"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/05/2018

Jurisprudência 2018 (14)


Deliberação social; impugnação;
legitimidade activa

1. O sumário de RP 24/1/2018 (874/10.7TYVNG.P1) é o seguinte:


I - O Código das Sociedades Comerciais não reconhece a inexistência jurídica enquanto categoria autónoma e distinta da nulidade ou da ineficácia stricto sensu das deliberações de sociedades comerciais, não constituindo, assim, vício passível de consubstanciar fundamento típico da impugnação das mesmas.
 
II - Assumindo as deliberações sociais natureza de negócio jurídico, tem legitimidade para arguir vício de nulidade de que a mesma padeça “qualquer interessado” nos termos definidos no artigo 286º do Código Civil.
 
III - O interesse que atribui a uma pessoa legitimidade para invocar esse vício genético é um interesse de direito substantivo, que pressupõe a oponibilidade do negócio jurídico ao seu titular, porque o negócio nulo prejudica a consistência jurídica, ou a consistência prática ou económica, de um direito seu.
 
IV - O sujeito legitimado deve, assim, ter um interesse direto na nulidade e não apenas um interesse reflexo, vago e indireto.
 
V - Por isso, o depositário de ações penhoradas carece de legitimidade substantiva para a invocação de vício de nulidade de que alegadamente padeça uma deliberação de sociedade comercial, dado que, sendo mero possuidor em nome alheio desses valores mobiliários, não é atingido diretamente na sua esfera jurídica por esse ato deliberativo.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Perante a invocada qualidade do demandante, o tribunal a quo considerou que o mesmo (por não ser acionista) careceria de legitimidade substantiva para arguir quer a anulabilidade, quer os demais vícios de inexistência e de nulidade que imputa às referidas deliberações, afirmando-se no ato decisório sob censura ser “manifesto, ante o que o mesmo alegou, que veio a juízo defender um interesse que o credor G… tem sobre o acionista I…, interesse esse que não é um interesse social”, aí se acrescentando que “o autor não tem qualquer interesse em agir ao intentar a presente ação”.

No presente recurso o apelante rebela-se contra o referido segmento decisório argumentando, fundamentalmente, que em virtude de ser depositário das aludidas ações tem legitimidade e interesse em agir para impugnar as ajuizadas deliberações através da invocação dos vícios de inexistência e/ou nulidade (deixando, pois, cair a invocação do vício de anulabilidade [...]), posto que lhe “cabe o dever, e não o direito, de administrar e zelar [as ditas ações penhoradas] e salvaguardar o seu valor económico e financeiro”. 

Quid juris?

Desde logo, será de registar que, no domínio do direito civil, a figura da inexistência jurídica não é, entre nós, consensual, pois não falta quem lhe não reconheça autonomia em relação à nulidade, “sob pena de gravíssimas injustiças enquadradas por puros conceptualismos” [Assim, MENEZES CORDEIROTratado de Direito Civil, Parte Geral I, tomo 1, 2ª ed., pág. 653].

Entre os que reconhecem e admitem esta categoria, uns integram-na na invalidade, compondo então com a nulidade e a anulabilidade uma tríade de invalidades [Cfr., neste sentido, CASTRO MENDESTeoria Geral do Direito Civil, vol. II, 1985, págs. 289 e seguinte.], enquanto outros se recusam a ver na inexistência uma invalidade, porque “falta todo o termo de comparação” com determinado tipo legal, para se poder estabelecer a sua relação de coincidência ou divergência com ele [É a posição sustentada, inter alia, por GALVÃO TELLESin Manual dos Contratos em geral, 4ª ed., pág. 356 e seguinte.].

Essa mesma discussão tem sido importada para o específico domínio dos vícios de que as deliberações sociais podem enfermar, discutindo-se se para além das três categorias tipicamente previstas nos arts. 55º, 56º e 58º do Código das Sociedades Comerciais [...] (concretamente a ineficácia stricto sensu, a nulidade e a anulabilidade) se lhes deve juntar a inexistência jurídica [Em sentido afirmativo se pronunciam, v. g., PINTO FURTADODeliberações de sociedades comerciais, 2005, págs. 493 e seguintes e OLIVEIRA ASCENSÃODireito comercial, vol. IV, 2000, pág. 395 e seguinte; a tese negativa é preconizada, entre outros, por RAUL VENTURASociedades por quotas (Comentário ao Código das Sociedades Comerciais), vol. II, 1989, pág. 246, MOITINHO DE ALMEIDAAnulação e suspensão de deliberações sociais, pág. 25 e FILIPE CASSIANO DOS DANTOS e HUGO DUARTE FONSECAInexistência e nulidade de deliberações sociais, in Direito das Sociedades em Revista, ano 4, vol. VII, 2012, págs. 52-54, onde escrevem que “se um ato é uma deliberação inexistente tal significa que esse ato não é realmente uma deliberação: é uma não-deliberação”]. [...]

