"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/11/2017

Jurisprudência (732)


Processo de inventário; 
sigilo bancário; escusa; levantamento; competência


1. O sumário de RP 22/5/2017 (271/13.2TMPRT-A.P1) é o seguinte:

I - O Regime Jurídico do Processo de Inventário veio instituir um “sistema mitigado”, na medida em que se atribuiu competência ao Notário para tramitar e instruir o processo, que corre os seus termos no Cartório Notarial, atribuindo competência ao juiz para intervir no processo em situações pontuais e expressamente previstas na lei, reservando-se o direito de ação judicial relativamente às questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário e devem ser decididas pelo juiz do tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado (art. 3º e art. 16º RJPI).
 
II - Nos termos do art. 122º/2 LOSJ as seções de família e menores exercem as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de divórcio.
 
III - A Instância Central de Família e Menores do Porto não tem competência em razão da matéria para instruir e promover o processo de inventário subsequente a divórcio, nem as diligências de notificação próprias do processo de inventário.
 
IV - Constitui matéria da competência do Notário solicitar as informações bancárias requeridas pelo cabeça-de-casal e notificar o titular da conta para as prestar ou notificar para autorizar que as instituições bancárias as prestem, ao abrigo do disposto no art.27º/1 RJPI.
 
V - Perante a escusa das entidades bancárias em fornecer tais informações, pelo Notário ou a requerimento das partes, deve o processo ser remetido ao juiz competente, nos termos do art. 3º RJPI, para apreciar da legitimidade da escusa e para promover o incidente de dispensa de sigilo bancário, nos termos das disposições conjugadas do art. 16º/1, art. 417º CPC e art. 135º CPP, por remissão do art. 82º RJPI.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"As instituições bancárias, ainda que terceiros em relação ao processo de inventário, estão obrigados ao dever de cooperação.

O dever de cooperação para a descoberta da verdade consagrado no art. 417º/1 CPC determina que:

“Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.”

A recusa de colaboração faz incorrer o faltoso nas sanções previstas no nº2 do citado preceito – multa, inversão do ónus da prova.

Contudo, nos termos do art. 417º/3 CPC, a recusa mostra-se legitima nas seguintes circunstâncias:

a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;

b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;

c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no nº 4.

No nº 4 determina-se o procedimento a seguir quanto à legitimidade da escusa e dispensa do dever de sigilo invocado, remetendo-se para as normas do processo penal:

4. Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.

Quanto à possível quebra dos deveres de sigilo propriamente dito, a lei de processo remete inteiramente para o estatuído no Código de Processo Penal sobre tal tema, por se entender que não seria viável estabelecer no âmbito das ações cíveis um sistema mais facilitado ou menos solene de apreciação das escusas apresentadas.

No domínio do processo penal, o art. 135º/3 CPP prevê o procedimento a adotar e competência para a decisão, nomeadamente, o critério a seguir na apreciação do pedido de dispensa de sigilo (ressalvadas as possibilidades do segredo religioso e do segredo de Estado – art. 135 e 137º CPP).

Estatui o art. 135º/3 CPP

1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.

2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento
.

3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

4 - Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.

5 - O disposto nos n.os 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.

Suscitada a escusa, como refere LOPES DO REGO podem configurar-se três situações:

- invocada a escusa e havendo dúvidas fundadas sobre a invocação, é ao juiz da causa (sublinhado nosso) que compete proceder às averiguações necessárias e – caso conclua pela ilegitimidade da escusa – determinar a forma de cooperação requerida;

- sendo a escusa fundada em sigilo efetivamente existente, é ao tribunal imediatamente superior (sublinhado nosso) àquele em que o incidente se tiver suscitado que incumbe decidir da efetiva prestação da cooperação requerida, com preterição do dever de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante;

- estando em causa sigilo profissional, a decisão do tribunal (sublinhado nosso) é tomada ouvido o organismo representativo da profissão com ele relacionada, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a tal organismo seja aplicável [CARLOS FRANCISCO DE OLIVEIRA LOPES DO REGO Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1999, pag. 363].

Decorre do art. 135º/4 CPP que a escusa com fundamento em sigilo efetivamente existente deve ser suscitada junto do Tribunal de 1ª instância e cumpre ao Tribunal da Relação decidir o incidente de dispensa do sigilo “ segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos”.

Neste quadro legal constata-se existirem duas situações distintas:

- as de legitimidade de escusa; e

- as de ilegitimidade de escusa da prestação de informações por parte das entidades bancárias às autoridades judiciárias.

A escusa é legítima quando resulta do cumprimento de um dever legal, ou seja, do cumprimento do dever de segredo a que a instituição bancária está obrigada nos termos do art. 78º do Dec. Lei nº 298/92, de 31.12.

A escusa é ilegítima quando o facto ou elemento solicitado não estiver compreendido no âmbito do sigilo bancário ou quando tiver havido consentimento do titular da conta.

O nº 2 do art. 135º reporta-se ao caso da ilegitimidade da escusa, o que pode ocorrer quando os elementos em causa não estão legalmente cobertos pelo segredo bancário ou porque houve autorização do titular da conta.

Prevê a norma nessa hipótese que o próprio tribunal onde ela é efetuada ordena, oficiosamente ou a pedido, a prestação das informações, não podendo a instituição bancária subtrair-se ao cumprimento do ordenado.

Nas situações de legitimidade da escusa, a qual resulta de os elementos estarem abrangidos pelo segredo e não existir autorização por parte do titular da conta, a obtenção das informações bancárias já não poderá ser determinada sem a ponderação dos interesses que se mostram em confronto: de um lado, os interesses protegidos pelo segredo bancário; do outro, os interesses na realização da justiça, a ser efetuado no âmbito do incidente de quebra do segredo profissional, o qual deverá ser suscitado no tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa tiver ocorrido.

