"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/05/2018

Para que serve afinal a prova por declarações de parte?


1. A prova por declarações de parte -- regulada no art. 466.º CPC -- constituiu uma das novidades introduzidas pelo actual CPC no processo civil português. À partida, não seriam de esperar nenhumas dificuldades quanto ao valor probatório a atribuir a essa prova: esta deveria ser apreciada, como qualquer outra prova livre, segundo a prudente convicção formada pelo juiz (art. 466.º, n.º 3, e 607.º, n.º 5, CPC). Algo inesperadamente, essa apreciação tem, todavia, suscitado algumas dificuldades.

Vem tudo isto a propósito do acórdão da RP de 23/4/2018 (82/17.1T8VNG.P1), em cujo sumário se pode ler o seguinte: "em ação de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, as declarações de parte prestadas pelo autor que versam sobre factos favoráveis à procedência da ação, desacompanhadas de qualquer outro meio de prova, não constituem meio de prova bastante para prova de tais factos." Com o devido respeito, esta afirmação (que, em termos aproximados, é subscrita por outra jurisprudência citada no acórdão) padece de um equívoco que importa procurar desfazer.

2. Convém começar por referir alguns dados da causa na qual foi proferido o acórdão em análise. Tratava-se, como resulta do sumário, de uma acção de divórcio sem mútuo consentimento que não foi contestada e na qual, porque a revelia nessa acção é necessariamente inoperante (cf. art. 568.º, al. c), CPC), foi necessário que o autor procedesse à prova dos factos por ele alegados. O tribunal de 1.ª instância, de acordo com o que se encontra referido no acórdão, deu como provados os seguintes factos:
 
"1) A e R. contraíram casamento católico a 8 de agosto de 1982 conforme doc. de fls. 6 e 7.

2) Desde 2005 que o A. se encontra emigrado, a trabalhar, primeiro em Espanha e depois em França.

3) Quando o A. vem a Portugal, volta para a casa de morada de família.

4) Pelo menos desde 2015 que A. e R. não dormem juntos ou têm relações sexuais, não comem juntos em casa, a R. não o acompanha nem o convida para a acompanhar, não tomam decisões em conjunto, a R. não lhe telefona para França, e chegou a ir a França e não procurou ou visitou o A. (tema de prova a)). [...]

Em sede de fundamentação de direito, na análise dos fundamentos do divórcio, considerou-se, ainda, o seguinte facto que não consta do elenco dos factos provados e nos quais se passa a incluir:

- [o autor tem a] intenção de romper a vida em comum, intenção interior de pelo menos um deles de não restabelecer a vida matrimonial."

Dos fundamentos do acórdão resulta que a prova dos factos referidos em 2), 3) e 4) e da intenção de o autor não restabelecer a vida matrimonial teve as seguintes particularidades: (i) essa prova foi realizada apenas com base em declarações do autor; (ii) essa prova não foi impugnada pela parte contrária, ou seja, pelo cônjuge demandado.

Reapreciando a prova realizada na 1.ª instância nas circunstâncias acabadas de referir, a RP considerou não provados os seguintes factos:
 
"- Desde 2005 que o A. se encontra emigrado, a trabalhar, primeiro em Espanha e depois em França.
 
- Quando o A. vem a Portugal, volta para a casa de morada de família.

- Pelo menos desde 2015 que A. e R. não dormem juntos ou têm relações sexuais, não comem juntos em casa, a R. não o acompanha nem o convida para a acompanhar, não tomam decisões em conjunto, a R. não lhe telefona para França, e chegou a ir a França e não procurou ou visitou o A. (tema de prova a)).

- [o autor tem a] intenção de romper a vida em comum, intenção interior de pelo menos um deles de não restabelecer a vida matrimonial."

Como fundamento para considerar estes factos não provados, os subscritores do acórdão referem que "temos atribuído às declarações de parte a função de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outras não haja, como prova subsidiária, mas se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas". Com a devida consideração pelos subscritores do acórdão, esta argumentação não pode ser considerada procedente.

3. Antes do mais, não é nada claro o que se pretende transmitir quando se afirma que, para que a prova por declarações de parte possa ter algum valor probatório, é necessário que ambas as partes tenham sido efectivamente ouvidas, ou seja, que tenha havido contraditório. É claro que, em observância do disposto no art. 415.º CPC, é necessário que o tribunal tenha assegurado o contraditório na produção da prova; mas disto não decorre, de forma alguma, que apenas provas em que tenha havido um contraditório efectivo possam ter valor probatório.

Em termos práticos, este entendimento concede à parte contrária um "direito de veto" sobre a atribuição de valor probatório à prova por declarações da outra parte: se uma das partes preferir, como parece ter sucedido no caso analisado no acórdão, não exercer o contraditório quanto à prova por declarações da outra parte, isso bloqueia a possibilidade de o tribunal conceder valor probatório a estas declarações. Nem é necessário invocar que não são válidos os contratos probatórios que fixam a apreciação das provas pelo tribunal (cf. art. 345.º, n.º 2 2.ª parte, CC) para se poder concluir que a ausência de contraditório da parte não pode vincular o tribunal a não atribuir nenhum valor probatório às declarações da parte. O não exercício do contraditório é uma opção da parte que é insusceptível de impedir o tribunal de atribuir valor probatório às declarações da outra parte.

