"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/05/2018

Jurisprudência 2018 (20)


Contrato de arrendamento;
título executivo; fiador


1. O sumário de RL 18/1/2018 (10087-16.9T8LRS-B.L1-6) é o seguinte;

– Não revestindo por si, o contrato de arrendamento, enquanto mero documento particular, a qualidade de título executivo, esta qualidade foi-lhe atribuída expressamente pelo artº 703 nº1 d) do C.P.C., sendo este título de natureza complexa, composto pelo contrato de arrendamento e pela notificação ao arrendatário (e fiador) dos montantes em dívida.
 
– Do teor do artº 14-A do NRAU não se retira que o contrato de arrendamento acompanhado da respectiva comunicação não constitua título executivo contra o fiador, mas antes a intenção de “obrigar o exequente a proceder a uma espécie de liquidação aritmética extrajudicial prévia dos montantes em dívida, de forma a conferir maior grau de certeza quanto ao montante peticionado, tendo em conta a potencial vocação duradoura do contrato”.
 
– A responsabilidade do fiador, salvo estipulação em contrário (artº 631, nº 1 do C.C.), molda-se pela do devedor principal e abrange tudo aquilo a que ele está obrigado: não só a prestação devida, mas também a reparação dos danos resultantes do incumprimento culposo (artº 798 do C.C.) ou a pena convencional que porventura se haja estabelecido (artigo 810 do C.C.).
 
– Estando ambos vinculados pelo contrato de arrendamento e constando efectuada a comunicação ao fiador nos mesmos termos que a efectuada ao arrendatário, nenhuma razão existe para excluir o fiador deste título executivo.
 
– O artº 14-A do NRAU abrange quer as rendas vencidas quer as rendas vincendas e a indemnização devida pela mora na entrega do locado, contendo a comunicação remetida todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos, sem que seja imprescindível uma prévia liquidação, a qual se resume a uma operação aritmética.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"a) – Da interpretação do artº 14-A do NRAU, nomeadamente se o contrato de arrendamento acompanhado da carta de interpelação ao devedor constitui apenas título executivo contra o arrendatário ou também contra o fiador.

A decisão da presente apelação prende-se basicamente com a interpretação a conferir ao artigo 14º-A, do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, com o aditamento resultante da Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto (corresponde ao anterior artigo 15º, nº 2, do mesmo diploma legal.)

Refere este artigo 14-A que: “O contrato de arrendamento quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário”.
 
A interpretação deste artigo não tem sido pacífica, inclinando-se a doutrina para a tese de que o fiador estaria excluído deste preceito legal, formando-se título executivo contra o próprio arrendatário (para além da citada na decisão recorrida, temos ainda as posições de Fernando Gravato de Morais, in “Falta de pagamento de renda no arrendamento urbano”, pags. 77 a 81; Cadernos de Direito Privado, nº 27, pags. 57 a 63, e in “A jurisprudência no triénio posterior à entrada em vigor do NRAU”, publicado na revista “Direito e Justiça – Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes”, pags. 512 a 513 e Rui Pinto, in “Manual de Execução de Despejo”, a páginas 1164 a 1165).

Também na jurisprudência se tem debatido esta questão com posições no sentido da exclusão do fiador, de que são exemplos os Acs. do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de Novembro de 2007 (relator José Eduardo Sapateiro); acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Setembro de 2014 (relator Ezaguy Martins); acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31 de Março de 2009 (relatora Ana Resende); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de Abril de 2014 (relator Aristides de Almeida), proc. nº 869/13.9YYPRT.P1, todos publicados in www.dgsi.pt.

