"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/05/2018

Jurisprudência 2018 (15)


Presunções judiciais;
âmbito de aplicação

1. O sumário de RP 24/1/2018 (1070/16.5T8AVR.P1) é o seguinte:

I - Não se provando que, o teor de alcoolemia (1,89g/l) que o sinistrado apresentava, aquando do acidente sofrido, contribuiu para a sua queda, após sujeição a prova, não é legítimo extrair que o acidente não teria ocorrido se não fosse o estado alcoolizado em que se encontrava o sinistrado e, desse modo, concluir pela descaracterização daquele.
 
II - A prova por presunções judiciais, que os artºs 349 e 351 do CC permitem, tem como limites o respeito pela factualidade provada e a respectiva correspondência a deduções lógicas e racionalmente fundamentadas naquela.
 
III - A falta de prova do facto não pode ser colmatada ou suprida por presunção judicial, pois que, se um facto concreto é submetido a discussão probatória e o julgador o não dá como provado, seria contraditório tê-lo como demonstrado com base em simples presunção.
 
IV - As presunções, apenas, são admissíveis para integração ou complemento da factualidade apurada nas respostas do tribunal à matéria controvertida e não já para contrariar ou modificar a matéria de facto ou mesmo suprir a falta de prova, já que estas não servem para substituir a prova dos factos com que a parte está onerada.
 
V - Para que se conclua pela descaracterização de acidente de trabalho e subsequente não reparação do mesmo, além da prova da negligência grosseira do sinistrado, exige-se também, cumulativamente, que se prove a culpa exclusiva deste na sua verificação.
 
VI - Ainda que se prove que o sinistrado apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,89g/l, na altura do acidente, que lhe diminui a atenção, concentração, capacidade de reacção, equilíbrio e reflexos, não se provando que aquele teor de alcoolemia contribuiu para a queda que sofreu, apenas, aqueles factos provados não permitem estabelecer o nexo de causalidade entre o estado de embriaguez e aquela.
 
VII - O facto de o mesmo estar alcoolizado não é susceptível de, só por si, descaracterizar o acidente de trabalho e conduzir à sua não reparação.
 
VIII - Assim, não estando provada a causa da queda que provocou a morte ao sinistrado, nem a culpa exclusiva deste na ocorrência do acidente, não se pode concluir que tenha sido aquele estado de alcoolizado do mesmo que esteve na origem do acidente.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Contrariamente ao pretendido pela recorrente, dos factos dados como provados, nomeadamente, dos que constam nos pontos 25, 26 e 27, não é possível concluir pela descaracterização do acidente, pois, como o Tribunal “a quo” concluiu:”… a matéria de facto apurada é omissa em relação ao modo como se deu o acidente, não permitindo afirmar, sem margem para dúvidas, que a queda do sinistrado se deveu ao estado alcoolizado em que se encontrava.”.

Podemos adiantar, desde já, que a conclusão a que se chegou na decisão recorrida, não nos merece qualquer censura, já que é também a que consideramos correcta face a toda a factualidade que resultou provada, não se nos afigurando possível retirar desta, as conclusões que a recorrente considera, nem através de presunção, qualquer outro facto.

Pois isso, seria estar a premiar a recorrente, dando como provados, factos que não logrou provar (veja-se, em concreto, o quesito 20º da base instrutória, que não resultou provado, onde se perguntava: “Esse teor de alcoolemia que o sinistrado apresentava contribuiu para a sua queda?”) e, que seriam essenciais para que se pudesse concluir de modo ao deferimento da sua pretensão, que o acidente não teria ocorrido se não fosse o estado alcoolizado em que se encontrava o sinistrado e, desse modo, concluindo pela sua descaracterização.

Efectivamente, reiterando o devido respeito que nos merece diferente entendimento, consideramos que, sem razão, invoca a recorrente, que deveria o julgador ter seguido a via das presunções judiciais, quando é sabido, que estas não servem para substituir a prova dos factos com que a parte está onerada.

E, sendo desse modo, não se vislumbra como seria possível seguir a via pretendida pela recorrente, tendo em conta a ausência de factos provados, donde se pudessem inferir aqueles e, a noção de presunções dada pela lei (artº 349, do C.C.). Estas supõem a prova de um facto conhecido (base da presunção), do qual depois se infere o facto desconhecido, cfr. P.de Lima e A. Varela, in “CC, Anotado”, Vol. I, 3ª edição, ponto 1 da anotação ao artº 349, pág. 310.

