Pessoas colectivas;
protecção jurídica
1. TC 8/5/2018 (248/2018) decidiu:
[...] declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 7.º, n.º 3, Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, na redação dada pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto, na parte em que recusa proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos, sem consideração pela concreta situação económica das mesmas, por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
2. O acórdão contém vários votos de vencido, entre os quais o seguinte:
"1. Vencida.
Entendo que o Tribunal deveria ter mantido, no essencial, a jurisprudência estabelecida no Acórdão de Plenário n.º 216/2010, que decidiu não julgar inconstitucional, por violação dos artigos 12.º, n.º 2, 13.º, 20.º, 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 34/2004 de 29 de julho, com a redação dada pela Lei n.º 47/2007 de 28 de agosto (a Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais, LADT).
Não acompanho um tal juízo de inconstitucionalidade.
2. Diferentemente da maioria, entendo que a solução legal que não garante o apoio judiciário, em regra, às pessoas coletivas com escopo lucrativo não ofende, por si só, o artigo 20.º da Constituição, não configurando uma ablação do direito fundamental de acesso ao direito e à justiça, antes uma compressão que sobrevive ao teste de proporcionalidade numa ponderação baseada nos regimes legais aplicáveis.
Como ponto de partida, note-se que mesmo as pessoas coletivas sem fins lucrativos não dispõem de acesso total à proteção jurídica, já que, em caso de insuficiência económica, apenas têm direito à proteção jurídica na modalidade de apoio judiciário (artigo 7.º, n.º 4, da LADT). Por outro lado, é recusada a proteção a toda e qualquer pessoa coletiva que alienou ou onerou todos os seus bens para se colocar em condições de obter proteção jurídica (artigo 7.º, n.º 5, da LADT).
Não é, portanto, apenas um critério económico aquele que está na base da opção tomada pelo legislador de concessão, ou não, de proteção jurídica (nas suas diversas modalidades) às pessoas coletivas. Há que conjugá-lo com um critério de interesse público ou geral na concessão de um apoio de valor económico que onera toda a comunidade. Importa, assim, ponderar todos os interesses em presença o que não dispensa a análise de todo o regime legal instituído, designadamente em sede de recuperação de empresas em situação de insuficiência económica.
Na ponderação dos interesses em presença feita pelo legislador, no âmbito da sua liberdade de conformação na concretização prática do conceito de insuficiência económica para efeito do apoio judiciário, não se ignorou que, diferentemente das pessoas coletivas com escopo lucrativo, as pessoas coletivas sem fins lucrativos têm subjacente a prossecução de um interesse geral ou mesmo altruístico. Essa será a razão pela qual apenas estas deverão poder beneficiar de apoio judiciário, justificando que se onere toda a comunidade com as despesas inerentes à defesa dos seus direitos em tribunal, desde que se prove a sua insuficiência económica. Em conformidade, exclui-se da proteção jurídica apenas as sociedades comerciais ou constituídas em forma comercial (para além dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada os quais, de todo o modo, não foram abrangidos pela decisão do acórdão de generalização) que tenham por função caracterizadora a obtenção de lucros económicos a distribuir pelos seus sócios. Uma tal solução assenta, portanto, na distinção entre pessoas coletivas com fins lucrativos e pessoas coletivas sem fins lucrativos, o que significa que o critério legal de concessão do referido benefício se centra na finalidade estatutária da pessoa coletiva.
3. Não me parece que uma tal opção, por si só, possa merecer censura constitucional.
Existe um fundamento material bastante para que o legislador limite o apoio que concede às pessoas coletivas com fins lucrativos em matéria de acesso ao direito e aos tribunais. Desde logo, aquela limitação encontra justificação na circunstância de os custos com a litigância decorrente da própria vida comercial normal das empresas e o seu escopo lucrativo serem integrados na planificação da atividade empresarial normal e ulteriormente repercutidos no preço final dos bens e serviços fornecidos ao consumidor. Acresce que os custos derivados de contencioso podem ser deduzidos aos rendimentos das pessoas coletivas para efeitos tributários.
