"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/05/2018

Jurisprudência (841)

 
Seguro automóvel; anulabilidade;
inoponiblidade a terceiros
 

1. O sumário de STJ 30/11/2017 (425/12.9TBVFR.S1) é o seguinte:
 
I. Segundo doutrina e jurisprudência hoje pacíficas, o artigo 429.º do Código Comercial, aplicável ao caso dos autos, estatui o regime da anulabilidade, no âmbito do contrato de seguro, em caso de declarações inexatas, por parte do tomador do seguro, que possam influir sobre a existência ou condições do contrato. Tal anulabilidade não é oponível aos terceiros lesados em acidente de viação.

II. Por sua vez, o artigo 428.º, § 1.º, do mesmo Código, estatui a regime da nulidade para o caso em que o tomador do seguro ou aquele em nome de quem o seguro é feito não tem interesse na coisa segurada.

III. Todavia, a jurisprudência tem vindo a divergir quanto à oponibilidade dessa nulidade aos terceiros lesados em acidente de viação, nomeadamente num contexto, como o do caso presente, de falsas declarações do tomador de seguro respeitante à indicação do proprietário do veículo.

IV. Assim, segundo certa orientação, aquela nulidade seria oponível aos referidos lesados, enquanto que outra orientação considera que o indicado § 1.º do artigo 428.º deve ser tido por derrogado por efeito do preceituado no artigo 2.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31/12, correspondente ao atual artigo 6.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, porquanto, nos termos deste normativo, no âmbito do regime especial do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, é permitida a celebração do contrato de seguro por terceiro como modo de suprir a obrigação das pessoas a tal sujeitas.

V. Nessa linha, a situação prefigurada do § 1.º do artigo 428.º seria sancionada em sede de declarações inexatas na celebração do contrato de seguro com o regime da anulabilidade, nos termos do artigo 429.º do Código Comercial, sendo esta anulabilidade inoponível aos terceiros lesados.

VI. Sucede que o TJUE proferiu acórdão, em 20/07/2017, no processo de reenvio prejudicial C-287/16, com a seguinte teor dispositivo:
 
 «O artigo 3.º, n.º 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, e o artigo 2.º, n.º 1, da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tem por efeito que seja oponível aos terceiros lesados a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade essa que resulta de falsas declarações iniciais do tomador do seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo em causa ou do facto de que a pessoa por quem ou em nome de quem esse contrato de seguro é celebrado não tinha interesse económico na celebração do referido contrato.»

VII. O respeito devido ao efeito útil daquelas diretivas, na interpretação dada em sede de reenvio prejudicial pelo TJUE, impõe que se opte pela solução jurídica decorrente do direito nacional mais conforme com aquela interpretação,

VIII. Assim, tem-se por solução mais conforme a de que a situação prevista do § 1.º do artigo 428.º, mormente consubstanciada nos factos constantes dos pontos 1.22 a 1.28 da factualidade provada, em conjugação com o disposto no artigo 6.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, é sancionada, em sede de declarações inexatas na celebração do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, com o regime da anulabilidade nos termos do art.º 429.º do Código Comercial.

IX. Como tal, essa anulabilidade não é oponível aos terceiros lesados e seus herdeiros, nem ao FGA, na qualidade de sub-rogado no direito daqueles, nos termos do artigo 54.º, n.º 1, do mesmo diploma.
 
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"Relativamente à nulidade prevista no § 1.º do artigo 428.º do Código Comercial para os casos em que se verifique a falta de interesse económico do tomador do seguro, nomeadamente num contexto de falsas declarações deste quanto à indicação do proprietário, a nossa jurisprudência tem vindo a divergir.

Com efeito, uma certa orientação tem considerado que tal nulidade fundada na falta de interesse do tomador do seguro é oponível aos terceiros lesados.

Outra orientação tem enveredado pelo entendimento de que o prescrito no § 1.º do artigo 428.º do Código Comercial deve ser tido por derrogado por efeito do preceituado no artigo 2.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31/12, correspondente ao atual artigo 6.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 291/ 2007, de 21-08, porquanto, nos termos deste normativo, no âmbito do regime especial do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, é permitida a celebração do contrato de seguro por terceiro como modo de suprir a obrigação das pessoas sujeitas a tal.

