"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/01/2024

Jurisprudência 2023 (89)


Processo de divórcio; 
Reg. 2201/2003; "falsa litispendência"*


1. O sumário de RL 27/4/2023 (30871/21.0T8LSB.L1-6) é o seguinte:

I- A escolha de uma lei aplicável ao contrato é irrelevante para a fixação da competência internacional, não só porque a definição de uma lei para o litígio tem como pressuposto que haja um tribunal previamente competente, como o inverso é que se verifica, ou seja, o acordo das partes relativamente ao tribunal competente é que é suscetível de constituir um dos fatores a ter em conta para determinar a lei aplicável ao contrato.

I[II]- O artº 19º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, tem uma específica noção de litispendência, pois, diferentemente do que se verifica no nosso direito, é irrelevante a causa de pedir, bastando que pendam em tribunais de diferentes Estados ações visando a obtenção do divórcio entre as partes.

II[III] A consequência da litispendência, é, numa primeira fase, nos termos daquele Regulamento, a imediata suspensão da instância e, após, a declaração de incompetência a favor do tribunal onde a ação foi instaurada em primeiro lugar, o que ocorre quando estiver estabelecida a competência deste tribunal.

III[IV]- Não é aos tribunais portugueses que cabe determinar se o tribunal estrangeiro onde pende a ação relativamente à qual se verifica a litispendência, é ou não competente para a causa; é ao próprio tribunal que incumbe apreciar da sua competência/incompetência, não podendo apreciar de tais questões quanto a tribunais estrangeiros.

IV[V]- Tendo o tribunal estrangeiro onde a ação foi instaurada em primeiro lugar considerado que é internacionalmente competente para julgar a causa e não tendo tal decisão sido impugnada, o segundo tribunal deve respeitá-la e, em consequência, declarar-se incompetente.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Objeto do Recurso

O objeto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, a questão é a de saber se, em face da pendência da ação de divórcio no Tribunal da Haia, o tribunal a quo deveria ter suspendido a instância em vez de ter declarado a incompetência, com a consequente absolvição do réu da instância.

*

A factualidade a atender para a apreciação do recurso é a que consta do relatório supra, e ainda a seguinte:

- A presente ação foi instaurada em 30.12.2021.

- O Tribunal da Haia, em ação em que são partes a recorrente e o recorrido, proferiu, em 9 de junho de 2022, sentença que terminou com a seguinte decisão:

O Tribunal:

pronuncia o divórcio entre o homem e a mulher, casados a xxx em Lisboa, Portugal; [...]

- Na mesma sentença, na parte da fundamentação, foi proferida a seguinte decisão:

Divórcio

Jurisdição e legislação aplicável

Desde que o homem e a mulher tinham a sua residência habitual nos Países Baixos na altura em que o homem apresentou o pedido, o tribunal neerlandês tem competência para decidir sobre o pedido de divórcio nos termos do artigo 3(1)(a) do Regulamento Bruxelas IIa (Regulamento do Conselho nº 2201/2003 de 27 de novembro de 2003)”.

Fundamentação jurídica

O tribunal a quo fundamentou da seguinte forma a decisão:

Nos termos do disposto no Artigo 19.º do Regulamento(CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, referente a Decisões Em Matéria Matrimonial E Responsabilidade Parental, sob a epigrafe “Litispendência e acções dependentes” prevê-se que

1. Quando os processos de divórcio, separação ou anulação do casamento entre as mesmas partes são instaurados em tribunais de Estados-Membros diferentes, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar. [...]
3. Quando estiver estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar declarar-se incompetente a favor daquele.
Neste caso, o processo instaurado no segundo tribunal pode ser submetida pelo requerente à apreciação do tribunal em que a ação foi instaurada em primeiro lugar.

