"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/05/2018

Jurisprudência 2018 (25)


Pedido de decisão prejudicial; 
débito directo; ónus da prova


1. O sumário de RP 21/2/2018 (572/17.0T8PRT.P1) é o seguinte:

I - O Direito da União Europeia exige uma interpretação e aplicação uniforme nos EM – princípio da interpretação conforme ou compatível com o DUE.
 
II - O TJ tem competência através das questões prejudiciais para interpretar o Direito Comunitário e igualmente para apreciar da sua validade.
 
III - Só através desta função de interpretação foi e é possível garantir a interpretação e aplicação uniformes do Direito da União Europeia pelos diversos tribunais nacionais dos EM, na medida em que o decidido vincula os mesmos.
 
IV - É entendimento pacífico ser o reenvio obrigatório quando o tribunal decide em última instância, salvo se a norma a aplicar for de tal modo clara e evidente que não deixa qualquer dúvida razoável quanto à sua interpretação quer para o tribunal que aprecia quer para os demais tribunais dos EM.
 
Exceção que igualmente tem lugar se existir já jurisprudência interpretativa do TJ sobre as normas a aplicar. 
 
V - A execução de uma ordem de pagamento na modalidade de débito direto pressupõe a existência de um prévio contrato de prestação de serviços celebrado entre o titular de conta bancária e a respetiva instituição bancária.
 
VI - É ónus da instituição bancária fazer a prova da celebração de tal contrato, habilitante da sua atuação.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
Na base da decisão dos EM de instituir uma União Europeia à qual atribuíram competências para atingir os seus objetivos comuns, está o escopo da progressiva integração europeia.

União esta fundada no Tratado da União Europeia e no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, ambos de igual valor jurídico.

Do artigo 4º do TUE resulta a consagração do princípio da lealdade europeia a que os EM e a União estão vinculados, com vista a se respeitarem e assistirem mutuamente no cumprimento das missões decorrentes dos Tratados.

Regendo-se a delimitação das competências da União pelo princípio da atribuição. E o exercício das competências da União pelos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade (artigo 5º n.º 1 do TUE).

Ao TFUE coube organizar o funcionamento da União e determinar os domínios, a delimitação e as regras de exercício das suas competências. Desde logo definindo os domínios em que tem competência exclusiva (artigo 3º) e competência partilhada (artigo 4º).

A instituição da União Europeia (sucedendo a Comunidade Europeia), com a atribuição de competências para atingir os objetivos comuns delineados pelos EM, algumas das quais exclusivas, bem evidenciam como a ideia do Estado Soberano associada à primazia da Constituição Nacional deu lugar ao primado do Direito da União, consagrado aliás na CRP – artigo 7º n.º 6 e 8º n.º 4.

O primado do DU sobre o Direito estadual constitui um atributo próprio do DU – enquanto Ordem Jurídica Uniforme [...], integrada no sistema jurídico dos EM que como tal se impõe aos seus tribunais, penetrando na ordem jurídica interna para aí produzir os seus efeitos, como desde logo o admitiu o TJ no caso Costa/Enel – Processo 6/64.

Por tal o DU enquanto Direito comum aos diversos EM exige uma interpretação e aplicação uniforme nesses mesmos EM – Princípio da Interpretação Conforme ou compatível com o direito da União Europeia - consequentemente e por tal tendo o TJ assumido supremo relevo na criação e desenvolvimento do Direito Comunitário a partir dos Tratados. Servindo-se para tal e sob impulso dos tribunais nacionais dos diversos EM [Tribunais funcionalmente europeus, em cooperação judiciária], das questões prejudiciais que lhe foram sendo apresentadas ao abrigo do atual artigo 267º do TFUE [...].

Do corpo deste artigo 267º resulta que o TJ tem competência através das questões prejudiciais para interpretar os Tratados, bem como se pronunciar sobre a validade e interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

A função da interpretação assumiu, contudo, maior relevo na jurisprudência da UE porquanto só através desta foi e é possível garantir a interpretação e aplicação uniformes do Direito da União pelos diversos tribunais nacionais dos EM.

De realçar desde já que objeto das questões prejudiciais são apenas e conforme indicado no citado artigo 267º, atos da UE, como é o caso da já identificada Diretiva.

Uma vez apreciada uma questão prejudicial e em obediência ao princípio da interpretação uniforme do DUE, o decidido vincula todos os tribunais dos EM, ao abrigo do sistema do precedente que caracteriza o sistema da common law. Sem prejuízo de e quando necessário poder o TJ modificar a sua jurisprudência quando confrontado de novo com a mesma questão prejudicial, se o carácter evolutivo da integração europeia justificar tal alteração. [...]

Esta ideia do primado do DUE não significa contudo que exista uma situação de hierarquia entre a União e os EM porquanto as normas não precedem do mesmo sujeito. Assim o que este princípio implica é antes uma “preferência aplicativa em benefício da própria funcionalidade sistémica. (…) o primado apenas resolve o problema da convivência entre normas provenientes de distintas fontes, designadamente normas nacionais e normas europeias que serão aplicadas inevitavelmente sobre o mesmo território e idênticos destinatários.” [Alessandra Silveira in “Princípios de Direito da União Europeia” [ed. Quid Juris, ed. 2009, p. 119].

