para obter a condenação do AI, pelos danos patrimoniais sofridos e pedir a destituição do cargo com justa causa, esta, sim, a apreciar no processo pelo Juiz.

A lei confere ao lesado como que uma possibilidade de actuação sancionatória de um órgão da insolvência, mas permanece eficaz o acto praticado que não será sindicável no processo. Parece incongruente: o lesado quererá, sobretudo, ver declarada a ineficácia de um acto que patrimonialmente pode ser danoso.

Não obterá a reparação, pela via da arguição da nulidade processual do acto, mas apenas, no contexto de responsabilização em acção judicial em que terá que ser demandante, podendo obter uma indemnização pelos prejuízos sofridos. [...]

O processo de insolvência, que o legislador quis célere e desjudicializado, não pode erigir tais valores em objectivos em si mesmos, com prejuízo dos interesses que nele se jogam. A celeridade, a desburocratização, a desjudicialização e os amplos poderes do administrador da insolvência, no incidente de liquidação da massa insolvente, não devem ser interpretados de forma a excluir o papel imparcial e soberano do Juiz, relegando-o para um papel secundário de mero controlo, ou no limite, nem sequer lhe consentindo que possa apreciar a irregularidade do negócio em que interveio o administrador da insolvência.

A interpretação que o douto Acórdão recorrido acolhe, no que respeita ao art. 163º do CIRE, sentenciando que um credor hipotecário, alegadamente prejudicado pela actuação violadora do administrador da insolvência, no contexto de venda por negociação particular de dois imóveis, não pode suscitar essa actuação ilícita perante o Juiz do processo, e que o despacho do julgador da 1ª Instância que apreciou tal arguição decretando a pedida nulidade, é ilegal por o acto ser eficaz, considerando que resta ao lesado intentar acção de responsabilidade civil contra o AI, e/ou pedir a sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os actos ilegais praticados, viola o art. 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República, por não assegurar imediatamente no processo, tutela jurisdicional efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de imediata actuação do julgador, estando no limite de violar o princípio da proibição da indefesa."

3. [Comentário] O acórdão tem um voto de vencida, elaborado nos seguintes termos: "Vencida, não conheceria do objecto do recurso uma vez que o mesmo não é admissível, porquanto não tendo a decisão recorrida posto fim ao processo, a impugnação apenas seria admissível nos termos do artigo 629.º, n.º 2, alínea d) do CPCivil, por oposição do Acórdão, o que in casu não aconteceu."

Supõe-se que o voto se baseia no disposto no art. 14.º, n.º 1, CIRE, que estabelece o seguinte: "No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme."

O que pode suscitar alguma dúvida interpretativa é a expressão "processo de insolvência". Num sentido amplo, o processo de insolvência abrange todo o procedimento desde o pedido de declaração da insolvência até à prática do último acto processual no respectivo processo. Em contrapartida, num sentido restrito, o processo de insolvência é apenas o processo que conduz à declaração (ou à não declaração) da insolvência.

A favor da solução restritiva pode invocar-se a circunstância de a limitação do recurso constituir um regime substancialmente excepcional e, por isso, só dever ser aplicada por razões excepcionais relacionadas com a necessária celeridade na obtenção de uma decisão judicial. Compreende-se que esta necessidade de celeridade se verifique quanto à obtenção da decisão sobre a declaração (ou a não declaração) da insolvência, mas não se encontra justificação para que ela deva valer para todo e qualquer acto processual praticado depois dessa declaração.

Neste sentido, bem fez o STJ em ter admitido o recurso, embora também não tivesse feito mal se tivesse justificado a sua orientação. 

MTS