Esta norma não convoca o artigo 582º do Código de Processo Civil, pois o próprio regulamento prevê no seu artigo 16º, que o processo foi instaurado:

“a) Na data de apresentação ao tribunal do acto introdutório da instância, ou acto equivalente, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que seja feita a citação ou a notificação ao requerido; ou
b) Se o acto tiver de ser citado ou notificado antes de ser apresentado ao tribunal, na data em que é recebido pela autoridade responsável pela citação ou notificação, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que o acto seja apresentado a tribunal.”

Ora, na situação é apreço afigura-se-nos evidente verificar-se a exceção invocada, pelo que se julga verificada a exceção de litispendência invocada”.

*

Se bem que, em bom rigor, poderia ter sido dito algo mais para fundamentar a decisão, para além da citação do mencionado preceito do Regulamento n.º 2201/2003, consideramos que a decisão recorrida, ao dizer que se afigura “evidente verificar-se a exceção invocada”, visa, de forma sintética, significar que estão verificados os requisitos descritos nos nº 1 e 3 do preceito que determinam a declaração de incompetência.

Comecemos desde logo pela questão suscitada pela recorrente quanto à convenção antenupcial. Diz a recorrente que as partes acordaram numa convenção antenupcial na qual estabeleceram que o casamento seria regulado pela lei portuguesa. Em face dessa convenção, a recorrente entende que:

16. Nesta medida, teria sempre de ser a lei portuguesa a prevalecer, aquando da resolução do contrato de casamento (divórcio), ao qual a convenção antenupcial está vinculada, e do mesmo faz parte.
17. Em razão do efeito prático da convenção antenupcial referida, só os tribunais portugueses são material e territorialmente competentes para a dissolução do mesmo”.

O invocado é totalmente improcedente.

Por um lado, a questão da lei aplicável é distinta da competência para a causa, sendo irrelevante para a determinação da competência internacional a escolha de uma lei para regular o contrato. Por isso mesmo é que os tribunais devem aplicar a lei estrangeira quando, nos termos do direito internacional privado, ela for aplicável, não sendo esta que define o tribunal competente.  Aliás, a definição de uma lei para o contrato tem como pressuposto a prévia determinação de um tribunal competente para a causa. E, para além disso, o inverso é que é suscetível de se verificar, ou seja, o acordo das partes relativamente ao tribunal competente é que pode constituir um dos fatores a ter em conta para determinar a lei aplicável ao contrato [---]

Por outro lado, é aplicável ao caso dos autos o Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental. Os critérios definidores da competência para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento estão estabelecidos no artº 3º/1, als. a) e b), e são os seguintes:

Os tribunais do Estado-Membro:
a) Em cujo território se situe:
- a residência habitual dos cônjuges, ou
- a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou
- a residência habitual do requerido, ou
- em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou
- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou
- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado-Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu 'domicílio';
b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do 'domicílio' comum.

Como se constata, dos critérios legalmente definidos não consta a lei que as partes escolheram como sendo a aplicável ao casamento.

A questão suscitada na conclusão d) é, pois, manifestamente improcedente.

Vejamos os outros fundamentos do recurso.

Não existe qualquer dúvida de que esta ação, pela qual a recorrente visa obter o divórcio, foi instaurada após a instauração da ação que corre termos nos Países Baixos. Esta ação deu entrada em 30 de dezembro de 2021 e aqueloutra ação foi instaurada em 19 de março de 2021.

No nosso direito a exceção de litispendência pressupõe a repetição de uma causa, quando a anterior ainda está em curso, tendo por fim, tal como na exceção de caso julgado, evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (cfr. artº 580º/1 e 2, do CPC). Com a consagração do efeito da litispendência obsta-se à inutilidade da repetição da decisão judicial, em processos diferentes, para a mesma ação, e salvaguarda-se, também, o prestígio da administração da justiça contra o risco de grave dano que podia resultar do tribunal contradizer ou reproduzir outra decisão judicial[2]. Nos termos do artº 581º/1, do CPC, repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (n.º 2). Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (n.º 3). E, por fim, há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo efeito jurídico (n.º 4). A litispendência, pressupondo a repetição da mesma ação em dois processos, depende, pois, da verificação cumulativa da identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedirde modo a evitar contradizer ou reproduzir decisão anterior.

