"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/11/2017

Jurisprudência (721)


Nulidade da sentença; condenação ultra petitum;
condenação extra petitum; decisão surpresa


1. O sumário de STJ 27/4/2017 (685/03.6TBPRG.G1.S1) é o seguinte:
 
I - Não se verifica a nulidade do acórdão, por condenação em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, quando o tribunal, eventualmente, se baseia para a condenação no pedido, em fundamentos jurídicos distintos dos invocados pelo autor.

II - Não incorre em nulidade, por excesso de pronúncia, nem constitui situação subsumível ao conceito de «decisão-surpresa», a decisão que reconhece ao lesado o direito a uma indemnização pela privação do uso de um bem de que é proprietário, suscetível de ser concretizada, através da obrigação do pagamento do valor correspondente à locação do bem, no período da forçada indisponibilidade da sua fruição pelo respetivo titular.

III - Encontrando-se acertada a existência de um dano indemnizável, mas não o montante exato do mesmo, a fixação da indemnização, segundo critérios de equidade, só será de excluir se não for possível ao tribunal, por total carência de elementos, determinar os limites dentro dos quais se deve fazer a avaliação, ou seja, quando o tribunal não puder estabelecer o exato montante do dano, sendo, no entanto, ainda viável que o autor possa avançar com outros elementos para esse fim.

IV - Só quando não é possível efetuar a liquidação ou concretização, no decurso da ação, é que o juiz profere sentença de condenação, em prestação genérica de indemnização, em conformidade com o estipulado pelo art. 609.º, n.º 2, do CPC.

V - A questão da ressarcibilidade da «privação do uso» não pode ser apreciada e decidida, em abstrato, aferida pela mera impossibilidade objetiva de utilização da coisa, porquanto a mera privação do uso do bem, independentemente da demonstração de factos reveladores de um dano específico emergente ou de um lucro cessante, é insuscetível de fundar a obrigação de indemnização, no quadro da responsabilidade civil.

VI - É, a partir do momento da citação, ainda que os réus estivessem na convicção de que possuíam, justamente, o bem, que estes se colocam na situação de má fé, praticando, a partir de então, com a ocupação do mesmo, um facto ilícito e culposo, sendo responsáveis por todos os prejuízos causados no objeto possuído, desde que sejam direta ou, indiretamente, consequência da sua posse. 
 
2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
 
AA e esposa, BB, propuseram a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra CC e esposa, DD, EE e esposa, FF e GG e esposa, HH, pedindo que, na sua procedência, se declare o reconhecimento aos autores do direito de propriedade sobre um prédio rústico, com a área de 1.598 m2, e que confronta do norte com GG e outros, de sul Variante à EN 108, nascente com AA e do poente com a Câmara Municipal do ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ... como parte do artigo 294.°-B [a], sejam declarados ineficazes, em relação aos autores, os contratos de cedência de uso de terreno que identificam [b], os réus sejam condenados a entregar aos autores as parcelas de terreno que ocupam, ao abrigo dos contratos de cedência de uso de terreno que identificam, livres e desocupadas, de bens, pessoas, animais e coisas [c], que os réus sejam condenados a pagar aos autores a quantia de €20.700,00, e mais a quantia de €300,00 euros, por cada mês de ocupação, até à entrega efetiva das parcelas que, abusivamente, ocupam [d]" [...]. [...]
 
A sentença decidiu “a) Reconhecer aos AA a titularidade do direito de propriedade sobre um prédio rústico com a área de 1.598 m2 e que confronta do norte com GG e outros, Sul com Variante à EN 108, Nascente com AA e do Poente com Câmara Municipal do ...;

b) Condenar os RR a entregar aos AA as parcelas de terreno que ocupam ao abrigo dos contratos de cedência de uso de terreno;

c) Condenar os RR a pagar aos AA a quantia de €11.500 (onze mil e quinhentos euros);

d) Condenar os RR a pagar aos AA a quantia de €100 (cem euros), por cada mês de ocupação das parcelas de terreno que ocupam desde a data daquela sentença e até à sua entrega efetiva aos AA;

e) Julgar improcedente a ação no demais peticionado, nessa parte se absolvendo os RR do pedido”
.

