"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/05/2018

Jurisprudência 2018 (24)


Incidente de liquidação;
preclusão


1. O sumário de RE 8/12/2018 (933/03.2TBSTB-F.E1) é o seguinte: 

I - Ressalvadas as situações em que a liquidação dependa de simples cálculo aritmético, com o regime introduzido pela alteração ao artigo 661.º, n.º 2, do CPC, o incidente de liquidação passou a ser o único meio para tornar líquida a obrigação em cujo cumprimento o devedor tenha sido condenado, constituindo assim um incidente da instância posterior ou subsequente à decisão judicial de condenação, enxertado no processo declaratório que nela culminou, e com a virtualidade de inclusivamente determinar a renovação da instância declarativa, já extinta.
 
II - Tratando-se de liquidação que não depende de simples cálculo aritmético, vigora para a autora o ónus de proceder à liquidação no âmbito do verdadeiro processo de declaração ulterior que o incidente de liquidação constitui, com a alegação e prova dos factos que fundamentam a pretendida liquidação.
 
III - Incumprido oportunamente tal ónus, precludiu a possibilidade de alegação neste incidente dos factos que oportunamente não foram alegados, e é por causa desse efeito da preclusão que neste incidente lhe pode ser oposta a excepção de caso julgado.
 
IV - Dito de outro modo, a sentença proferida no incidente de liquidação primeiramente deduzido, mercê da qual a pretendida quantificação dos danos foi julgada improcedente, obsta a que seja deduzido um novo incidente para discutir a liquidação da mesma obrigação, “corrigindo-se” desta feita a dedução da pretensão com o cumprimento de ónus de alegação e prova oportunamente não cumpridos. 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Diz a Recorrente que aceitando o douto resultado da instância instrumental e incidental que precede, a Autora requereu a renovação da instância principal com o intuito de liquidar o montante ilíquido em que a Ré tinha sido condenada. Para tal ofereceu - aqui - abundante prova sobre os valores de lucros cessantes resultantes da imobilização do veículo, resultante do sinistro, factos que tinham sido determinantes para a não liquidação - no precedente incidente autónomo - e que agora veio a concretizar e ofereceu aos autos. (…) A Autora pretende renovar a instância principal - como não pode deixar de ser -, e outrossim, auxiliar o tribunal habilitando o mesmo – em novo incidente – com a prova que entendeu não ser suficiente para liquidar.

Portanto, tudo se reconduz a saber se é ou não possível repetir um incidente já deduzido. Por outras palavras, se existindo uma sentença transitada em julgado, da qual decorre a existência de danos mas não o respectivo cômputo, soçobrando a parte na liquidação do valor dos danos no incidente para o efeito deduzido, pode, como parece entender a Recorrente, ir renovando a demanda originária por via da incidental, até lograr obter a liquidação dos danos. 

A Recorrente esgrime a favor da possibilidade de instaurar novo incidente de liquidação, o facto de haver transitado uma condenação genérica, pelo que, tendo improcedido o incidente primeiramente instaurado, caso este não seja admitido, existe uma situação de non liquet, mercê da impossibilidade de quantificar aquela decisão genérica, o que violaria o caso julgado formado por aquela primeira decisão.

Vejamos.

Apresentado o requerimento do incidente, o juiz deve proferir despacho liminar relativo à sua admissão. Na verdade, o incidente de liquidação destina-se a quantificar o dano ou perda que já se encontra demonstrado na acção declarativa, «não se estando a facultar ao Autor uma nova oportunidade para provar os danos ou percas, se o não logrou fazer na acção declarativa. A liquidação destina-se, por isso, a uma mera quantificação. 

E só no caso de não se terem provado danos na acção declarativa, é que há nessa parte caso julgado material; e aí, então sim, se impedindo a reabertura de nova fase probatória, ou de qualquer outro tipo de quantificação.

É, portanto, na acção declarativa que são determinados os contornos que permitem ir fazer a quantificação dos danos; é a sentença que nela se produz que condiciona a admissibilidade, ou não, do incidente de liquidação» [Cfr. Ac. TRL de 19.10.2010, proferido no processo n.º 2019/09.7TMSNT.L1-7, disponível em www.dgsi.pt.].
 
