"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/05/2018

Jurisprudência 2018 (19)


Notário; impedimento; nulidade;
documento particular


1. O sumário de RL 18/1/2018 (1210/14.9T8LSB.L1-6) é o seguinte:

– O artigo 5 do Código do Notariado, consagra os impedimentos legais dos notários e oficiais públicos, sancionados com a nulidade do acto praticado nos termos do artº 71 nº1 do mesmo Código.
 
– Está legalmente impedida de realizar o acto notarial, notária accionista e administradora de sociedade anónima, outorgante na referida escritura e nela representada pelo seu filho, presidente do respectivo Conselho de Administração, por se entender ser beneficiária, ainda que indirecta, do acto, quer ela própria quer o seu parente em linha recta.
 
– A nulidade do instrumento público acarreta normalmente a invalidade do acto ou negócio que nele se contém, que fica assim privado dos efeitos jurídicos que visava.
 
– No entanto, nem sempre a forma autêntica é exigida para a validade do negócio jurídico, vigorando em princípio a liberdade de forma (artº 219 do C.C.) pelo que, nestes casos, a invalidade do instrumento não acarreta a invalidade do negócio que lhe subjaz.
 
– Do teor das disposições conjugadas do artº 71 nº1 do C. do Notariado e 369 do C.C. extrai-se que o legislador consignou a nulidade do acto notarial nos casos de impedimento do notário, deixando pois em consequência de existir documento autêntico, munido de especial força probatória, relativamente aos factos que se referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora, mas tal nulidade do acto notarial não implica a nulidade do acto ou negócio nele contido.
 
– Nestes casos, o documento lavrado por oficial público incompetente ou impedido, ou sem a observância das formalidades legalmente prescritas, desde que assinado pelas partes, tem a mesma eficácia probatória do documento particular e vale como tal.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"Não sendo posta em crise a factualidade adquirida pelo tribunal recorrido, insurge-se o recorrente contra a decisão que declarou nula a escritura de cessão de posição contratual celebrada pela notária J..., esgrimindo em síntese os seguintes argumentos:

– sendo a cessionária uma sociedade anónima, não estava a referida Notária impedida de lavrar a escritura de cessão da posição contratual sub judice pelo facto de ser accionista da mesma e o respectivo representante na escritura em causa ser seu filho;

– se a notária que a lavrou estivesse impedida de a fazer, a única consequência seria a mesma perder a força de documento autêntico, mas o acto de cessão da posição contratual não era afectado em si mesmo;

– mesmo considerando que a escritura sub judice, por ter perdido a fé pública que a intervenção notarial lhe atribuía, deixou de ser um documento autêntico, passou a assumir a forma de um documento particular, forma esta que é a legalmente exigida para a cessão da posição contratual num contrato promessa de compra e venda de um imóvel;

– posteriormente à escritura sub judice, concretamente em 26 de Setembro de 2014, entre o cedente A... e a cessionária sociedade foi celebrado perante a Notária M... uma escritura pública em que o primeiro voltou a declarar a sua vontade de ceder a sua posição contratual no contrato promessa sub judice à segunda e esta a sua vontade de assumir tal posição nesse contrato nos precisos termos em que a haviam feito na escritura sub judice, pelo que este acto extinguiria parcialmente o efeito jurídico pretendido pela A. nesta acção;

– a A. sabia à meses que o representante da 2ª R. na escritura era filho da notária, tendo recebido parte dos valores acordados pela cessão, actuando em abuso de direito; [...]
b) Se existia impedimento legal à realização da escritura pública pela notária J...;

Decidindo:

Considerou a decisão impugnada a nulidade da escritura pública de cessão de posição contratual lavrada pela A. e pelos RR., por impedimento da notária que a lavrou, dadas as relações familiares existentes entre a referida notária e o presidente do Conselho de Administração da 2ª R., que outorgou nessa escritura na qualidade de representante da referida R., por violação do disposto nos artºs 5 nº1 e 72 do Código do Notariado.

Argumentou o tribunal recorrido citando Sofia Henriques, in O REGIME DE IMPEDIMENTOS E SUSPEIÇÕES DO NOTÁRIO NO ÂMBITO DO PROCESSO DE INVENTÁRIO, disponível in Revista Julgar que “os Notários são oficiais públicos, que exercem em regime de profissão liberal, funções públicas e privadas, o que os obriga a especiais deveres de imparcialidade e isenção.” visando este impedimento legal “assegurar os deveres de isenção e imparcialidade e evitar os casos de abuso da função”, concluindo que estamos “perante norma imperativa, que determina ope legis a nulidade do acto”.

Ora, dispõe o artº 71 nº1 do C. do Notariado, que é nulo o acto lavrado por funcionário legalmente impedido.

Os casos de impedimento do notário estão previstos no artº 5 do C. do Notariado, dispondo este que 

1– O notário não pode realizar actos em que sejam partes ou beneficiários, directos ou indirectos, quer ele próprio, quer o seu cônjuge ou qualquer parente ou afim na linha recta ou em 2.º grau da linha colateral.

