"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/11/2017

Jurisprudência (720)


Reconvenção condicional;
resolução em benefício da massa insolvente; impugnação;
ónus da prova


1. O sumário de RP 27/4/2017 (3324/10.5TBSTS-E.P1) é o seguinte:

I - A afirmação tabelar, no saneador, de que é admitida a reconvenção não constitui apreciação concreta dos pressupostos da sua admissibilidade, pelo que não faz caso julgado formal nos termos do art.º 595, n.º 3, do CPC, continuando, por isso, a ser possível a sua reapreciação em momento posterior.
 
II - A reconvenção pode ser deduzida condicionalmente para a hipótese de procedência da acção.
 
III - A improcedência da acção constitui decisão prejudicial em face do pedido reconvencional, enquanto a absolvição do réu da instância gera absolvição da instância reconvencional.
 
IV - Na acção de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente não é admissível reconvenção, atento o objecto da acção e porque é uma acção de simples apreciação negativa. 
 
V - O administrador da insolvência não pode ver aí reconhecida a nulidade do negócio, por simulação, nem obter o pagamento da parte do insolvente, por o correspondente pedido reconvencional não ser admissível, dado ser evidente que o mesmo não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como é sabido, [...] a reconvenção traduz-se numa modificação do objecto da acção e consiste na formulação de um pedido substancial ou pretensão autónoma por parte do réu contra o autor. Trata-se de uma verdadeira acção proposta pelo réu contra o autor, enxertada numa outra acção, em que há um pedido autónomo e não apenas formal, um autêntico contra-ataque desferido pelo reconvinte contra o reconvindo ou uma contra-acção que se cruza com a proposta pelo autor. Mas para que tal seja lícito é necessária a verificação de determinados requisitos processuais e objectivos ou substantivos, traduzindo-se estes num certo nexo do pedido reconvencional com a acção ou com a defesa [...].
 
Estes últimos requisitos estão, actualmente, previstos no n.º 2 do art.º 266.º do CPC, estando antes, à data da apresentação da contestação/reconvenção, previstos no n.º 2 do art.º 274.º do anterior CPC, onde se distinguiam taxativamente três tipos de situações.

Aqui, importa analisar apenas as situações contempladas na alínea a) - com redacção igual em ambas as versões -, por ser demasiado evidente que as restantes não são aplicáveis ao caso em apreço.

Nos termos da citada alínea a) a reconvenção é admissível “quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa”.

A primeira parte desta alínea só pode ter o sentido de a reconvenção ser admissível quando o pedido reconvencional tenha a mesma causa de pedir da acção, isto é, o mesmo facto jurídico (real, concreto) em que o autor fundamenta o direito que invoca; enquanto que a segunda parte tem o sentido de ela ser admissível quando o réu invoque, como meio de defesa, qualquer acto ou facto jurídico que, a verificar-se, tenha a virtualidade de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor [
Cfr., neste sentido, entre outros, o acórdão desta Relação de 16/9/91, na CJ, ano XVI, tomo IV, pág. 247 e os acórdãos do STJ de 5/3/96, no BMJ, 455.º, 389 e de 27/4/2006, proferido no processo n.º 06A945, acessível em www.dgsi.pt.]. [...]


Indubitável é a necessidade da existência de conexão entre o pedido da acção e o pedido reconvencional, a qual se traduz, no caso previsto na citada alínea a), na ligação através do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa.

Assim, para que a reconvenção seja admissível ao abrigo desta alínea, é necessário que o pedido reconvencional tenha a mesma causa de pedir da acção ou emirja do acto ou facto jurídico que serve de fundamento à defesa, embora desse acto ou facto jurídico se pretenda obter um efeito diferente [...].

Ainda que se trate de uma análise perfunctória e liminar, visando apenas a formulação de um juízo acerca da admissibilidade da reconvenção, assim garantindo unicamente a sua legalidade formal, não resultando daí qualquer juízo sobre o seu mérito [...], tais requisitos são indispensáveis à admissibilidade da reconvenção, sem que se confundam com os que são necessários à apreciação do seu mérito, o qual é apreciado num momento posterior, no caso de ser admitida.
 
Por isso, tem sido entendido que a inadmissibilidade da reconvenção, por falta de conexão entre os pedidos principal e reconvencional, constitui uma excepção dilatória inominada que conduz à absolvição da instância reconvencional [...]. 
 
Também tem sido entendido, senão de forma unânime pelo menos largamente maioritária, que a reconvenção pode ser deduzida condicionalmente para a hipótese de procedência da acção, ficando subordinada à condição da procedência da pretensão dos autores [...].
 
Porém, dependendo o pedido reconvencional do pedido formulado pelo autor, a improcedência da acção ou a absolvição do réu da instância obstam à apreciação da reconvenção.

É o que consagra o n.º 6 do art.º 266.º do CPC ao estabelecer que “[a] improcedência da acção e a absolvição do réu da instância não obstam à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido, salvo quando este seja dependente do formulado pelo autor”. 