Como assim, inclinamo-nos para rejeitar o reconhecimento da inexistência das deliberações sociais enquanto vício passível de consubstanciar fundamento típico de impugnação das mesmas, sendo de registar, de qualquer modo, que mesmo os autores que admitem a autonomia dessa figura claramente reconhecem que esse vício somente poderá ocorrer em hipóteses de rara verificação.

Como quer que seja, independentemente de se reconhecer, ou não, a inexistência jurídica enquanto categoria autónoma e distinta da nulidade ou da ineficácia stricto sensu das deliberações de sociedades comerciais, a essencial questão que é trazida à apreciação deste tribunal de recurso é a saber se assistirá ao autor legitimidade substantiva para arguir os vícios que imputa às deliberações sociais tomadas na assembleia geral da ré “C…, S.A.”, que teve lugar no dia 6 de outubro de 2010, sendo que o Cód. das Sociedades Comerciais apenas prevê tipicamente as ações de declaração de nulidade e de anulação das deliberações dos sócios, embora alguns autores [
Assim, PINTO FURTADO, ob. citada, pág. 716] venham preconizando que a frase que se contém no nº 1 do art. 60º deste diploma, “a ação de declaração de nulidade”, deve ser entendida como se, em seu lugar, estivesse escrito “a ação de declaração de inexistência, ineficácia ou nulidade”, pelo que a correspondente ação que se fundamente em vício de inexistência jurídica ou de ineficácia stricto sensu, constituindo uma ação de simples apreciação estará subordinada aos mesmos condicionalismos a que se encontra sujeita a ação de declaração de nulidade (tipicamente prevista).

Em consonância com a respetiva disciplina normativa terá legitimidade para arguir a nulidade de uma deliberação de sociedade comercial as entidades referidas no art. 57º, concretamente o sócio (nº 1), o órgão de fiscalização (nº 2) e, nas sociedades que não tenham órgão de fiscalização, “qualquer gerente”, como expressamente se dispõe no seu nº 4.

É certo que para além dessas entidades não está proscrita a possibilidade de outras poderem arguir o vício que inquinará o ato deliberativo, já que, quanto a esta matéria, o citado art. 57º reporta-se unicamente ao âmbito social, limitando-se a acrescentar uma especialidade em relação ao regime geral previsto no Código Civil.

Consequentemente, assumindo, como nos parece, as deliberações natureza de negócio jurídico (qualificação que, ainda assim, não se revela pacífica [
Cfr., sobre a questão, MENEZES CORDEIROManual de Direito das Sociedades – Das sociedades em geral, vol. I, 2004, págs. 613-616onde conclui que a deliberação é um verdadeiro e próprio negócio jurídico; em sentido inversoPINTO FURTADO, Curso de Direito das Sociedades, 5ª ed., pág. 399, preconizando que a deliberação integra, antes, um ato colegial: não um negócio, uma vez que, como ato de vontade que efetivamente seria, ela não corresponderia a uma autorregulamentação de interesses]), ser-lhes-á, por isso, aplicável - quando enfermem de vício de nulidade - a regra de direito comum plasmada no art. 286º do Cód. Civil, nos termos do qual esse vício genético “é invocável por qualquer interessado”.

Portanto, no caso vertente, não se integrando o autor em nenhuma das categorias de entidades previstas no art. 57º, tudo se resume em determinar se será interessado para arguição dos vícios que assaca às ajuizadas deliberações sociais.

Ora, malgrado não se registe uma posição unívoca a propósito da determinação do âmbito subjetivo do aludido conceito, afigura-se-nos claro que o direito de invocação da nulidade não pode conferido a todos, dado que não é (nem pode ser) qualquer pessoa a quem dê jeito, de alguma maneira, a declaração da nulidade, que preenche os requisitos para ser considerado interessado.