2– O impedimento é extensivo aos actos cujas partes ou beneficiários tenham como procurador ou representante legal alguma das pessoas compreendidas no número anterior.

3– O notário pode intervir nos actos em que seja parte ou interessada uma sociedade por acções, de que ele ou as pessoas indicadas no n.º 1 sejam sócios, e nos actos em que seja parte ou interessada alguma pessoa colectiva de utilidade pública a cuja administração ele pertença
.”

Alega o recorrente que esta norma não impede a realização de actos pelo notário quando seja parte uma sociedade por acções de que ele seja sócio, pelo que sendo a notária accionista da sociedade J... S.A., não estava impedida de celebrar a referida escritura não obstando a este entendimento o facto de o representante dessa firma e interveniente no acto, ser seu filho.

Não é este, no entanto, o sentido desta norma. Pode o Notário intervir em escrituras em que seja parte ou interessada uma sociedade por acções (anónima) de que seja sócio (accionista), desde que com observância do disposto no nº1, ou seja, desde que, em razão da sua qualidade de accionista, não seja beneficiário directo ou indirecto (nomeadamente por deter o controlo desta sociedade), do acto que se pretende abrangido pela forma pública, nem o sejam os demais parentes e afins indicados no nº 1.

Ora, resultou provado que a referida notária para além de accionista, é administradora da ré J... S.A. [...].

Detendo a qualidade de accionista e administradora da referida sociedade, estava a Srª Notária impedida de lavrar a escritura em apreço, acrescendo a este impedimento o facto de o representante da referida sociedade (presidente do Conselho de Administração) ser seu filho, incluído pois no elenco dos descendentes em linha recta, referidos no nº1 da citada norma legal.

Dos factos provados, conforme refere a sentença recorrida, decorre ainda que a Srª Notária lavrou acordos respeitantes a este imóvel e à referida cessão, com a A. e o 1º R., actuando quer em seu nome, quer em nome da ora 2ª R.

Existia, assim, um impedimento legal à prática deste acto por parte da referida notária, baseado nos deveres de isenção, imparcialidade e fé pública, que o notário tem de observar.

Alega no entanto, a recorrente, que este impedimento, a existir, afecta apenas a fé pública do documento mas não a validade do negócio, que não necessita de qualquer forma especial, invocando o disposto nos artºs 71 nº1 do Código do Notariado, 294 e 369 nº2 do C.C., argumentação que não foi acolhida pelo tribunal recorrido.

Passemos assim à questão colocada pelo recorrente que se prende com os efeitos da nulidade do acto notarial.

c) Se o impedimento da notária afecta a validade substancial do negócio.

A nulidade decorrente de impedimento legal para a prática do acto por parte da notária, constitui uma nulidade absoluta do acto notarial e não de mera anulabilidade, não consentindo qualquer sanação do acto, conforme refere a decisão recorrida.

Com efeito, de acordo com “A.M. Borges Araújo, “Prática Notarial”, Almedina, 4ª ed. a págs. 162, “o sistema notarial assenta no princípio da taxatividade (numerus clausus) das causas geradoras de invalidade, daqui decorrendo que a nulidade só se verifica quando a lei expressamente a determine por ocorrer algum dos factos especialmente previstos na mesma lei como causa de invalidade. (…)

Este princípio de taxatividade (…), corresponde a óbvias exigências do senso comum assim como a elementares necessidades de certeza e segurança da vida jurídica. Pense-se na infinidade e variedade de deveres que cingem o notário no exercício da sua função, o mesmo é que dizer na prática dos seus actos, e pense-se ainda no desigual relevo desse mesmos deveres.”

Justifica-se por outro lado, as gravosas consequências da nulidade do acto notarial, nestes casos taxativos, tendo em conta que se trata de oficial público no exercício das suas funções, merecedor de especial fé e confiança públicas.

Assim sendo, a lei notarial prevê apenas duas formas distintas para o suprimento de vícios determinantes de nulidade do acto notarial, uma que designou de sanação prevista para determinadas nulidades referidas nos artsº 70 e 71 nº3 do C. Notariado e de revalidação prevista no artº 73 do mesmo diploma legal.

A nulidade em apreço não é passível de sanação notarial, porque não enquadrável no disposto no artº 71 nº 3 acima referido, nem na excepção prevista na parte final do nº1 do referido artigo.

Com efeito, dispõe este preceito que “1 - É nulo o acto lavrado por funcionário incompetente, em razão da matéria ou do lugar, ou por funcionário legalmente impedido, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 369.º do Código Civil.

Versa por sua vez este preceito legal sobre a “Competência da autoridade ou oficial público”, estabelecendo que 

1.– O documento só é autêntico quando a autoridade ou oficial público que o exara for competente, em razão da matéria e do lugar, e não estiver legalmente impedido de o lavrar.