[...] o que está em causa no presente recurso de apelação é saber se, não obstante a renovação da instância da acção declarativa na vertente da quantificação da condenação, dada a relativa autonomia do incidente de liquidação e da matéria que ele envolve, a decisão de fundo de um incidente desta natureza impede a discussão de uma nova questão idêntica. [...]

[...] a especificidade do incidente de liquidação reside no preceituado no n.º 4 do artigo 360.º de acordo com o qual, quando a prova produzida pelos litigantes for insuficiente para fixar a quantia devida, incumbe ao juiz completá-la mediante indagação oficiosa. 

Adverte o Conselheiro Salvador da Costa [[Os Incidentes da Instância, 8.ª edição, Almedina 2016, pág. 253], pág. 261, de onde se extraiu a menção antecedente], elencando jurisprudência a respeito, que «tem sido discutida a questão de saber, neste incidente, quando a prova global produzida se não mostre absolutamente concludente, se o juiz pode ou não decidir o incidente de liquidação com base em juízos de equidade.

O relegar para o incidente de liquidação o apuramento do objecto da condenação pressupõe o reconhecimento pelo tribunal, ao autor ou ao réu reconvinte, da titularidade de um ou de outro de algum direito de crédito.

Acresce, na sequência do caso julgado decorrente da sentença condenatória, que a lei consagra o princípio atinente ao alívio do ónus probatório do requerente, por via da ampliação dos poderes do juiz no âmbito probatório.

Propendemos, por isso, a considerar que se a prova produzida for inconclusiva para o apuramento do montante do dano, este pode ser fixado com base na equidade, por aplicação do disposto no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil.

Dir-se-á, neste incidente de liquidação, que o tribunal pode socorrer-se, em termos de indagação oficiosa, quando a prova produzida pelos litigantes for insuficiente para o efeito, de juízos de equidade, prescindindo, nessa medida, das regras rígidas de repartição do ónus da prova.

Consequentemente, a insuficiência da prova produzida no incidente é insuscetível de implicar, só por si, uma decisão de não liquidação, certo que, em última análise, se impõe ao juiz a fixação equitativa do quid relegado para apuramento incidental».

Como vimos, no caso vertente entendeu-se que não havia sequer elementos para julgar de acordo com a equidade. Ora, independentemente da concordância ou discordância com a posição assumida [...], o certo é que a decisão de improcedência do incidente transitou em julgado, com o trânsito do Acórdão proferido neste Tribunal da Relação.

E, tendo o incidente uma estrutura declarativa, não restam dúvidas de que a decisão de mérito do incidente de liquidação, enquanto enxerto declarativo da sentença que condenou em quantia a liquidar, transitando em julgado, fica a ter força obrigatória nos seus precisos limites e termos, ou seja, quer condene quer absolva, conforme previsto nos artigos 619.º, n.º 1, 620.º, n.º 1, 1.ª parte, e 621.º do CPC, já que passa a integrar definitivamente a sentença que havia condenado naqueles termos em indemnização provisória, de harmonia com o preceituado no artigo 565.º do Código Civil. [...]


[...] mais do que isso, no caso vertente, importa avançar na análise da questão que, estando no fundo subjacente à decisão recorrida, não foi ali nomeada: os efeitos da preclusão, que pode actuar independentemente do caso julgado e, consequentemente, independentemente da verificação daquela tríplice identidade.

Conforme afirma o Professor Miguel Teixeira de Sousa [Disponível na internet em: 
https://www.academia.edu/22453901/TEIXEIRA_DE_SOUSA_M._Preclus%C3%A3o_e_caso_julgado_02.2016 [...]:

«A preclusão é sempre correlativa de um ónus da parte: é porque a parte tem o ónus de praticar um acto num certo tempo que a omissão do acto é cominada com a preclusão da sua realização».

