"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/01/2024

Jurisprudência 2023 (88)


Atribuição de nacionalidade; união de facto;
acção de reconhecimento; competência material*


I. O sumário de RL 27/4/2023 (10313/22.5T8LSB.L1-6) é o seguinte:

4.1. – O nº 3 do artº 3º, da LEI DA NACIONALIDADE consubstancia – em sede de atribuição de competência material para a propositura de especifica acção – para todos os efeitos, uma lei especial .

4.2.- Em face do referido em 4.1., a LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (maxime a alínea g),do nº 1, do art. 122º ) não é aquela que releva em sede de aferição da competência material para a propositura de acção com vista à obtenção do reconhecimento judicial de situação de união de facto – para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa por cidadão estrangeiro ;

4.3. – O referido em 4.2. justifica-se também porque o legislador, no âmbito da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO, enquanto Lei geral, não manifestou a sua intenção revogatória de uma forma inequívoca (artº 7º, nº 3, do CC ).


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3.1.- Se o tribunal a quo é, ou não, o competente em razão da matéria para conhecer da presente acção, e que pelos AA apelantes foi intentada.

Como vimos supra, considerou o tribunal a quo que, em face do respectivo pedido e respectiva causa petendi, impunha-se considerar que para conhecer da acção era o tribunal de Família o competente, em razão da matéria, entendimento este que os Autores A e B e ora apelantes [no que são acompanhados pelo Réu MINISTÉRIO PÚBLICO] não subscrevem, antes sustentam que, em face do disposto no n.º 1 alínea b), do Artigo 122º da Lei n.º 62/2013, forçoso é concluir que é efectivamente o Juízo Local Cível de Lisboa o Tribunal competente para conhecer e julgar da acção que intentaram.

Já para o tribunal a quo, e em sede de fundamentos invocados a ancorar a decisão proferida, aduz no essencial que atenta a sua natureza e características e as próprias normas aplicáveis, forçoso é considerar que as acções de reconhecimento da situação de união de facto para efeito de aquisição da nacionalidade se incluem na competência material dos Tribunais de Família e Menores e não nos Tribunais Cíveis, nos termos do disposto no artigo 122.º, n.º 1, al. g) da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

Quid juris?

Como é consabido, a competência dos tribunais, na ordem jurídica interna, reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território, e fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei (cfr. artºs 37º e 38º, ambos da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO – e artº 60º, do Código de Processo Civil ). [...]

Depois, nos termos do artigo 40º, nº1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, mister é outrossim não olvidar que a competência dos tribunais da ordem judicial é residual (os tribunais judiciais são competentes para as causas não legalmente atribuídas aos tribunais de outra ordem jurisdicional ), sendo que, a mesma - competência - fixa-se , como vimos já, no momento em que a acção se propõe. (---)

Ou seja, e em sede de síntese conclusiva (---), sendo em atenção à matéria da lide, ao acto jurídico ou facto jurídico de que a acção emerge, que importará aferir se deve a acção correr termos pelo tribunal comum ou judicial (---), ou , ao invés, por um tribunal especial , e sendo o primeiro o tribunal regra [porque goza de competência não discriminada, incumbindo-lhe apreciar e decidir todas as causas que não forem atribuídas pela lei a alguma jurisdição especial, ou outra ordem jurisdicional], então a competência dos tribunais judiciais determina-se por um critério residual ou por exclusão de partes [isto é, não existindo disposição de lei que submeta a acção à competência de algum tribunal especial, cai a mesma inevitavelmente sob a alçada de um tribunal judicial] .

É que, como refere expressis verbis o artº 40º, nºs 1 e 2, da LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO, “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, e , “A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada “.

Logo, também no âmbito dos tribunais comuns ou judiciais (os quais compreendem os tribunais de competência territorial alargada e os tribunais de comarca, cfr. artº 33º, da LOSJ), competindo aos juízos locais cíveis e de competência genérica a tramitação e decisão das causas que não sejam atribuídas a outros juízos especializados ou a tribunal de competência territorial alargada ( cfr. artigo 130º da LOSJ ), é outrossim a competência dos juízos cíveis e de competência genérica definida por via residual [cabendo-lhes a competência material caso a acção não seja da competência dos juízos especializados].

De resto, pacífico e consensual é que a competência material é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual, e , segundo o critério referido em segundo lugar, serão da competência dos juízos cíveis e de competência genérica todas as causas que não sejam legalmente atribuídas a juízo especializado. [...]

Isto dito, e estando in casu em apreciação uma questão que consubstancia efectiva vexata quaestio, importa recordar que fomos já chamados a sobre a mesma nos debruçar-mos , o que fizemos em sede de Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.12.2018 (6) , e por nós relatado (e igualmente subscrito pelo Exmº 2º Adjunto), acórdão ao qual se refere também o Primeiro Grau em sede de decisão recorrida.