2.– Considera-se, porém, exarado por autoridade ou oficial público competente o documento lavrado por quem exerça publicamente as respectivas funções, a não ser que os intervenientes ou beneficiários conhecessem, no momento da sua feitura, a falsa qualidade da autoridade ou oficial público, a sua incompetência ou a irregularidade da sua investidura.

A excepção consignada no nº2 deste artº 369 acima transcrito, reporta-se à competência do oficial público e não aos impedimentos legais, que constituem casos de nulidade absoluta do acto.

Assim, o documento só é autêntico quando a autoridade ou oficial público não estiver legalmente impedido de o lavrar.

Por outro lado, a nulidade do instrumento público acarreta normalmente a invalidade do acto ou negócio que nele se contém, que fica assim privado dos efeitos jurídicos que visava.

No entanto, nem sempre a forma autêntica é exigida para a validade do negócio jurídico, vigorando em princípio a liberdade de forma (artº 219 do C.C.).

Nestes casos, a invalidade do instrumento não acarreta a invalidade do negócio que lhe subjaz.

A questão coloca-se com mais acuidade, nos casos em que está prevista a forma escrita ou em que as partes acordaram numa forma especial para a declaração, presumindo-se então que “as partes se não querem vincular senão pela forma convencionada.” (artº 223 do C.C.)

A este respeito entendeu a sentença sob recurso, citando um acórdão de 10/01/2017 da R. do Porto, que constituindo esta escritura violação de lei imperativa, “não se poderá deixar entrar pela janela aquilo que, manifestamente, o legislador não quis deixar entrar pela porta.”

Diga-se que o referido acórdão não visa, nem se pronuncia, sobre qualquer nulidade decorrente do impedimento do notário, mas antes sobre a invalidade decorrente da inserção numa escritura de partilhas de declaração diversa da vontade dos declarantes, que traduz uma desconformidade entre a declaração e a vontade real, efectuadas perante o notário, entendendo que não era possível a redução ou aproveitamento do negócio, por violadora de lei imperativa (quanto ao loteamento). 

Há assim, que fazer apelo às disposições conjugadas do artº 71 nº1 do C. do Notariado e 369 do C.C. Destas extrai-se que o legislador consignou a nulidade do acto notarial nos casos de impedimento do notário, deixando, pois, em consequência, de existir documento autêntico munido de especial força probatória, relativamente aos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.

No entanto, esta nulidade do acto notarial não implica, por si só, a nulidade do acto ou negócio nele contido.

É esta a solução mais consentânea com os fins visados por estas normas, sendo certo que os vícios notariais não se estendem à validade substantiva do negócio.

Deixando de existir documento autêntico nos termos do disposto no artº 369 nº1 do C.C., existe no entanto documento particular, subscrito e contendo as declarações dos nela intervenientes, sem que razões de peso existam para considerar a invalidade substancial, ou formal do acto, antes existindo razões para o seu aproveitamento.

Com efeito, no caso em apreço, reportando-se a cessão de posição contratual a contrato promessa de compra e venda de imóvel, a forma legalmente exigida é o documento escrito (artºs 410 e 425 nº1 do C.C.), forma essa que se mostra cumprida, sem que tenham sido alegados factos dos quais decorra a essencialidade da escritura em causa. 

Denote-se que a A., que interpõe esta acção, recebeu, quer nesta ocasião quer posteriormente, parte do preço da cessão vertida neste instrumento, pagamento por si aliás peticionado já após a outorga da referida escritura, constando o pagamento da demais parcela acordado, estando pois o negócio nos seus termos gerais, praticamente concluído.

Por noutro lado e como refere Vaz Serra nos trabalhos preparatórios do Código Civil (Provas nº 69, in BMJ 111, págs. 102 e segs.), sendo ponderada a inclusão no código civil de preceito idêntico ao vigente nos sistemas francês e italiano, que consagra que o documento lavrado por oficial público incompetente ou impedido, ou sem a observância das formalidades legalmente prescritas, desde que assinado pelas partes, tem a mesma eficácia probatória do documento particular e vale como tal (artºs 2071 do C.C. italiano e 1318 do C.C. francês), foi decidido no sentido da desnecessidade de inclusão de disposição desse teor no nosso ordenamento civil, por resultar já dos princípios gerais que, se o documento exarado por oficial público não puder valer como autêntico, pode valer como documento particular. (neste sentido vidé ainda A.M. Borges Araújo, obra citada, págs 174 e segs. e Pinto Furtado, A Acta e o Instrumento Notarial, de documentação das reuniões de assembleia das sociedades comerciais, Revista de Dir. de Estudos Sociais, XXV, págs. 63 e segs.).

Assim sendo, conclui-se que o impedimento da notária que lavrou a escritura pública não afecta a validade substantiva ou formal do negócio de cessão de posição contratual em apreço, cuja nulidade é aqui invocada e peticionada."
 
[MTS]