De facto - de acordo, aliás, com a própria inserção sistemática do art. 286º -, o interesse que atribui a uma pessoa legitimidade para invocar o vício é um interesse de direito substantivo, que pressupõe a oponibilidade do negócio jurídico ao seu titular, porque o negócio nulo prejudica a consistência jurídica, ou a consistência prática ou económica, de um direito seu [Neste sentido se pronuncia expressamente LEBRE DE FREITASO conceito de interessado no artigo 286º do Código Civil e sua legitimidade processualin Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, 2007, pág. 384. Em análogo sentido, em matéria de impugnação das deliberações sociais, militam OLAVO CUNHA, ob. citada, pág. 216, PINTO FURTADO, ob. citada, pág. 758 e TAVEIRA DA FONSECAin Deliberações sociais: suspensão e anulação, 1994, pág. 56]. O sujeito legitimado deve, assim, ter um interesse direto na nulidade e não apenas um interesse reflexo, vago e indireto.

Daí que, transpondo essa leitura para o domínio da impugnação das deliberações sociais, não falta quem advogue que, por via de regra, somente o sócio tem reconhecido interesse direto na procedência da ação de declaração de nulidade [Cfr., neste sentido, na jurisprudência, acórdão da Relação de Évora de 7.07.2005 (processo nº 1231/05-2), acessível em www.dgsi.pt; na doutrina adota uma conceção restritiva da legitimidade para a propor a nulidade de deliberações sociais, entre outros, ANTÓNIO LUZ PARDALA impugnação de deliberações sociais nas sociedades por quotas. Em particular a legitimidade ativa do cônjuge e do ex cônjuge do sócioin Estudos de Direito Privado, 2014, pág. 197].

Como se referiu, in casu, o apelante filia o seu interesse no facto de ser depositário das 495.270 ações (representativas de 99,06% do capital da ré “C…, S.A.”) pertencentes ao réu E…, tendo sido investido nessa qualidade na sequência de penhora de tais valores mobiliários que foi decretada no âmbito da ação executiva que a este demandado foi movida por “G…, S.A.”.

Ora, nos termos da lei adjetiva (cfr. art. 843º do pretérito Código de Processo Civil, então em vigor), ao depositário incumbe apenas a administração e guarda dos bens penhorados, sendo que a penhora não produz qualquer diminuição de capacidade do proprietário/titular desses bens, apenas o privando da possibilidade de os alienar.

Significa isto, portanto, que a penhora tem caráter eminentemente patrimonial, pelo que o exercício dos direitos pessoais/sociais do sócio/acionista titular dos valores mobiliários que foram alvo dessa diligência não é por ela afetado. Dito de outro modo, o exercício dos direitos sociais (no qual se integra o de impugnação de deliberações dos sócios) é de natureza pessoal, não se transferindo para o depositário, dado que o respetivo direito continua a radicar na esfera jurídica do sócio/accionista [Isso mesmo se sublinha no acórdão do STJ de 16.10.2008 (processo nº 08A2456), acessível em www.dgsi.pt, onde se decidiu que a pretensão de obtenção de declaração de invalidade da deliberação de uma sociedade comercial corresponde ao exercício de “um direito social ou corporativo participativo”; idêntico posicionamento tem sido sufragado na doutrina (v. g. por MENEZES CORDEIRO, ob. citada, págs. 509 e seguinte e BRITO CORREIAin Direito Comercial, vol. II, págs. 305 e seguinte) que integra o direito de impugnar deliberações sociais inválidas nos denominados direitos gerais ou comuns dos sócios], como emerge, designadamente, dos arts. 21º, nº 1, al. b), 373º, 376º e 379º, nº 1.

Deste modo, o autor/apelante, enquanto depositário das mencionadas ações (sendo, pois, mero possuidor precário ou possuidor em nome alheio), carece de legitimidade substantiva para a invocação de vício de nulidade de que alegadamente padeçam as ajuizadas deliberações sociais, tanto mais que não é atingido diretamente na sua esfera jurídica por esse ato deliberativo.

Tanto basta para julgar improcedente a pretensão recursória aduzida pelo apelante, mostrando-se, nessa medida, prejudicado o conhecimento das demais questões que consubstanciam objeto do presente recurso, não havendo, por conseguinte, que delas conhecer (art. 608º, nº 2 ex vi do art. 663º, nº 2 in fine do Cód. Processo Civil)."


[MTS]