Assim, a impossibilidade de suportar os custos com litígios, designadamente os decorrentes da própria vida comercial da pessoa coletiva evidencia o perigo da inviabilidade económica da empresa e, no limite, a própria inviabilidade (falência) da pessoa jurídica cuja constituição - é conveniente não esquecer - se justifica apenas para o exercício dessa atividade empresarial.
É, portanto, a própria natureza das coisas que impõe que as pessoas coletivas instituídas para a realização de uma atividade económica destinada à obtenção de lucros devam encontrar-se dotadas de uma estrutura organizativa e financeira capaz de fazer face aos custos previsíveis da sua atividade, incluindo os que resultem da litigiosidade normal que a gestão comercial frequentemente implica.
4. Para além disso, é também preciso tomar em devida conta que o legislador não deixou as pessoas coletivas com fins lucrativos totalmente desprotegidas no que respeita a despesas com a defesa dos seus direitos e o acesso aos tribunais. A alínea u) do n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento das Custas Processuais isenta de custas «As sociedades civis ou comerciais, as cooperativas e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada que estejam em situação de insolvência ou em processo de recuperação de empresa, nos termos da lei, salvo no que respeita às acções que tenham por objecto litígios relativos ao direito do trabalho». As dificuldades económicas das pessoas coletivas com fim lucrativo relevam, por conseguinte, no seio do Processo Especial de Revitalização (PER) instituído pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, que alterou o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE). E é razoável que assim seja dada a convergência de sentido útil da proteção jurídica (isenção ou redução, total ou parcial, de custas) e o fim do processo especial da revitalização da empresa o qual se destina a facultar aos devedores em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente um mecanismo ágil e célere de encontrarem, com os respetivos credores, um plano que permita a sua recuperação (artigos 17.º-A e ss. do CIRE).
Note-se que se encontra em «situação económica difícil a empresa que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito» (artigo 17.º-B do CIRE). A dificuldade em fazer face a custas judiciais representa uma situação de dificuldade da empresa em cumprir as suas obrigações. Dificuldade esta que num contexto de atividade económica se repercute nos demais credores. Neste quadro, a concessão de apoio judiciário pode mesmo constituir um pernicioso antídoto à pronta recuperação da empresa.
Não se trata de eleger como critério da insuficiência económica das pessoas coletivas com fins lucrativos a situação de falência ou insolvência para poderem beneficiar da isenção de custas processuais, como o acórdão parece recear. Pelo contrário, procura-se obviar a que entidades viáveis do ponto de vista financeiro sejam obrigadas a colocar-se nas referidas condições com prejuízo não só para os próprios envolvidos como para os demais credores e, por conseguinte, também para a economia em geral. Este objetivo do PER permite que a isenção de custas prevista na alínea u) do n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento das Custas Judiciais seja aplicável a um vasto âmbito de empresas, servindo de alternativa constitucionalmente admissível à previsão da possibilidade de concessão de proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos, designadamente para litígios relacionados com a sua atividade económica. Consumindo as virtudes inerentes a um tal benefício, vai, aliás, muito para além dele ao não deixar esquecidos também os interesses de outros agentes económicos, designadamente os credores.
5. É importante referir igualmente que, contrariamente ao que parece inferir-se do acórdão, não decorre do Direito da União Europeia qualquer imposição de acesso pelas pessoas coletivas com fins lucrativos aos mecanismos de apoio judiciário em condições iguais às das pessoas singulares. No citado Acórdão do Tribunal de Justiça da UE (TJUE), DEB Deutsche Energiehandels- und Beratungsgesellschaft, Processo n.º C-279/09, de 22 de dezembro de 2010, é referido expressamente que «a análise do direito dos Estados‑Membros evidencia a inexistência de um princípio verdadeiramente comum partilhado pelo conjunto desses Estados em matéria de concessão de apoio judiciário às pessoas colectivas» e que «na prática dos Estados‑Membros que admitem a concessão de apoio judiciário às pessoas colectivas, existe uma distinção relativamente difundida entre pessoas colectivas com fins lucrativos e pessoas colectivas sem fins lucrativos» (n.º 44).
