"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/05/2018

Jurisprudência 2018 (13)


Arresto preventivo; depósito bancário;
bens comuns


1. O sumário de RP 24/1/2018 (14407/13.0TDPRT-D.P3) é o seguinte

I – São da exclusiva responsabilidade do cônjuge a que respeitam, as dívidas provenientes de crimes e as indemnizações, restituições, custas judiciais ou multas devidas por factos imputáveis a cada um dos cônjuges (artº 1692º al. b) CC).

II – Presumem-se bens comuns, os saldos credores de contas de depósitos bancários, sendo o regime de bens entre os cônjuges o da comunhão de bens adquiridos e não resultando da factualidade provada que as quantias delas contantes tivessem sido trazidas para o casamento, nem que fossem resultado da alienação do bens próprios e tendo em conta a presunção legal do artº 1725º CC.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Se, em face da matéria de facto apurada, o arresto deve ser reduzido a metade dos saldos credores daquelas contas bancárias domiciliadas na D…, no E… e na F…, em que o arguido C… figura como titular ou co-titular.
 
Prevê o n.º 1 do art. 342º do C.P.C. o facto de ter sido ordenado e efectivado algum acto judicial de entrega de bens que ofenda a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência de que seja titular quem não é parte na causa, e estatui que o lesado pode fazê-lo valer através de embargos de terceiro.
 
Deste normativo resulta que os embargos de terceiro pressupõem que o embargante tenha a posição de terceiro, ou seja, que não haja intervindo no processo ou no acto jurídico de que emana a diligência judicial e que o mesmo tenha a posse sobre a coisa objecto dessa diligência, ou seja titular de qualquer direito sobre ela incompatível com a realização ou o âmbito da diligência.
 
Hoje, quer esteja em causa a posse, o direito de propriedade ou outro direito incompatível com a diligência judicial, o lesado pode defender-se através de embargos de terceiro, como expressamente justificou o legislador no preâmbulo do DL nº 329-A/95, quando referiu que “relativamente ao regime proposto para os embargos de terceiro, salienta-se a possibilidade de, através deles, o embargante poder efectivar qualquer direito incompatível com o ato de agressão patrimonial cometido, que não apenas a posse”, logo acrescentando que assim se permite “que os direitos «substanciais» atingidos ilegalmente pela penhora ou outro ato de apreensão judicial de bens possam ser invocados, desde logo, pelo lesado no próprio processo em que a diligência ofensiva teve lugar, em vez de o orientar necessariamente para a propositura de acção de reivindicação, por esta via se obstando, no caso de a oposição do embargante se revelar fundada, à própria venda dos bens e prevenindo a possível necessidade de ulterior anulação desta, no caso de procedência de reivindicação” (cfr. Prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, Ed., 1999, pgs. 614 e segs). Este entendimento foi mantido na recente reforma processual operada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho.
 
In casu, num enquadramento prévio, importa referir que o arresto dos saldos credores das contas bancárias em causa foi determinado, expressamente, "atenta a existência de fumus boni iuris e o periculum in mora, (…), de modo a acautelar que a vantagem da actividade criminosa aqui em investigação, assim como as garantias de pagamento de eventuais penas pecuniárias e outros créditos, se dissipem (…) ex vi das disposições conjugadas nos arts. 111.°, nºs 2, 3 e 4, do C. Penal, 228.° do Código de Processo Penal e 391.° a 393.° do C. Pr. Civil." (cfr. despacho determinativo do arresto, cuja certidão consta a fls. 350 a 353 do 2º Volume Anexo).
 
Trata-se, por conseguinte, de um arresto preventivo (artigo 228º, 1, do Código de Processo Penal), de acordo com a legislação processual penal geral e observando o disposto na lei processual civil.
 
Esse enquadramento legal plasmado na decisão que ordenou o arresto preventivo não se confunde com o robusto regime (especial) de perda ampliada (arts. 7.° e seguintes da Lei n.° 5/2002, de 11 de Janeiro), regime este que não foi invocado, nem serviu como argumento por parte do Ministério Público aquando da petição do arresto.
 
Por isso, a decisão que decretou o arresto dos saldos credores das contas bancárias em causa nos presentes autos – umas co-tituladas pela embargante e outras apenas tituladas pelo arguido C… - fê-lo nos termos da lei processual penal geral e da lei processual civil.
 
No recurso em apreciação, a embargante reclama que o arresto do saldo das contas bancárias em causa (sejam tituladas pelo arguido ou co-tituladas entre si e o arguido) apenas deveria ter incidido na meação do arguido, e não em três quartas partes desse saldo, como acabou por decidir o tribunal a quo.
 
Desde já adiantando, perante a factualidade que veio a ser dada como provada, assiste inteira razão à recorrente.
 