É certo que a demonstração da realidade de um facto pode ser efectuada directamente ou pode ser extraída, por presunção judicial (art. 349º e 351º do C.C.), de outros factos provados (a base da presunção).

Todavia, estas presunções judiciais “não são, em bom rigor, genuínos meios de prova, mas antes meios lógicos ou mentais ou operações firmadas em regras de experiência, operações de elaboração das provas alcançadas por outros meios, reconduzindo-se a simples provas de primeira aparência, baseadas em juízos de probabilidade.”, cfr. o Ac. STJ de 10.09.2009, in www.dgsi.pt, citando Vaz Serra in RLJ, 108º/352.

Assentam no simples raciocínio de quem julga, inspirando-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana, cfr. ponto 2, da anotação àquele artº 349, na obra supra referida.

No entanto, a falta de prova do facto não pode ser colmatada ou suprida por presunção judicial, pois que, se um facto concreto é submetido a discussão probatória e o julgador o não dá como provado, seria contraditório tê-lo como demonstrado com base em simples presunção.

Na verdade, as presunções apenas são admissíveis para integração ou complemento da factualidade apurada nas respostas do tribunal à matéria controvertida e não já para contrariar ou modificar a matéria de facto ou mesmo suprir a falta de prova, veja-se neste sentido, entre outros, o Ac.RP de 17.09.2009 e o Ac.STJ. de 20.06.2006, ambos in www.dgsi.pt.

Sendo, deste modo, não vemos como poderia, o Mº Juiz “a quo” concluir, nos termos pretendidos pela apelante, perante a matéria de facto decidida pela 1ª instância, pela descaracterização do acidente, não se vislumbrando que tenha sido cometido qualquer erro na avaliação das provas produzidas nem a própria recorrente invoca que tenha ocorrido."


3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se acompanha a afirmação -- que o acórdão afirma extrair de outra jurisprudência dos tribunais superiores -- de que "as presunções [judiciais] apenas são admissíveis para integração ou complemento da factualidade apurada nas respostas do tribunal à matéria controvertida e não já para contrariar ou modificar a matéria de facto ou mesmo suprir a falta de prova".

As presunções judiciais permitem inferir, através de máximas de experiência, o facto probando de um facto probatório ou instrumental (na designação do art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC). Salvas as situações em que a lei exclui a prova testemunhal (cf., por exemplo, art. 393.º CC) e, por força do disposto do art. 351.º CC, igualmente as presunções judiciais, estas presunções podem ser utilizadas para a prova de qualquer facto probando. Em concreto: ainda que o facto probando pudesse ser provado (directamente) por um meio de prova, nada impede que esse mesmo facto possa ser provado (indirectamente) por uma presunção judicial. Por exemplo: a velocidade a que o automóvel circulava antes do acidente pode ser provada pelos dados de um radar (prova directa) ou pelos estragos causados nos automóveis contra os quais embateu (prova por presunção judicial), dado que, quanto maior for a destruição, maior é a velocidade.

As presunções judiciais não têm nenhum carácter subsidiário perante a prova directa, no sentido de só poderem operar se o facto não puder ser objecto desta prova. É verdade que, sem o recurso a presunções judiciais, não é possível realizar a prova de estados anímicos (como, por exemplo, a intenção ou o erro), mas isto não significa que as presunções judiciais só possam ser utilizadas quando o facto não possa ser (directamente) provado por um meio de prova. Uma coisa é um facto só poder ser provado por presunções judiciais, outra é estas presunções serem excluídas quando, em abstracto, o facto possa ser directamente provado por um meio de prova.

A regra é a equivalência entre a prova (directa) do facto probando através de um meio de prova e a prova (indirecta) desse facto através de uma presunção judicial ou natural. Reconhecer que há uma diferença muito significativa entre a prova directa e a prova indirecta do facto probando não implica admitir que alguma dessas modalidades da prova tenha um âmbito de aplicação mais limitado do que a outra ou que alguma dessas modalidades da prova seja subsidiária perante a outra.

Pelo mesmo motivo, nada impede que as presunções judiciais possam ser utilizadas para a realização da prova do contrário (cf. art. 347.º CC), isto é, para a impugnação por uma das partes, através da prova do facto contrário, de um facto provado pela outra parte.

MTS