Em sentido oposto, vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Novembro de 2014 (relator Granja da Fonseca), Proc. nº 1442/12.4TCLRS-B.L1.S1; decisão singular do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Dezembro de 2008 (relator Tomé Gomes); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Março de 2013 (relatora Anabela Dias da Silva); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Junho de 2009 (relator Cândido Lemos); acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Março de 2009 (relatora Catarina Arêlo Manso), acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de Maio de 2011 (relator Rui Moura); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6 de Outubro de 2009 (relator Henrique Antunes); acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de Junho de 2010 (relatora Fátima Galante); acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de Abril de 2009 (relatora Sílvia Pires); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Maio de 2010 (Rodrigues Pires); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12 de Maio de 2009 (relator Guerra Banha); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Outubro de 2011 (relatora Cecília Agante), proc. nº 8436/09.5TBVNG-A.P1, acórdão de 07/07/2016, relatora Maria do Rosário Morgado, Proc. nº 13257/15.3T8LSB-A.L1-7, acórdão de 07/06/2016, relator Luís Espírito Santo, proc. nº 5356/12.0TBVFX-B.L1-7, acórdão da Relação de Lisboa de 10/11/16, relator Vaz Gomes, proc. nº 4633/08.9YYLSB-B.L1-2, todos publicados in www.dgsi.pt; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21 de Março de 2013 (relator Bernardo Domingos), publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXVIII, Tomo II, pags. 251 a 254; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1 de Março de 2012 (relator Ilídio Sacarrão Martins) – sumário – publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXVII, Tomo II, página 301; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22 de Outubro de 2015 (relator Rui da Ponte Gomes); acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29 de Maio de 2012 (relatora Maria da Purificação Carvalho), ambos publicitados in www.jusnet.pt.

Sendo questão controversa quer na doutrina, quer na jurisprudência, conforme acima referido, a nosso ver, do teor do artº 14-A do NRAU não se retira que o contrato de arrendamento acompanhado da respectiva comunicação não constitua título executivo também contra o fiador.

Não revestindo por si, o contrato de arrendamento, enquanto mero documento particular, a qualidade de título executivo, esta qualidade foi-lhe atribuída expressamente pelo artº 703 nº1 d) do C.P.C., sendo este um título de natureza complexa, composto pelo contrato de arrendamento e pela notificação ao arrendatário (e fiador) dos montantes em dívida.

Com efeito, existindo fiadores, estes também poderão ser demandados, desde que tenham sido notificados pelo senhorio do montante em dívida (neste sentido vide ainda Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A acção executiva Anotada e Comentada, págs. 147).

Não se pode extrair da menção efectuada neste preceito à exigência de comunicação ao arrendatário dos montantes em dívida, como uma exclusão da sua extensão ao fiador, mas antes a de “obrigar o exequente a proceder a uma espécie de liquidação aritmética extrajudicial prévia dos montantes em dívida, de forma a conferir maior grau de certeza quanto ao montante peticionado, tendo em conta a potencial vocação duradoura do contrato” (Decisão singular desta Relação, proferida em 12.12.2008, Relator Manuel Tomé Soares Gomes, www.dgsi.pt)
 
Assim sendo, neste contrato/título constam como obrigados/executados os nele contraentes devedores, ambos responsáveis pelo pagamento das rendas devidas ao credor senhorio.

Nem na letra do preceito nem nas razões para a criação deste título executivo, se vê qualquer motivo para afastar o fiador do seu âmbito, de acordo aliás com o disposto nos artºs 627, 631 e 634 do C.C. que consagra a responsabilidade do fiador de assegurar com o seu património o cumprimento de obrigação alheia, ficando pessoalmente obrigado perante o respectivo credor.

Com efeito, os traços básicos do regime jurídico deste instituto exprimemse sinteticamente por duas características: a acessoriedade e a subsidariedade.

O artigo 627º, nº 2, do C.C. estabelece esta acessoriedade ao declarar que “A obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor”. Essa acessoriedade projectase em várias disposições dos artigos seguintes. Assim, quanto à forma, o artigo 628 preceitua que a vontade de prestar fiança deve ser declarada pela forma exigida para a obrigação principal; quanto ao conteúdo, o artigo 631 estabelece que não pode exceder o da dívida principal, nem a fiança ser contraída em condições mais onerosas; quanto à validade, está dependente, por força do artigo 632º, da obrigação principal; quanto à extinção, o artigo 651 prescreve que se verifica pela extinção da obrigação principal.

Por outro lado, como acessória, a obrigação do fiador é uma obrigação distinta da do devedor, embora tenha o mesmo conteúdo.

A obrigação assumida pelo fiador revela-se não só acessória, mas ainda, normalmente, subsidiária da dívida principal. Com efeito, na medida em que a regra se afirme, o seu cumprimento só pode ser exigido quando o devedor não cumpra nem possa cumprir a obrigação a que se encontra adstrito.

A subsidariedade da fiança concretiza-se no benefício da excussão que consiste no direito que pertence ao fiador de recusar o cumprimento enquanto não estiverem excutidos todos os bens do devedor principal.

Há, todavia, situações em que o fiador não goza do benefício da excussão prévia dos bens do devedor, conforme resulta à saciedade do disposto no artº 640 do C.C.

