Extinção de sociedade; responsabilidade do sócio;
processo executivo
1. O sumário de RP 18/5/2017 (2899/15.7T8LOU.P1) é o seguinte:
I - Não obstante nas ações pendentes em que a sociedade seja parte a extinção desta determine a sua substituição pela generalidade dos sócios (representados pelo liquidatário) ao abrigo do art.º 162º do CSC, tal substituição não é automática nem ilimitada.
II - Se apenas a sociedade comercial de responsabilidade limitada, liquidada e extinta, foi condenada na ação declarativa no pagamento de determinada quantia pecuniária a favor da exequente, não pode fazer-se seguir a execução de sentença contra o seu ex-sócio (representado pelo liquidatário), ao abrigo do art.º 163º do CSC, sem que se aleguem (e provem oportunamente) em ação própria ou, pelo menos, em fase incipiente da execução (quando antes não pôde ser), os pressupostos da responsabilidade deste último e da sua sucessão à sociedade, desde logo como requisito de legitimidade passiva, por não figurar no título executivo como devedor, abrindo também o contraditório.
III - Tal alegação na execução passa pela concretização descritiva dos bens e valores da sociedade extinta partilhados em benefício do ex-sócio (potencial executado legitimável), a fim de permitir determinar a medida da sua responsabilidade relativamente ao crédito da exequente; porém, de modo compatível com as caraterísticas coercitivas do processo de execução, sem retardamento anormal ou complicação declarativa.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado (art.º 163º, nº 1, do CSC) [...]. É dos sócios a respetiva responsabilidade, até ao montante do que receberam na partilha, sendo as ações necessárias para tanto propostas contra eles, mas na pessoa dos liquidatários, considerados, para o efeito, como seus representantes legais. A sua responsabilidade pessoal (falamos de sócios de sociedades de responsabilidade limitada) não excede, pois, as importâncias que hajam recebido em partilha dos bens sociais.
Raúl Ventura justifica bem: “(…) desaparecida a sociedade-sujeito, e mantidos vivos os direitos da sociedade ou contra esta, só os sócios podem ser os novos titulares desse ativo e passivo. A explicação jurídica dessa intuição reside na extensão do direito de cada sócio relativamente ao património ex-social. Os sócios têm direito ao saldo da liquidação, distribuído pela partilha. Se tiverem recebido mais do que era seu direito, porque há débitos sociais insatisfeitos, terão de os satisfazer; se tiverem recebido menos, porque não foram partilhados bens sociais, terão direito a estes”.
É jurisprudência maioritária e, na nossa perspetiva, mais correta que, para fazer acionar a responsabilidade dos ex-sócios --- uma responsabilidade pessoal --- é necessário que se prove que a sociedade tinha bens e que, em consequência da sua dissolução e extinção, esses bens, ou alguns desses bens, reverteram para eles, recaindo o ónus da alegação e prova de tais factos sobre o credor, nos termos do disposto no art.º 342º, n.º 1, do Código Civil. A existência de bens e a sua partilha entre os sócios são elementos constitutivos do direito do credor. Tal direito sobre os sócios só nasce se tiver havido partilha de bens. Sem existência de bens e sua partilha pelos sócios não nasce qualquer direito do credor da sociedade em relação aos sócios. [...]
Com efeito, nem a substituição da sociedade extinta, pelos seus antigos sócios, é automática, nem a responsabilidade destes é ilimitada.
A sucessão subjetiva operada nas ações pendentes contra a sociedade, à data da sua extinção, sem suspensão da instância nem habilitação não dispensa o credor do ónus de alegar e provar aqueles elementos constitutivos do seu direito contra os ex-sócios. Como afirmámos, aqueles factos são constitutivos do direito de acionar os sócios.
Saber quem tem o ónus de provar determinada circunstância fáctica que surja no contexto da demanda constitui elemento de primordial importância no desfecho do êxito da ação, ou seja, a chave da resolução do litígio --- num sistema processual baseado no princípio dispositivo, em que o tribunal tenha que julgar secundum allegata et probata partium, o ónus da prova de um facto consiste em ter a parte que alegar e provar o facto que lhe aproveita, sob pena de o juiz ter de considerá-lo como não existente e como líquido o facto contrário [Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pág. 448], ou seja, dito de outro modo, este ónus traduz-se "para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova; ou na necessidade de, em todo o caso, sofrer tais consequências se os autos não contiverem prova bastante desse facto" [Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil; pág. 184. No mesmo sentido, Vaz Serra, ob. cit. pág. 113, segundo o qual, “o juiz deve decidir, caso os factos sejam incertos, contra a parte a quem incumbia esse ónus. É este o chamado ónus objectivo ou material” (pág. 116)].