Adiante, explicando a distinção entre as posições de autor e réu na acção, em moldes que espelham porque não é correcta a conclusão da ora Recorrente no sentido de que pode neste incidente aduzir os factos e requerer os meios de prova que não alegou nem requereu no primeiro incidente de liquidação, precisamente porque a sua não alegação e prova foram o motivo da improcedência do incidente que deduziu, aduz o Ilustre processualista que:

«a) Quando referida à alegação de factos pelas partes, a preclusão é correlativa de um ónus de concentração ou de exaustividade: de molde a evitar a preclusão da alegação posterior do facto, a parte tem o ónus de alegar todos os factos relevantes no momento adequado. (…) A referida correlatividade entre a preclusão e o ónus de concentração significa que, sempre que seja imposto um ónus de concentração, se verifica a preclusão de um facto não alegado, mas também exprime que, quanto à alegação de factos, a preclusão só pode ocorrer se e quando houver um ónus de concentração. Apenas a alegação do facto que a parte tem o ónus de cumular com outras alegações pode ficar precludida. Se não for imposto à parte nenhum ónus de concentração, então a parte pode escolher o facto que pretende alegar para obter um determinado efeito e, caso não consiga obter esse efeito, pode alegar posteriormente um facto distinto para procurar conseguir com base nele aquele efeito».
 
Postos estes claros ensinamentos, torna-se evidente a falta de fundamento da pretensão da Recorrente: tratando-se de liquidação que não depende de simples cálculo aritmético, vigora para a autora o ónus de proceder à liquidação no âmbito do verdadeiro processo de declaração ulterior que o incidente de liquidação constitui, com a alegação e prova dos factos que fundamentam a pretendida liquidação.

Não o tendo feito, a Autora incumpriu o ónus que sobre si impendia naquele momento processual de renovação da instância declarativa por via da dedução do incidente de liquidação e, por tal, não pode subsequentemente, em sede deste novo incidente, procurar conseguir com base em nova alegação e prova aquele efeito que ali não logrou obter, desde logo, por não ter ali alegado a factualidade que agora invoca e os meios de prova que ora convoca. Incumprido oportunamente tal ónus, precludiu a possibilidade de alegação neste incidente dos factos que oportunamente não foram alegados, e é por causa desse efeito da preclusão que neste incidente lhe pode ser oposta a excepção de caso julgado, que neste caso, como dito, nem sequer depende da tríplice identidade a que alude o artigo 581.º do CPC.

De facto, conforme cristalinamente explica aquele Ilustre Professor, «poder-se-ia pretender concluir que, se a preclusão intraprocessual é independente de qualquer caso julgado, a preclusão extraprocessual – isto é, a preclusão da prática do acto omitido num processo posterior – estaria dependente do caso julgado da decisão proferida na primeira acção. Noutros termos: poder-se-ia pensar que a preclusão extraprocessual necessitaria do caso julgado da decisão do processo anterior para poder operar no processo posterior. No entanto, não é assim. (…) A chamada preclusão extraprocessual é independente do caso julgado, porque opera mesmo que o processo no qual se produziu a correspondente preclusão intraprocessual não esteja terminado com sentença transitada em julgado. Sendo assim, pode concluir-se que a preclusão não necessita do caso julgado para produzir efeitos num outro processo».

Perguntar-se-á, então, como opera a preclusão?

Responde o mesmo Professor: «depois de haver no processo uma decisão transitada em julgado, a preclusão extraprocessual opera através da excepção de caso julgado».

Dito de outro modo a sentença proferida no incidente de liquidação primeiramente deduzido, mercê da qual a pretendida quantificação dos danos foi julgada improcedente, obsta a que seja deduzido um novo incidente para discutir a liquidação da mesma obrigação, “corrigindo-se” desta feita a dedução da pretensão com o cumprimento de ónus de alegação e prova oportunamente não cumpridos [Cfr. neste sentido, José Lebre de Freitas, a respeito da sentença de liquidação da obrigação exequenda, in Acção Executiva e Caso Julgado, pág. 249, disponível em www.oa.pt/upl/%7Bd7d8c8e7-0470-4607-9c33-4fea041db89f%7D.pdf].

Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, improcedem ou mostram-se deslocadas todas as conclusões do presente recurso, sendo de confirmar, por estes fundamentos, a decisão recorrida."


3. [Comentário] Como decorre da amável citação, nada há a opor ao decidido no acórdão. A solução seria necessariamente diferente se os factos fossem supervenientes: estes factos justificariam uma nova liquidação que, como decorre do disposto no art. 716.º, n.º 9, CPC, poderia ser realizada na pendência da execução.

No acórdão refere-se um paper sobre a preclusão que pode ser visto em Paper (199).

MTS