Nos termos da alínea a) deste preceito legal, o fiador não pode invocar os benefícios constantes dos artigos anteriores quando houver renunciado ao benefício da excussão e, em especial se tiver assumido a obrigação de principal pagador.

Consoante se aplique ou não o regime do benefício da excussão, assim se diz em doutrina, que a fiança é simples ou solidária.

Ora, a qualificação da fiança como solidária, demonstra que a expressão "solidariedade" não é, necessariamente, utilizada para designar o seu sentido corrente a pluralidade real de devedores.

É pela interpretação da vontade das partes, e pelos termos empregues no contrato que é possível saber se se quis ou não constituir uma fiança e os termos da mesma (cfr. Vaz Serra, Fiança e figuras análogas, nº 1; Bol. nº 71).

No caso dos autos, infere-se do teor do termo de fiança inserto no contrato de arrendamento em apreço que o executado Paulo pretendeu constituir-se fiador do arrendatário, como aliás o comprova o próprio termo "fiador" utilizado no contrato. Significam os termos empregues no aludido contrato que a presente garantia tem o conteúdo e o âmbito legal de uma fiança solidária, incluindo a assunção das obrigações do afiançado, nos precisos termos constantes desta clausula 8ª.

Dado ter sido outorgada a prestação de fiança, ainda que solidária, esta, como foi atrás explicitado, deve acompanhar a obrigação principal, cujo cumprimento garante, precisando ainda a lei que “a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor” (artº 634). Daqui se conclui, portanto, que a responsabilidade do fiador, salvo estipulação em contrário (artº 631, nº 1), se molda pela do devedor principal e abrange tudo aquilo a que ele está obrigado: não só a prestação devida, mas também a reparação dos danos resultantes do incumprimento culposo (artº 798) ou a pena convencional que porventura se haja estabelecido (artigo 810). Com efeito, quem garante certa obrigação como fiador, pretende, em regra, dar ao credor a segurança de que ele obterá o resultado do cumprimento dessa obrigação. Nestes termos, o fiador, se não estipulou o contrário, responde, não só pela prestação devida pelo devedor, mas também pelo equivalente pecuniário dela e pelos danos causados ao credor pelo não-cumprimento.

Constituída a fiança passam a existir duas obrigações, a do devedor (principal) e a do fiador, que é acessória da daquele – n.º 2 do art. 627º do Cód. Civil. Porém quando o fiador se obriga como fiador e principal pagador quer dizer que renuncia ao benefício da excussão e que a sua garantia acompanhará o arrendatário até ao fim do arrendamento (cfr. Aragão Seia, in Arrendamento Urbano, 6ª ediç., Almedina, pág. 183). Consequentemente, arrendatário e fiador respondem solidariamente pela prestação inicial, bem como pelas consequências legais e contratuais do não cumprimento, incluindo a mora.

Estando ambos vinculados pelo contrato de arrendamento e constando efectuada a comunicação ao fiador nos mesmos termos que a efectuada ao arrendatário, nenhuma razão existe para excluir o fiador deste título executivo, não se podendo considerar que é este a parte mais desprotegida, sem verdadeiro conhecimento ou controlo do cumprimento do contrato (como defendido por Fernando Gravato de Morais, in “Falta de pagamento de renda no arrendamento urbano”, pags. 77 a 81).

Aliás a exigência do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante das rendas em dívida não tem em vista demonstrar a constituição da dívida exequenda, pois ela decorre do próprio contrato, nem se destina a interpelar o devedor, já que se está perante uma obrigação pecuniária de montante determinado e prazo certo (renda – cfr. art. 805.º, n.º 2, al. a) do Cód. Civil), mas destina-se a obrigar o exequente a proceder à liquidação prévia das rendas em dívida, de forma a conferir um grau de certeza quanto ao montante da dívida exequenda, face à vocação tendencialmente duradoura do contrato de arrendamento e ao carácter periódico das rendas.

Concluindo, não restringindo a norma do NRAU o título ao arrendatário, deve entender-se que também existe título contra o fiador que tenha intervindo no contrato, assim se poupando a necessidade de instauração de uma acção declarativa contra o fiador. (Ac. deste Tribunal da Relação de 27/10/16, proferido no Proc. nº 4960/10.5TCLRS.L1-6, relator Eduardo Petersen Silva; José Henrique Delgado de Carvalho, Ação Executiva para Pagamento de Quantia Certa, Quid Juris, pág. 263)."
 
[MTS]