Como se diz no acórdão da Relação de Lisboa de 12.7.2012 [Proc. 17316/09.3YIPRT-B.L1-7, in www.dgsi.pt], “(…) é ónus do credor social o de demonstrar (se for caso, em acção executiva) os bens (o património ou, ao menos, o seu volume) que passaram para a esfera do (antigo) sócio em execução de partilha. É um momento (logicamente) subsequente ao do reconhecimento da “detenção” do vínculo de cumprimento na (própria) esfera jurídica do último; e é uma faculdade ou possibilidade que àquele, se o pretender, não pode ser cerceada. Ou seja, a de encetar a busca, a prova, o convencimento, de que houve bens (também) transitados; a par da transferência do vínculo jurídico. E isso, com o significado de (ele credor) só ir conseguir atingir, para satisfação do seu direito, esse património (ou o seu respetivo valor) em que logre o êxito da comprovação da haver pertencido à sociedade (sua devedora originária) e que haja sido transferido, com a extinção, para a esfera do sucessor.”
A tarefa do credor pode, muitas vezes, ser difícil, mas também pode ser fácil, dependendo das circunstâncias (há um sócio que levou determinadas máquinas para outras instalações fabris ou comerciais e que delas está a tirar proveito, há um conjunto de matérias-primas ou produtos acabados que foi transferido para outro espaço no interesse imediato dos ex-sócios, há um crédito da sociedade extinta que foi cedido aos ex-sócios sem qualquer justificação, etc.).
Retomando o caso em análise, em ação declarativa instaurada pela sociedade C..., Lda., contra a aqui exequente B..., Lda., por sentença proferida no dia 30.1.2015, complementada por decisão de 23.3.2015, transitada em julgado, aquela foi condenada, como litigante de má fé a pagar à ali ré (aqui exequente) uma determinada quantia indemnizatória, agora objeto de execução.
No momento da contestação (na ação declarativa), a ré não tem que prever que a autora se vai extinguir e alegar também os pressupostos da sua substituição pelos liquidatários nos termos do citado art.º 162º por causa de uma eventual condenação da demandante como litigante de má fé no pagamento de indemnização a seu favor.
Só após a extinção se torna exigível a alegação e a prova dos pressupostos legais da referida substituição, ou seja, da verificação de todos os elementos sem os quais os sócios não podem responder pelo passivo da sociedade. Essa discussão nem sempre é possível fazer-se na ação declarativa de condenação, porque quando os liquidatários são chamados a representar os sócios que substituem a sociedade extinta já a fase dos articulados está ultrapassada, mesmo a possibilidade de apresentação e apreciação de articulado superveniente, nomeadamente pelo encerramento da discussão da causa (art.º 588º do Código de Processo Civil).
Então, onde é que essa questão pode e deve ser tratada?
A resposta não é pacífica… Em nova ação? No processo executivo?
Na execução de sentença não se cura de “obter a declaração judicial da solução concreta resultante da lei para a situação real trazida a juízo pelo requerente”. Essa é a função do processo declaratório, o processo de cognição, em que se pede “que o tribunal pronuncie a solução jurídica concreta aplicável ao caso submetido a julgamento”. O processo executivo emprega-se para dar realização material coativa às decisões judiciais que dela necessitem: não para reconhecer o direito, mas antes para o atuar, para lhe dar execução. [Acórdãos da Relação do Porto de 5.7.2012, proc. 316/2001.P1 e de 15.2.2016, proc. 1628/13.4TBVNG-A.P1, citando jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, in www.dgsi.pt].
A execução não serve para cumprir o escopo da ação declarativa.
Tem-se entendido que, se os sócios não estão dispensados de honrar pessoalmente as obrigações da sociedade extinta, apenas estão obrigados a fazê-lo, como observámos já, num quadro em que se verifiquem determinados pressupostos de facto, para o que é indispensável a sua responsabilização em sede declarativa. Não basta, por exemplo, que o exequente venha alegar no requerimento executivo que o sócio declarou falsamente que a mesma (a sociedade) não tinha passivo e que o seu liquidatário ora executado dissolveu a sociedade e ficou com os bens ativos de que ela era detentora. É matéria que tem que ser alegada e provada em sede declarativa, além do mais, a falsidade da declaração do liquidatário da inexistência de ativo e de passivo à data da dissolução, por existirem bens partilháveis nessa data. Tais declarações do liquidatário mantêm-se válidas por não terem sido ainda objeto de qualquer procedimento judicial declarativo. Sem ter alegado e provado aqueles factos e todos os que mais constituem o direito da exequente de responsabilizar o executado ex-sócio, não é possível condená-lo no pagamento da dívida da sociedade; o que não pode acontecer numa ação executiva. [Cf., entre outros, os acórdãos da Relação do Porto de 5.7.2012, proc.316/2001.P1, e de 10.9.2012, proc. 2001/05.3TVPRT.P1, in www.dgsi.pt] Tem-se entendido que, alegada a falsidade da declaração do liquidatário quanto à existência de bens, só uma ação declarativa prévia à execução permite viabilizar a responsabilidade dos ex-sócios. [Cf. acórdão da Relação do Porto de 1.2.2011, cujo sumário se transcreveu no acórdão da Relação de Coimbra de 22.3.2011, proc. 1447/08.0TBVIS-B.C1 [...]]