Também não decorre da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem qualquer imposição genérica de acesso das pessoas coletivas ao apoio judiciário igualitário face às pessoas singulares.
6. A recusa de apoio judiciário a pessoas coletivas com fins lucrativos corresponde, pois, a uma opção legítima e justificada do legislador em não querer onerar toda a comunidade com custos da justiça que aproveita apenas aos interesses económicos da pessoa coletiva com fins lucrativos que a ela recorre. Num panorama de litigiosidade crescente caracterizada em especial por instauração em massa de ações de baixo valor, que envolve particularmente as pessoas coletivas na cobrança de créditos, uma tal opção previne também a captura do apoio judiciário como instrumento de realização de interesses económicos de pessoas coletivas com fins lucrativos à custa do interesse geral.
Num contexto de limitação de meios inevitável - note-se que, em termos estritamente económicos, a administração da justiça constitui um bem que comporta custos extremamente elevados para a comunidade - é razoável que o legislador apoie prioritariamente o acesso à justiça das pessoas singulares e entidades sem fins lucrativos, em detrimento da opção de financiamento público dos custos inerentes à atividade normal e lucrativa das pessoas coletivas, as quais, sem prejuízo da relevância que têm na sociedade, não deixam de ser instrumentais em relação aos interesses das pessoas humanas. O acesso à justiça das pessoas coletivas através do apoio do Estado não representa um interesse axiológico equivalente ao da garantia de acesso à justiça das pessoas singulares. Em matéria atinente à respetiva atividade económica, a negação de proteção jurídica (apoio e patrocínio judiciário) a pessoas coletivas com fins lucrativos, a par da disponibilização de instrumentos de recuperação da empresa como os que se encontram previstos no CIRE, não implica um qualquer desvalor tendo em vista o acesso ao direito e os tribunais.
Isto não significa que a solução seja constitucionalmente imposta. Apenas que não é proibida. De resto, a questão da inclusão ou não das pessoas coletivas no âmbito pessoal de aplicação do regime jurídico da proteção jurídica em geral, foi tratada de forma diferenciada pelo legislador ao longo dos anos na concretização legal que foi fazendo do direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, oscilando ao longo do tempo entre soluções legais, ora mais abrangentes, ora mais restritivas, no apoio, compreensivamente em função da diversidade das condições financeiras existentes, mas tomando sempre como ponto assente a prioridade do financiamento público do acesso ao direito e aos tribunais por parte das pessoas singulares.
7. Ignorando a legitimidade da opção resultante da ponderação de interesses feita pelo legislador, o presente acórdão, centra o juízo de desconformidade com a Constituição decisivamente na falta de consideração pela concreta situação económica da pessoa visada. Desta forma, acaba por impor uma lógica de equiparação absoluta dos direitos das pessoas singulares aos das pessoas coletivas com fins lucrativos não contemplada pela Constituição. Por outro lado, e diferentemente do que fez em outras ocasiões (v. por exemplo, o Acórdão n.º 106/2004), neste acórdão o Tribunal não limita o juízo de inconstitucionalidade à recusa de proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos para litígios que exorbitem da respetiva atividade económica normal. Esta solução sempre permitiria conjugar, numa opção legal alternativa àatualmente em vigor, os vários interesses em presença de uma forma que responderia a muitas - eu diria, a todas - as situações zelosamente identificadas no acórdão como exemplos marginais de casos em que a insuficiência de meios económicos pode dificultar o acesso à justiça da empresa para defender os seus direitos relativamente a matérias que, por serem estranhas ao seu objeto social, não podia prever ou antecipar. Todavia, o acórdão não distingue estes litígios dos concernentes à normal atividade económica da empresa, invalidandoa norma que recusa a proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos, sem consideração pela concreta situação económica das mesmas, independentemente da natureza do litígio. Ora, o apoio judiciário, representando um custo para a comunidade em geral, não tem, nem deve ter, como escopo o financiamento da cobrança de dívidas de (ou entre) pessoas coletivas com fins lucrativos, no exercício normal da sua atividade.
Maria de Fátima Mata-Mouros"
[MTS]