"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/05/2018

Jurisprudência (838)


Sociedade comercial; garantia; nulidade;
ónus da prova


1. O sumário de STJ 16/11/2017 (1721/14.6T8VNG-E.P1.S1) é o seguinte:
 
I - A lei faz aferir e limitar a capacidade (de gozo) da sociedade pelo fim lucrativo que lhe é inerente; assim, a prática de um acto fora das condições legalmente prescritas (que não seja necessário nem conveniente à prossecução do seu fim) mostra-se ferido de nulidade (artigo 294.º, do CC).

II - A constituição pela sociedade posteriormente declarada insolvente de duas hipotecas sobre imóveis seus, a favor da entidade bancária mutuante, para garantia de empréstimos concedidos a pessoas singulares, consubstancia acto nulo, excepto se ocorrer justificado interesse próprio da sociedade garante. 

III – A nulidade de que tais actos, à partida, se revestem, faz impender sobre o Banco Mutuante, beneficiário da garantia e autor em acção de verificação ulterior de créditos, o ónus de alegar e provar o justificado interesse da sociedade na prestação das garantias reais aos mutuários, por tal situação se configurar numa excepção à referida regra da nulidade e, como tal, constituir um elemento constitutivo do seu direito (artigo 342.º, n.º1, do CC).

IV – A declaração pela sociedade garante feita nas escrituras de mútuo de que prestava as garantias aos empréstimos para liquidação de responsabilidades suas, não se encontra abrangida por força probatória plena do documento autêntico e, como tal, não tem o alcance de provar a existência do justificado interesse próprio na prestação da garantia.

V – A arguição da nulidade da garantia prestada por parte da sociedade garante (beneficiária da nulidade) não integra, necessariamente, uma situação de abuso de direito. Todavia, poderá merecer cabimento impor-lhe o ónus de demonstrar a inexistência de justificado interesse próprio por se encontrar em posição privilegiada para fazer a prova desse facto (artigo 344.º, do CC) e por ter adoptado posição contrária à boa fé. 

VI – Não obstante a nulidade da prestação da garantia (por inexistência de justificado interesse da sociedade garante) ter sido arguida pela massa insolvente, não há que inverter o ónus da prova que impende sobre o Autor, Banco Mutuante, em acção de verificação ulterior de créditos visando o reconhecimento do respectivo crédito como “crédito garantido” e a graduação do mesmo preferencialmente em relação aos imóveis que fazem parte do acervo pertencente à massa insolvente e que se encontram onerados com hipoteca.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Sendo o lucro o fim da sociedade comercial (cfr. artigo 980.º, do Código Civil) e uma vez que a lei, imperativamente, faz aferir e limitar a capacidade da mesma pelo fim lucrativo que lhe é inerente [...], a prática de um acto fora das condições legalmente prescritas (que não seja necessário nem conveniente à prossecução do seu fim) mostra-se ferido de nulidade, nos termos do artigo 294.º, do Código Civil [...].
 
Por conseguinte, como expressamente refere o n.º3 do artigo 6.º da CSC, a prestação de uma garantia real a dívidas de outras entidades não se assume, à partida, no âmbito do escopo lucrativo; como tal, constitui acto contrário ao seu fim.

Todavia, salvaguarda o referido preceito, que cairá fora do âmbito dos actos contrários ao fim da sociedade a prestação de garantia no caso de existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou tratando-se de sociedades em relação de domínio ou de grupo.

Nesta ordem de ideias e para o que aqui assume cabimento (porquanto se evidencia não estar em causa a situação referente à última ressalva), a constituição pela sociedade posteriormente declarada insolvente das (duas) hipotecas sobre imóveis seus a favor do Banco Recorrente, para garantia de empréstimos concedidos a pessoas singulares, consubstancia acto nulo, vício de conhecimento oficioso – artigo 286.º, do Código Civil.

Esta nulidade, porém, não ocorrerá se existir justificado interesse próprio da sociedade garante.

Da matéria de facto apurada pelas instâncias não é possível concluir pela ocorrência desta excepção porquanto não foi demonstrado o justificado interesse próprio da sociedade na prestação da garantia.

Com efeito, não obstante a sociedade garante ter declarado nas escrituras que prestava as garantias aos empréstimos para liquidação de responsabilidades suas, tal declaração não se encontra abrangida por força probatória plena do documento autêntico [...] pois que apenas os factos dados por praticados ou atestados pelo oficial público com base na sua percepção têm força probatória plena (artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil) [...].

Nesta medida, no caso, a força probatória plena decorrente da celebração das escrituras públicas e relativamente às declarações em causa restringe-se unicamente à circunstância de ter sido atestado pela entidade pública que, perante si, foi declarado que os empréstimos concedidos se destinavam em parte à liquidação de responsabilidades da sociedade garante.