Desta sentença, os réus e os autores interpuseram recurso, limitado à matéria dos danos/indemnização, tendo o Tribunal da Relação ordenado a anulação das alíneas c) e d) do dispositivo da sentença, retomando-se o julgamento com produção de prova necessária, tendo, em seguida, sido proferida nova sentença, que decidiu “julgar a presente ação parcialmente procedente e, em consequência:

a) Condenam-se os R.R. a pagar aos A.A. a quantia de €11.500 (onze mil e quinhentos euros);

b) Julga-se a ação improcedente no demais peticionado não expressamente reconhecido nas als. a) e b) do segmento decisório da sentença constante de fls. 691 e ss. e na al. a) do segmento decisório da presente sentença, nessa parte se absolvendo os R.R. do pedido.
”.

Desta segunda sentença, autores e réus interpuseram, de novo, recurso, tendo o Tribunal da Relação “julgado improcedente as apelações e, consequentemente, confirmado a decisão recorrida”. [...]

II. DA NULIDADE DO ACÓRDÃO POR EXCESSO DE PRONÚNCIA

II. 1. Alegam [...] os réus recorrentes que o acórdão impugnado é nulo, por incorrer em excesso de pronúncia, ao apreciar questão não suscitada pelas partes (dano de privação do uso), o que configura uma verdadeira decisão surpresa, pois que os autores deduziram o pedido, com fundamento na “perda de valor locativo”, tendo o acórdão condenado em indemnização, socorrendo-se de um juízo de equidade, pelo “dano de privação do uso”.

Preceitua o artigo 615º, nº 1, d), do CPC, que “é nula a sentença quando o juiz… conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;”.

O acórdão recorrido considerou, a este propósito, que “constata-se que os autores pretendiam valorizar aquele espaço com uma vedação, colocando-o no mercado do arrendamento, … e até usando-o para armazém. Isto é revelador de que os autores ficaram privados de usar e de frutificar o seu prédio, traduzindo-se num dano concreto na esfera jurídica de quem é proprietário. Não se está apenas numa situação de dano abstrato emergente da ocupação. Esta reflete-se concretamente em prejuízos de ordem económica e moral na pessoa dos réus, enquanto titulares do direito de propriedade, constrangido pelos atos de ocupação dos réus. Daí que julgamos que há fundamento para condenar os réus numa indemnização segundo o instituto da privação do uso de um bem imóvel,…”.

O reconhecimento ao lesado do direito a uma indemnização pela privação do uso de um bem de que é proprietário, a cargo do lesante, na lógica do princípio da restauração «in natura», é suscetível de ser concretizado, através da obrigação do pagamento do valor correspondente à locação do bem, no período da forçada indisponibilidade da sua fruição pelo respetivo titular.

Muito embora não seja de privilegiar, necessariamente, o valor locativo como critério de indemnização pela privação do uso da coisa [...], desde logo, por ser diferente o valor do uso do valor da locação [...], tem-se adotado esse valor locativo, apenas, como ponto de referência na determinação do valor do dano da privação do bem [...].

Deste modo, o acórdão recorrido, ainda que com fundamentação jurídica, parcialmente, diversa da invocada pelos autores, decidiu a questão que importava conhecer, não tendo ultrapassado o que lhe foi pedido pelas partes e, consequentemente, não incorreu na nulidade, por excesso de pronúncia, a que se reportam os artigos 615º, nº 1, d) e 666º, nº 1, ambos do CPC.

II. 2. Invocam, igualmente, os réus que o acórdão impugnado, ao apreciar a questão da privação do uso, incorreu em «decisão surpresa».

Com efeito, o princípio da proibição das decisões-surpresa, que assenta em fundamentos que não foram, nem se configura que pudessem ter sido, anteriormente, ponderados pelas partes, e que constituem postergação ou violação do princípio do contraditório, aplica-se, apenas, nos casos em que a qualificação jurídica que o juiz se propõe adotar não corresponde aquela com que as partes, pelas posições assumidas, possam contar [...].

Por isso, só cabem, no âmbito das decisões-surpresa, aquelas que, embora, juridicamente, possíveis, não foram peticionadas, e que as partes não tinham o dever de prognosticar, antes estabelecem uma relação colateral com o pedido formulado para a concreta decisão da causa [...].

Porém, como já foi dito, em II. 1., a fundamentação jurídica adotada pelo acórdão, ainda que, parcialmente, diversa da invocada pelos autores, permitiu decidir a questão que importava conhecer, sem que o tribunal «a quo» tenha ultrapassado a factualidade invocada e o pedido formulado.

Não se verifica, pois, o alegado vício da nulidade do acórdão, por excesso de pronúncia, a que se reportam os artigos 615º, nº 1, d) e 606º, nº 1, ambos do CPC, nem uma situação subsumível ao conceito de «decisão-surpresa»."
 
[MTS]