Aliás, pela leitura da decisão recorrida, verifica-se que o Sr. Juiz a quo, depois de considerar que por virtude do regime de bens de casamento a embargante se presume ser titular de metade das quantias existentes naquelas contas bancárias arrestadas, em vez de reflectir na decisão a tutela jurídica desse direito próprio da embargante (que seria a redução do arresto apenas ao equivalente à meação do arguido), inflecte o raciocínio e, com base em critérios de oportunidade, entende manter a afectação pelo arresto do direito da embargante numa percentagem que, quiçá com base na equidade, acaba por fixar em metade do direito desta.
 
Ora, a decisão judicial que cabe nos embargos de terceiro para tutela do direito reconhecido ao embargante não pode assentar em critérios de oportunidade e/ou equidade, mas apenas de legalidade estrita.
 
Dito isto, analisemos a questão.
 
Consabido que tendo a providência cautelar de arresto a finalidade de conservar a garantia patrimonial do credor, que se consubstancia no património do devedor – se o responsável exclusivo pela dívida a terceiro for apenas um dos cônjuges, apenas o património deste deverá responder pela dívida, cfr. arts. 601º e 1696º, do Código Civil, e já não o do seu cônjuge - não poderão ser arrestados bens de terceiros que não partes no procedimento que motivou o arresto, ainda que estes sejam co-titulares de uma conta, conjunta ou solidária, com o devedor. Ao arresto, previsto nos arts. 619º do Código Civil e 391º e ss., do Código de Processo Civil, aplicam-se as normas relativas à penhora, em tudo o que não contrarie o regime especifico do arresto, de acordo com o art. 391º, nº2, do Código de Processo Civil.
 
Por outro lado, decorre do art. 1692º al. b) do Código Civil que são de exclusiva responsabilidade do cônjuge a que respeitam, as dívidas provenientes de crimes e as indemnizações, restituições, custas judiciais ou multas devidas por factos imputáveis a cada um dos cônjuges.
 
Ora, no que às contas bancárias co-tituladas pelo arguido C… e a aqui embargante sua esposa, e sem sequer ter em atenção de que entre os mesmos vigora o regime de comunhão de bens adquiridos, na falta de prova acerca da propriedade ou proveniência dos valores que atingiram os saldos dessas contas, vigora a presunção legal de que ambos os co-titulares comparticiparam em partes iguais para o atingimento desses saldos credores (cfr. art. 516º do Código Civil).
 
Lendo a factualidade provada, verifica-se que não existe facto algum que nos permita concluir que o dinheiro depositado nessas contas é bem próprio do arguido ou foi exclusivamente aforrado por este, seja em resultado de que actividade fora; bem pelo contrário, foi demonstrado que esse dinheiro é resultado do esforço comum de ambos os cônjuges, do aforro que ambos conseguiram fazer do rendimento do trabalho de ambos.
 
Por isso, tendo em conta que da factualidade dada como provada não resulta minimamente ilidida essa presunção iuris tantum, é de concluir que o dinheiro reflectido nos saldos credores de tais contas, titulados por um ou por ambos os cônjuges, é um bem comum do casal, de modo que cada um dos membros do casal é titular, sobre esse dinheiro, de um direito à respectiva meação, ou seja, em termos meramente ideias, um direito próprio sobre o equivalente a metade dos saldos.
 
Esta ideia vale nos preciso termos também para as contas bancárias tituladas apenas pelo arguido C…. Com efeito, sendo o regime de bens do casamento a comunhão de bens adquiridos, e não resultando da factualidade dada como provada que as quantias naquelas constantes tivessem sido por ele trazidas para o casamento, nem que fossem resultado da alienação de seus bens próprios e tendo ainda em atenção a presunção legal decorrente do art. 1725º do Código Civil, os saldos credores daquelas constas (como bens móveis que se tratam) presumem-se igualmente bem comum. Nessa decorrência, o arresto dos saldos credores de tais contas na parte em que excedeu a metade do arguido surge lesiva do direito à meação da embargante recorrente, pelo que a esta tem toda a legitimidade de lhe ver reconhecido tal direito.
 
Cabia ao Ministério Público, como sujeito processual que nos autos principais requereu o arresto, o ónus da prova de que a parte sobrante daquela presumida meação do arguido também a este pertencesse ou fosse resultante dos proventos ou vantagens decorrentes da prática dos actos delituosos em investigação naqueles autos.
 
Não tendo o Ministério Público logrado fazer prova disso, é inevitável que pelo facto do arresto ter incidido também sobre uma quota parte de bens não pertencentes ao arguido, ou seja sobre a metade que pertencia à embargante/recorrente, deverá o mesmo ser levantado em relação a essa quota parte de metade que pertence à embargante.
 
Em suma: impõe-se a redução do arresto a metade dos saldos credores das contas bancárias tituladas ou co-tituladas pelo arguido, e não a três quartas partes como decidira o tribunal a quo.
 
Merece, assim, provimento o recurso quanto a esta questão."
 
[MTS]