Não se mostrando provado que a sociedade tivesse interesse na prestação das garantias, há que concluir que não se encontra preenchido o interesse justificado próprio da sociedade garante a que alude a parte final do disposto no n.º 3 do artigo 6.º do CSC.

Perante a falta de demonstração deste elemento importará retirar as devidas consequências fazendo funcionar as regras de ónus da prova [...].

O princípio geral para averiguar a quem incumbe a prova dos factos é o que resulta do artigo 342.º, do Código Civil: àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, sendo que a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extensivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita (nºs. 1 e 2 do referido preceito).

Assim, a reclamação do crédito enquanto crédito garantido, (invocando as hipotecas constituídas a seu favor pela sociedade insolvente), atenta a nulidade de que os actos, à partida, se revestem, impunha ao Banco aqui Recorrente, o ónus de alegar e provar a excepção à referida regra, isto é, de que, no caso, existiu justificado interesse da sociedade na prestação das referidas garantias reais.

O justificado interesse da sociedade na prestação das garantias surge, por isso, como facto constitutivo da validade das garantias e do direito do Banco reclamante ver o seu crédito reconhecido como privilegiado. Por consequência, o ónus de provar tal circunstância teria de recair sobre o beneficiário da garantia, in casu a credor reclamante ora Recorrente – artigo 342.º, n.º1, do Código Civil.

A este propósito refere Soveral Martins “Se é invocado um justificado interesse próprio da sociedade garante na prestação da garantia, quem tem o ónus de alegar e provar que aquele interesse existe é aquele que tem interesse em afirmar a validade da garantia. Para que a garantia deva ser considerada nula, basta que não se prove que existe esse justificado interesse próprio da sociedade garante. Não é, por isso, necessário que o terceiro soubesse ou não pudesse ignorar que esse justificado interesse próprio não existia. Esta conclusão parece inequívoca atendendo ao que se lê no art. 6.º, 3: aí se estabelece, logo à partida, que «Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias». É certo que, muitas vezes, a própria sociedade declara, ao prestar a garantia, que existe um justificado interesse próprio. Só por si, isso não significa que a invocação posterior, pela sociedade, da inexistência desse mesmo interesse constitua um abuso de direito. Em muitos casos, nenhuma expectativa de terceiros existe que deva ser tutelada. Os terceiros estão obrigados a conhecer a lei e os limites que esta fixa para a capacidade das sociedades comerciais. Os terceiros estão obrigados a saber que as sociedades comerciais existem para buscar o lucro (…). E se a sociedade presta a garantia a dívida de outrem alega que tem um justificado interesse próprio, o terceiro ou controla se isso é verdade, ou arrisca e sujeita-se às consequências, ou recusa a garantia” [Código das Sociedades Comerciais em comentário, Volume I, Almedina, 1ª edição, 2010, 1998, p.110-111].
 
Como se encontra salientado no excerto transcrito, nos casos em que é a própria sociedade garante quem invoca a nulidade das garantias por si prestadas, ainda que tal não integre, necessariamente, uma situação de abuso de direito, assume cabimento impor sobre a mesma, enquanto arguente e beneficiária da nulidade, o ónus de demonstrar a inexistência de justificado interesse próprio. Nesse sentido o tem entendido a jurisprudência deste Tribunal [Cfr. entre outros Acórdãos de 30-09-2004, Processo n.º 04S2540, de 17-06-2004, Processo n.º 04B1773, de 07-10-2010, Revista n.º 291/04.8TBPRD-E.P1.S1, de 28-05-2013, Revista n.º 300/04.0TVPRT-A.P1.S1 (citado pela Recorrente); de 26-09-2013, Revista n.º 213/08.7TJVNF-A.P2.S1, de 26-11-2014, Processo n.º 1281/10.7TBAMT-A.P1.S1 (citado pela Recorrente), acessíveis através das Bases Documentais do IGFEJ] alicerçada em duas ordens de razões:

- por a sociedade ter tomado posições contrárias à boa fé, a sancionar com a inversão do ónus da prova;

- por a sociedade se encontrar em posição privilegiada para fazer prova de tal facto – artigo 344.º, do Código Civil.

Tal posicionamento, todavia, não assume assento no caso dos autos por a situação se reportar a acção proposta pelo credor reclamante que se quer valer das garantias prestadas (e a quem compete demonstrar essa validade – artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil).

Por outro lado, a excepção de nulidade das garantias foi deduzida não pela sociedade que as prestou, a devedora insolvente, mas pela massa insolvente, património autónomo que com a primeira se não confunde e que, por existir apenas com o processo insolvencial, não lhe pode ser atribuída posição probatória privilegiada do (des)interesse da sociedade aquando da prestação das garantias – artigo 146.º, n.º1, do CIRE."
 
[MTS]