Como dissemos, não obstante a dispensa de habilitação do ex-sócio consignada no art.º 162º do CSC, a substituição da sociedade não é automática nem ilimitada.
Não pode a execução prosseguir contra alguém que, não figurando no título executivo, também não viu ser feita alegação e prova, em procedimento declarativo, dos pressupostos da sua responsabilidade, processo que justamente visa a definição do direito e da obrigação, assim como dos respetivos titulares e obrigados.
A exequente não dispõe de título executivo contra o executado, dado que este não foi condenado; apenas o foi a sociedade de responsabilidade limitada. Assim, o executado, perante o título dado à execução, é parte ilegítima. [...]
A regra de que a legitimidade executiva, ativa e passiva, se afere, desde logo, pelas pessoas que figuram no título executivo como credor e devedor comporta exceções, designadamente, e no que ao caso poderá relevar, a que consta do art.º 54º, nº 1, do Código de Processo Civil, nos termos do qual “1- Tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão.”.
Citando Eurico Lopes Cardoso [Manual da Acção Executiva, 3ª Edição, Almedina, 1992, pág. 99/100], refere o referido acórdão da Relação de Coimbra de 15.12.2010 que “o termo sucessão é empregue em sentido lato, abrangendo todos os modos de transmissão das obrigações. Ocorrendo a sucessão entre o momento da formação do título e o da instauração da execução, esta deve correr entre os sucessores das pessoas que no título figurem como credor ou devedor da obrigação exequenda, caso em que o problema da legitimidade é discutido e dirimido por forma semelhante àquela pela qual se discute e dirime na acção declarativa, tendo o exequente que alegar no requerimento inicial os factos constitutivos da dita sucessão e, por consequência, todas as condições de que depende a sua legitimidade (na sucessão activa) ou a do executado (na sucessão passiva). É o que habitualmente se designa de habilitação-legitimidade. Mas não tem que oferecer logo prova deles, a qual apenas se imporá no caso de o executado se opor à execução com fundamento na ilegitimidade”.
Habitualmente, entende-se que o art.º 54º, nº 1, do Código de Processo Civil, tem o seu campo de aplicação nas situações em que o facto determinante da sucessão haja ocorrido após a formação do título executivo, o que bem se compreende se tivermos em conta que, estando pendente ação declarativa, será nesta que a questão da sucessão se deverá colocar (art.º 162º do CSC).
No caso presente, a questão ficou em aberto na ação declarativa, pelo que, não podendo a sociedade C..., Lda. ser sujeito passivo na execução, por falta de personalidade jurídica, e estando reconhecido o crédito da exequente B..., Lda., tem que ser-lhe reconhecido o direito à alegação e prova dos já referidos pressupostos de facto da responsabilidade do executado, nos termos dos art.ºs 162º e 163º do CSC, cujo lugar próprio é, como dissemos, o procedimento declarativo.
Não obstante, temos para nós que este procedimento pode correr em fase incipiente da execução. Admitiu-o, por exemplo, o citado acórdão de 15.12.2010, através de incidente de habilitação-legitimidade, previsto no mencionado art.º 54º, nº 1, do Código de Processo Civil, negando a possibilidade do exequente demonstrar a legitimidade do executado, pela prova dos referidos pressupostos da responsabilidade dos ex-sócios em fase posterior de execução.
A exequente não alegou no requerimento inicial de execução factos concretos suficientes e adequados à legitimação do ex-sócio para a substituição da sociedade liquidada; antes instaurou a execução contra a sociedade extinta. Cumpria-lhe alegar ali (para efeito de prova) que a sociedade tinha determinados bens com certo valor e que esses bens foram atribuídos ao sócio único em detrimento da satisfação do seu crédito."
3. [Nota] Sobre a mesma matéria, cf. Jurisprudência (690).
MTS