Nessa linha, a situação prefigurada no § 1.º do artigo 428.º seria sancionada em sede de declarações inexatas na celebração do contrato de seguro com o regime da anulabilidade, sendo esta inoponível aos terceiros lesados.

Foi ante esta divergência jurisprudencial que, no âmbito da revista n.º 40/10.1TVPRT.P1.S1, em que era relatora a aqui 1.ª Adjunta, num caso similar aos dos presentes autos, se suscitou o reenvio prejudicial junto do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, nos seguintes ter-mos:

«O artigo 3º, nº 1, da Directiva 72/166/CEE, o artigo 2º, nº 1, da Directiva 84/5/CEE, e o artigo 1º, da Directiva 90/232/CEE, relativas à aproximação das legislações dos Estados-Membros, respeitantes ao seguro da responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, opõem-se a uma legislação nacional que comine com a nulidade absoluta o contrato de seguro, em consequência das falsas declarações sobre a propriedade do veículo automóvel, assim como sobre a identidade do seu condutor habitual, sendo o contrato celebrado por quem não tem interesse económico na circulação do veículo e estando subjacente o intuito fraudulento dos intervenientes (tomador, proprietário e condutor habitual) de obter a cobertura dos riscos de circulação, mediante: (i) a celebração de contrato que a seguradora não celebraria se conhecesse a identidade do tomador; (ii) o pagamento de um prémio inferior ao devido, em razão da idade do condutor habitual?»

Em resposta à questão prejudicial, aquele Tribunal de Justiça proferiu acórdão, em 20/07/2017, no processo C-287/16 [...], com a seguinte teor dispositivo:

«O artigo 3.º, n.º 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, e o artigo 2.º, n.º 1, da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tem por efeito que seja oponível aos terceiros lesados a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade essa que resulta de falsas declarações iniciais do tomador do seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo em causa ou do facto de que a pessoa por quem ou em nome de quem esse contrato de seguro é celebrado não tinha interesse económico na celebração do referido contrato.»

Ora, o respeito devido ao efeito útil daquelas diretivas, na interpretação dada em sede de reenvio prejudicial pelo TJUE, impõe que se opte pela solução jurídica decorrente do direito nacional mais conforme com a interpretação adotada naquela sede. 
 
Assim sendo, tem-se por solução mais conforme, e que aqui se acolhe, a de que a situação prevista do § 1.º do artigo 428.º, mormente consubstanciada nos factos constantes dos pontos 1.22 a 1.28 da factualidade provada, em conjugação com o disposto no artigo 6.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, é sancionada, em sede de declarações inexatas na celebração do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, com o regime da anulabilidade. Como tal esta anulabilidade não é oponível aos terceiros lesados e seus herdeiros, nem ao FGA, na qualidade de sub-rogado no direito daqueles, nos termos do artigo 54.º, n.º 1, do mesmo diploma.

Idêntica solução foi já adotada no recente acórdão do STJ, de 02/11/ 2017, proferido no acima indicado processo n.º 40/10.1TVPRT.P1.S1, relatado pela aqui 1.ª Adjunta e também subscrito pela ora 2.ª Adjunta, e que aguarda publicação.

Posto isto, verifica-se que as indemnizações satisfeitas pelo A. aos terceiros lesados respeitam a danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais daqueles, derivadas do acidente de viação em referência, imputável à condutora do veículo EX então objeto do contrato de seguro celebrado com a 1.ª R., não excluídas pelo artigo 14.º, n.º 1, e garantidas pelo FGA nos termos do art.º 49.º, n.º 1, alínea a), do Dec.-Lei n.º 291/2007. E incluem ainda o reembolso das demais despesas efetuadas pelo mesmo A., nos termos do art.º 54.º, n.º 1, do mesmo diploma. "
 
[MTS]