Daqui resulta que a apreciação do pedido reconvencional está excluída quando a sua procedência dependa da procedência do pedido do autor, quer este seja julgado improcedente (por inconcludência, falta de prova da causa de pedir ou por proceder uma excepção peremptória) quer seja inadmissível (por proceder uma excepção dilatória). “A improcedência da acção constitui decisão prejudicial em face do pedido reconvencional, ao passo que a absolvição do réu da instância gera absolvição da instância reconvencional” [
Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [Código de Processo Civil Anotado I, 3.ª ed.], pág. 524.].

No caso em apreço, estamos perante uma acção de impugnação da resolução, operada pela Administradora da Insolvência a favor da Massa Insolvente ré, prevista no art.º 125.º do CIRE.
 
Trata-se de uma acção de simples apreciação negativa, visando a demonstração da inexistência ou a não verificação dos pressupostos legais da resolução declarada pelo administrador da insolvência na carta resolutiva, cabendo, por isso, à massa insolvente o ónus da prova da verificação dos pressupostos da resolução assim operada e não ao impugnante a prova de que tais pressupostos não se verificam, em consonância com o plasmado no n.º 1 do art.º 343.º do Código Civil, como vem sustentando a jurisprudência largamente maioritária [...].
 
Como acção de simples apreciação negativa, tem por fim obter unicamente a declaração da inexistência de um direito ou de um facto [cfr. art.º 10.º, n.º 3, alínea a) do CPC].
 
Não vem questionada a resolução efectuada, quer no que respeita aos fundamentos de facto, quer no que concerne às razões de direito invocados pela Administradora da Insolvência na declaração resolutiva, nem os mesmos foram apreciados na sentença recorrida, por se ter entendido que estava verificada a caducidade, por decisão transitada em jugado, o que impedia o prosseguimento destes autos, dando lugar à absolvição da ré da instância."


3. [Comentário] a) Com o devido respeito pela doutrina citada no acórdão, não se pode acompanhar totalmente a afirmação, realizada no contexto das relações entre o pedido reconvencional e o pedido do autor ou de defesa do réu, de que "a improcedência da acção constitui decisão prejudicial em face do pedido reconvencional, ao passo que a absolvição do réu da instância gera absolvição da instância reconvencional”. 

A absolvição do réu da instância não pode determinar a absolvição do réu (autor da acção) da instância reconvencional, dado que a não verificação da condição a que está submetida a apreciação de um pedido nunca determina a absolvição da instância quando essa condição não se verifica. Por exemplo: a parte formula um pedido principal e, para a hipótese de esse pedido não vir a ser julgado procedente, formula um pedido subsidiário (cf. art. 554.º, n.º 1, CPC); se este pedido não vier a ser apreciado pela circunstância de o pedido principal ser considerado procedente, o réu não é absolvido da instância quanto ao pedido subsidiário. O que sucede é que a procedência do pedido principal prejudica a apreciação do pedido subsidiário.

O mesmo tem de suceder quando o pedido reconvencional for dependente da procedência ou da improcedência do pedido do autor e este pedido nem sequer chegar a ser apreciado, dado que uma excepção dilatória obsta ao conhecimento do mérito desse pedido. Por exemplo: suponha-se que o réu formula um pedido reconvencional, pedindo uma indemnização no caso de o pedido de declaração de nulidade formulado pelo autor ser julgado procedente; se o réu for absolvido da instância com base em incompetência absoluta do tribunal, o autor (réu do pedido reconvencional) não é absolvido da instância quanto à reconvenção deduzida pelo réu.

Em conclusão: a não verificação da condição a que um pedido processual está condicionado (nos raros casos em que tal é admissível) não constitui uma excepção dilatória e, por isso, não pode conduzir à absolvição da instância relativamente a esse pedido.

b) No acórdão qualifica-se (é certo que seguindo alguma jurisprudência) a acção de impugnação da resolução em beneficio da massa insolvente como uma acção de apreciação negativa. O direito de impugnação é tipicamente um poder concedido a um interessado e uma acção de impugnação é tipicamente uma acção constitutiva, dado que visa produzir uma alteração na ordem jurídica existente (cf. art. 10.º, n.º 3, al. c), CPC) (in casu, a subsistência de um negócio celebrado pelo insolvente e entretanto resolvido pelo administrador de insolvência a favor da massa insolvente).

c) Também não se pode acompanhar a interpretação que a RP faz do disposto no art. 343.º, n.º 1, CC, desde logo porque o preceito, de acordo com o seu próprio sentido textual, pressupõe que o réu se arrogue um direito e alegue os correspondentes factos constitutivos. É, aliás, esta a razão pela qual, segundo a regra de que o ónus da prova acompanha o ónus de alegação, é atribuído ao réu o ónus da prova desses factos.


A única forma que o réu tem de se arrogar um direito e alegar factos constitutivos numa qualquer acção -- e, portanto, também numa acção de apreciação negativa -- é através da dedução de um pedido reconvencional (cf. art. 266.º, n.º 1, CPC). Curiosamente, o acórdão nega a admissibilidade da dedução da reconvenção nas acções de apreciação negativa, pelo que, mesmo sem discutir esta mais que discutível afirmação e considerando apenas que o acórdão qualifica a acção de impugnação como uma acção de apreciação negativa, acaba por se negar no próprio acórdão a única possibilidade que permite e justifica a aplicação do disposto no art. 343.º, n.º 1, CC.

Quanto ao mais, remete-se para o referido em Jurisprudência (564).

MTS