Depois, também não se pode acompanhar a orientação segundo a qual a prova por declarações de parte deve ser entendida como um meio de prova complementar ou com uma função de clarificação de outras provas. Não se ignora, como é evidente, que a prova por declarações de parte merece uma especial ponderação pelo tribunal, dado que é a própria parte que depõe em juízo sobre factos que, em princípio, lhe são favoráveis. Isto é, no entanto, coisa completamente diferente de se entender que, à partida e independentemente de qualquer valoração específica em função das circunstâncias do caso concreto, a prova por declarações de parte não pode ter um valor probatório próprio.

As consequências indesejáveis desta concepção sobre o valor probatório da prova por declarações de parte são exemplarmente demonstradas no próprio acórdão em apreciação. Recorde-se que foi com base na ideia de que a prova por declarações de parte não pode ter um valor probatório próprio que a RP considerou não provado que o autor e a ré não dormem juntos e não têm relações sexuais e que o autor tem a intenção de romper a vida em comum. Pode efectivamente perguntar-se se é de esperar que haja prova por terceiros de que os cônjuges não dormem juntos e não têm relações sexuais ou se é de exigir que a intenção do autor de não restabelecer a vida em comum tenha igualmente de ser provada por terceiros.

A jurisprudência e a doutrina alemães falam, em contextos semelhantes àquele em que a RP se pronunciou, de um "estado de necessidade probatório" (Beweisnotstand) que só pode ser ultrapassado através da audição das partes (sobre a matéria, cf., com justificações não coincidentes em termos de direito positivo alemão, Greger, MDR 2014, 313 ss.; Ahrens, MDR 2015, 185 ss.). Pela perspectiva do direito português, há que referir que a não atribuição de um valor probatório próprio à prova por declarações de parte é contraditória com a faculdade, resultante da conjugação do disposto no art. 466.º, n.º 2, CPC com o estabelecido no art. 452.º, n.º 1, CPC, de o juiz ordenar oficiosamente essa prova. Se o tribunal tem o poder de ouvir as partes sobre, por exemplo, um aspecto das negociações de um contrato, isso só pode querer significar que o tribunal tem o poder de avaliar, para efeitos probatórios, as declarações que as partes venham a produzir (ou mesmo, como é claro, a declaração que só uma delas venha a produzir, pela recusa de depoimento ou por um depoimento evasivo da outra). Qualquer outra interpretação diminuiria a relevância ou retiraria mesmo qualquer justificação para os poderes oficiosos atribuídos ao tribunal pelos referidos preceitos.

Do exposto resulta que nada justifica a desqualificação, à partida, do valor probatório da prova por declarações de parte. Esta prova tem o valor probatório que, em função do caso, for justificado atribuir segundo a prudente convicção do juiz.

4. Já acima se deixou um apontamento de direito comparado. Acrescenta-se agora um outro.

O § 448 ZPO estabelece o seguinte: "Mesmo sem o pedido de uma parte e sem a consideração [da distribuição] do ónus da prova, o tribunal pode, quando o resultado da audiência de julgamento e de qualquer outra produção da prova não for suficiente para fundamentar a sua convicção sobre a verdade ou não verdade de um facto probando, ordenar a audição de uma parte ou de ambas as partes sobre o facto". Entende-se que o tribunal deve ordenar a audição da parte quando o facto não esteja provado, mas, dos elementos recolhidos no processo, tenha resultado um começo de prova que possa vir a ser completado pela prova resultante da audição da parte (cf. Wieczorek/Schütze/Völzmann-Stickelbrock (2013), § 448 8; Stein/Jonas/Berger (2015), § 448 5). Importa ainda acrescentar que o § 128 FamFG estende a aplicação deste regime às acções matrimoniais (e, portanto, às acções de divórcio, entre outras), considerando-se mesmo que a omissão da audição dos cônjuges nos termos do § 128 FamFG constitui um "grave vício processual" (OLG Hamm 7/2/2012 (II-11 UF 154/11). 

Quer dizer: enquanto no ordenamento jurídico português tem vindo a fazer caminho uma equivocada desvalorização da prova por declarações da parte, no direito alemão recorre-se a essa prova para ultrapassar um non liquet sobre o facto probando. Visto por esta perspectiva, o contraste não podia ser mais evidente. No entanto, como se procurou demonstrar, no direito português não só não existe nenhuma justificação legal para uma posição divergente daquela que vale no direito alemão, como até existem elementos que contrariam qualquer divergência entre os dois ordenamentos. 

5. Se é certo que se impõe apreciar a prova por declarações de parte sem ilusões ingénuas, também é verdade que não há que, à partida, desqualificar o valor probatório dessa prova. Em suma: a prova por declarações de parte tem, sem quaisquer apriorismos, o valor probatório que lhe deva ser reconhecido pela prudente convicção do juiz; nem mais, nem menos, pode ainda precisar-se.

MTS