O artº 19º do Regulamento (CE) n° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, tem uma específica noção de litispendência, pois, diferentemente do que se verifica no nosso direito, é irrelevante a causa de pedirBasta que pendam em tribunais de diferentes Estados ações visando a obtenção do divórcio entre as partes. Verificando-se essa situação, está-se perante a exceção de litispendência, na aceção do mencionado Regulamento, e há de imediato lugar à suspensão da instância. É isso que resulta do nº 1 do preceito.

Por sua vez, o nº 3 estatui que “quando estiver estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar declarar-se incompetente a favor daquele”.

De acordo com o nosso direito processual, se estiverem pendentes duas ações de divórcio, naturalmente com identidade de sujeitos, mas em que as causa de pedir sejam distintas, não se verifica a exceção de litispendência por não existir a referida tríplice identidade. Nesse caso, aplica-se o disposto no artº 272º/1 do CPC, podendo o tribunal onde pende a ação instaurada em segundo lugar ordenar a suspensão da instância até à decisão final da ação instaurada em primeiro lugar. Aplica-se também o disposto no artº 267º do CPC, podendo ser ordenada a apensação das ações (e, no caso das ações de divórcio, afigura-se a solução mais adequada).

No regime estabelecido no Regulamento prevê-se como consequência da litispendência, numa primeira fase, a imediata suspensão da instância. E, após, a declaração de incompetência a favor do tribunal onde a ação foi instaurada em primeiro lugar, o que ocorre quando estiver estabelecida a competência deste tribunal.

Compulsada a sentença proferida pelo Tribunal da Haia, verifica-se que, quanto à competência, na sentença proferida foi decidido o seguinte:

Desde que o homem e a mulher tinham a sua residência habitual nos Países Baixos na altura em que o homem apresentou o pedido, o tribunal neerlandês tem competência para decidir sobre o pedido de divórcio nos termos do artigo 3(1)(a) do Regulamento Bruxelas IIa (Regulamento do Conselho nº 2201/2003 de 27 de novembro de 2003)”.
 
Em face desta decisão e não tendo a recorrente invocado que a impugnou em sede de recurso, está definitivamente decidida a competência dos tribunais dos Países Baixos.

Assim, está, tal como decidido na decisão recorrida, verificado o pressuposto de que depende a declaração de incompetência do tribunal a quo, com a consequente absolvição do réu da instância.

Ao contrário do que parece entender a recorrente, não era ao tribunal a quo que cabia determinar se os tribunais dos Países Baixos eram ou não competentes para a causa. A apreciação de tal questão cabia, obviamente, ao Tribunal da Haia. É ao próprio tribunal que incumbe apreciar da sua competência/incompetência, não podendo apreciar de tais questões quanto a tribunais estrangeiros. E pode verificar-se a situação de ambos os tribunais serem internacionalmente competentes para a causa. Nessa situação, tendo o tribunal onde a ação foi instaurada em primeiro lugar prevenido a jurisdição, considerando-se internacionalmente competente para julgar a causa, o segundo tribunal deve respeitar essa decisão e declarar-se incompetente. Foi isso que fez o tribunal a quo, pelo que a decisão recorrida deve ser mantida, improcedendo o recurso."

*3. [Comentário] Apenas uma pequena nota.

A RL conclui que "está definitivamente decidida a competência dos tribunais dos Países Baixos". Em função disto, a RL confirma a decisão do tribunal a quo. Não reparou a RL que este tribunal tinha absolvido o réu da instância com base na excepção de litispendência ("Deste modo, julgo verificada esta exceção de litispendência e consequentemente absolvo o Réu da instância"). Mais correcto teria sido confirmar a absolvição da instância proferida pela 1.ª instância, mas invocando como fundamento a incompetência inominada que decorre do disposto no art. 19.º, n.º 3, Reg. 2201/2003.

MTS