Como se observa no Ac. Rel. Porto 21 de janeiro de 2014, Proc. 664/04.6TJVNF-C.P1 (www.dgsi.pt): […] tendo sido invocado o sigilo bancário, deverá o tribunal decidir se a correspondente escusa é legítima ou ilegítima. Concluindo pela ilegitimidade da escusa, ordenará a prestação das informações em causa, sem que a instituição bancária possa deixar de cumprir o ordenado. Concluindo, ao invés, pela legitimidade da escusa, dois caminhos podem ser trilhados pelo tribunal: ou se conforma com a invocação do segredo e não insiste na obtenção das informações, ou desencadeia então o incidente de quebra de segredo junto do tribunal imediatamente superior.

Com efeito, a quebra do segredo bancário, por opção do legislador, é necessariamente da competência de um tribunal superior (Tribunal da Relação ou Supremo Tribunal de Justiça), o qual não surge como uma instância residual, apenas para os casos de dúvidas sobre a legitimidade da escusa, mas sim como a instância competente para a decisão do incidente de quebra de segredo, sempre que se esteja perante uma situação em que a escusa é legítima”.

No domínio do regime jurídico do processo de inventário constitui matéria da competência do juiz avaliar da legitimidade da escusa e da necessidade de despoletar o incidente de dispensa de sigilo, porque a lei apenas atribui esse poder de decisão ao juiz por estar em causa a tutela da reserva da vida privada e a proteção de dados pessoais, matéria que contende com a tutela dos direitos, liberdades e garantias.

O dever do sigilo bancário insere-se no âmbito dos deveres de sigilo profissional a que estão sujeitas todas as entidades que prestem serviços a outrem, no que toca às relações dessas entidades com os seus clientes, bem como, todos os atos que digam respeito à vida da instituição e que as respetivas administrações não queiram que sejam conhecidas.

A natureza jurídica do sigilo ou segredo bancário vai buscar apoio no art. 26º/1 CRP (intimidade da vida privada e familiar) e art. 25º CRP (integridade moral das pessoas), pois através da análise dos movimentos de contas de depósitos ou dos movimentos com cartões, pode seguir-se a vida dos cidadãos e facultar tais elementos a terceiros é pôr termo à intimidade das pessoas e o desrespeito pelo segredo bancário põe ainda em causa a integridade moral das pessoas atingidas. A revelação de depósitos, movimentos e despesas pode ser fonte de pressão, de troça ou de suspeição.

O segredo bancário deriva também de uma relação contratual, como dever acessório, imposto pela boa fé (art. 762º/2 CC) [ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Manual de Direito Bancário, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 265].[...]
 
Na situação concreta, constata-se que a questão suscitada pela apelante em sede de processo de inventário e que motivou o despacho da senhora Notária pode e deve ser decidida em sede de processo de inventário, não se mostra complexa, pois basta que se promovam as notificações do titular da conta e das instituições bancárias nos termos do art.27º/1 RJPI para obter os elementos em falta e só perante a escusa de fornecer tais informações se deve apresentar o processo ao juiz para apreciar da legitimidade da escusa e para promover o incidente de dispensa de sigilo bancário.

O Regime Jurídico de Processo de Inventário não atribui tais competências ao Notário, mantendo-se tal matéria na reserva de competência do Juiz.

Neste sentido e já no domínio do Regime Jurídico do Processo de Inventário, encontrando-se pendente o processo no Cartório Notarial, se pronunciou o Ac. Rel. Guimarães 10 de março de 2016, Proc. 42/16.4T8FAF-A.G1 (www.dgsi.pt): “quando for invocado o direito de escusa, o juiz terá que, desde logo, decidir se essa escusa é, ou não, legítima. E, concluindo que ela é legítima pode, então, nos termos do n.º 3 deste artigo 135.º, suscitar junto do tribunal que, em termos hierárquicos, lhe é imediatamente superior, a quebra do segredo, nomeadamente quando entender que esta se mostra imprescindível para "a descoberta da verdade"”. E acrescenta-se mais adiante: “[a] procedência deste incidente pressupõe, para além do mais, que o acesso à informação pretendida foi recusado, pois só nesse caso é que se coloca a questão de saber se, havendo essa recusa, esta é, ou não, legítima”.

Como já se referiu e resulta do art. 417º/ 3 c) CPC, a recusa é legítima se a obediência importar violação do sigilo profissional. Contudo, não resulta do despacho da senhora Notária que as instituições bancárias foram notificadas e se escusaram a prestar as informações ou invocaram o sigilo bancário.

O titular da conta bancária não prestou o seu consentimento nos autos, no sentido de autorizar a entidade bancária a prestar as informações, nem foi realizada qualquer diligência nesse sentido. Obtida autorização do titular da conta a instituição bancária não pode escusar-se a fornecer as informações solicitadas, conforme resulta do disposto no art. 79º/1 do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, na redação do DL 222/99 de 22/06.

O despacho recorrido indeferiu liminarmente o requerimento inicial por não estarem reunidos os pressupostos para promover a dispensa de sigilo bancário.

Considerando que o incidente se insere na normal tramitação do processo de inventário que corre os seus termos no cartório notarial, o tribunal – no caso a Instância Central de Família e Menores do Porto - da mesma forma que não tem competência em razão da matéria para instruir o processo de inventário, continua a não ter competência em razão da matéria para promover autonomamente a instrução do incidente para aferir da legitimidade da escusa, justificando-se pois o indeferimento liminar apenas com fundamento na exceção de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria."
 
[MTS]