Da “Jurisprudência Principialista”[...]

Conforme já supra fizemos referência, com o fim de instituir uma União Europeia – fundada no TUE e no TFUE - atribuíram os EM competências à mesma com vista a permitir a prossecução dos objetivos comuns delineados. Para tal se vinculando os EM e a UE a respeitarem e assistirem mutuamente no cumprimento das missões decorrentes dos Tratados – desta obrigação comum resultando a consagração do princípio da lealdade europeia (vide artigo 4º n.º 3 do TUE, anterior artigo 10º do TCE).

Deste princípio da lealdade e densificando o mesmo, o TJ deduziu jurisprudencialmente e na análise do caso concreto, ao longo dos 50 anos de integração europeia, uma série de outros princípios, designadamente:

1) o princípio do primado do DUE sobre o direito nacional – como consequência do qual a aplicação do direito nacional incompatível com o DUE não é aplicado; suprimindo-se ou reparando-se as consequências de um ato nacional contrário o DUE; estando os EM obrigados a fazer respeitar o DUE.

2) o princípio do efeito direto das normas europeias – por força do qual os particulares podem invocar normas europeias que imponham deveres/reconheçam direitos de forma suficientemente clara e incondicionada, inclusivamente contra normas nacionais violadoras do DUE;

3) princípio da efetividade e princípio da equivalência do DUE – garantindo o efeito útil das disposições europeias através das autoridades nacionais e assegurando que as pretensões decorrentes do DUE obtêm idêntica proteção às pretensões decorrentes do direito nacional;

4) princípio da interpretação conforme – visando a interpretação e aplicação das disposições nacionais em sentido compatível com o DUE;

5) princípio da responsabilidade do Estado por violação das obrigações europeias – impondo a indemnização dos particulares afetados;

6) princípio da tutela jurisdicional efetiva – fazendo depender a efetividade do DUE da garantia judicial das suas normas; integrando o direito de acesso à justiça; o direito a um processo equitativo e a um recurso efetivo; consagrando a aplicação de providências cautelares tendentes a evitar danos irreparáveis nos direitos dos particulares mesmo quando estas não tenham previsão ou estejam proibidas pelo direito nacional. [...]

Em consonância com o disposto no artigo 267º do TFUE § 2º é pacífico o entendimento de que o reenvio é obrigatório quando o tribunal decide em última instância, salvo se a norma a aplicar for de tal modo clara e evidente que não deixa qualquer dúvida razoável quanto à sua interpretação, quer para o tribunal que aprecia quer para os demais tribunais dos EM.

Exceção – à obrigação de reenvio - que igualmente tem lugar se existir já jurisprudência interpretativa do TJ sobre as normas a aplicar. Porquanto então o decidido vincula os diversos tribunais nacionais dos EM [...].

Feito este breve enquadramento do pedido de reenvio, convocando os seus pressupostos ao caso sub judice temos que a decisão que vier a ser proferida por este tribunal, atento o valor da causa, não é já suscetível de recurso judicial para o tribunal superior; por outro lado a decisão da causa depende da aplicação e interpretação de uma Diretiva Europeia e finalmente entendemos que o sentido a dar aos normativos já acima indicados não é de tal modo claro que afaste qualquer dúvida razoável.

Como tal entendemos ser de submeter ao TJUE nos termos do artigo 267º do TFUE e com vista a obter pronúncia sobre o sentido interpretativo dos normativos acima já citados a questão prejudicial que assim se formula:

I- Considerando:

- que em causa está a execução de um serviço de pagamento, operação de pagamento na modalidade de débito direto tal como definido no artigo 4º nº 3 e 28, conjugado com o ponto 3 do anexo da Diretiva 2007/64/CE, por parte de uma instituição de crédito tal como definida no artigo 1º al. a) da mesma diretiva;

- o âmbito de aplicação desta mesma Diretiva tal qual estabelecido no seu artigo 2º;

- a definição de prestador de serviços tal qual consta do artigo 4º nº 9 da Diretiva em menção

II – A) Deve ser interpretado o artigo 2º da Diretiva 2007/64/CE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro de 2007, relativa aos serviços de pagamento no mercado interno, que altera as Directivas 97/7/CE, 2002/65/CE, 2005/60/CE e 2006/48/CE e revoga a Directiva 97/5/CE] no sentido de no âmbito de aplicação da mesma definido neste artigo se considerar abrangida a execução de uma ordem de pagamento de débito direto emitida, por entidade terceira sobre uma conta por si não titulada e cujo titular de tal conta não celebrou com a respetiva instituição de crédito qualquer contrato de serviço de pagamento para ato isolado ou contrato quadro de prestação de serviços de pagamento?

II-B) Sendo afirmativa a resposta à questão II-A) e ainda no mesmo contexto, pode o mencionado titular da conta ser considerado utilizador de serviços de pagamento para efeitos do artigo 58º da mesma Diretiva?"


[MTS]