No referido Acórdão, recorda-se também, foi a questão decidenda resolvida essencialmente por aplicação do artº 122º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO), tendo nós concluído que :

I - A acção intentada com vista à obtenção do reconhecimento judicial da situação de união de facto, nos termos e para efeitos dos nºs 2 e 4, do artº 14º, do DL n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro [ REGULAMENTO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA ], integra a previsão do artº 122º, nº1, alínea g), da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO;

II - É que, ao aludir a referida alínea g) do nº 1 do art. 122º da Lei 62/2013, a acções relativas ao estado civil das pessoas, o legislador utilizou tal expressão - na sua acepção mais restrita - atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, e , com o sentido e desiderato de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida.”. [...]

Ocorre que, quando tudo indicava ter passado a existir alguma uniformidade na 2ª instância a propósito da questão que é objecto da apelação ora em apreciação, vem o STJ, com o Acórdão de 17/6/2021 [proferido no processo nº 286/20.4T8VCD.P1.S1, sendo Rel. JOÃO CURA MARIANO], a perfilhar um entendimento contrário, no referido Acórdão concluindo que “Face à atribuição específica de competência constante do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, os tribunais de família e menores não são competentes para julgar as ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa”.

A fundamentar a referida conclusão, diz-se no referido e doutro Acórdão do STJ e de 17/6/2021, que :

“(…) mantendo-se na Lei da Nacionalidade a atribuição de competência específica, constante do artigo 3.º, n.º 3 – o estrangeiro que à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível – e sendo esta norma, uma norma especial, ela não foi tacitamente revogada pela alteração que ocorreu na distribuição de competências pela lei geral de enquadramento e organização do sistema judiciário.

Assim sendo, o disposto no referido artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade mantém-se vigente e aplicável, definindo uma competência específica dos tribunais, em razão da matéria, para o julgamento das ações de reconhecimento das situações de união de facto, com duração superior a três anos, como requisito de aquisição da nacionalidade portuguesa, por declaração, passando a constituir uma exceção às novas regras gerais da distribuição de competências dos tribunais judiciais entretanto aprovadas.

Ora, dispondo este preceito, especificamente, que a competência pertence aos tribunais cíveis, não é possível aplicar a regra geral constante do artigo 122.º, n.º 1, g), da LOSJ, e considerar competente os juízos de família e menores, uma vez que o disposto numa norma especial prevalece sobre uma norma geral.”.

No essencial, a decisão do STJ acabada de mencionar, encontra-se solidamente abrigada no normativo do artº 7º, do CC, cujo nº 3 reza que “ A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador ”.

Ora, porque secundada em fundamento legal consistente, e ademais proveniente de Tribunal/órgão de soberania que se encontra no vértice superior da hierarquia dos tribunais judiciais (artigo 110.º e n.º 1 do artigo 210.º da Constituição da República Portuguesa), razão porque a respectiva jurisprudência deve compreensivelmente merecer da parte de todos os juízes uma atenção especial , não é assim de admirar que cedo se tenha começado a notar na 2ª instância uma alteração do entendimento que vinha sendo seguido, passando doravante os Tribunais da Relação a enveredar por uma posição diversa daquela que vinham sufragando. [...]

Aqui chegados, conhecidos em “traços largos” os pressupostos essenciais que estribam cada uma das posições em confronto, e, reconhecendo-se que nos tempos mais recentes as instâncias vêm-se inclinando para aderir à posição que foi sufragada pelo STJ no seu Acórdão de 17/6/2021, é tempo de deslindar qual o nosso entendimento, actualmente [considerando a decisão proferida pelo TRL em 11.12.2018 e da qual fomos o respectivo relator].

Elucidando de imediato qual o nosso entendimento actual, esclarece-se que o Acórdão proferido por este TRL em 23-6-2022 [proferido no processo nº 2380/21.5T8VFX.L1-6, sendo Relatora ANABELA CALAFATE], mostra-se por nós subscrito ( como 1º adjunto), o que equivale a dizer que entendemos hoje que a questão decidenda importa ser resolvida de modo diverso daquele que expressa a decisão proferida pelo TRL em 11.12.2018 e da qual fomos o respectivo relator.

Já em posterior Acórdão proferido pelo mesmo TRL, e por nós relatado [de 29-9-2022 ,proferido no processo nº 1832/21.1T8CSC.L1], tivemos a oportunidade de justificar as razões que conduziram à alteração do entendimento que foi sufragado em 2018.

Ora, socorrendo-nos do exposto no referido Acórdão de 29-9-2022 [que nesta parte seguimos de perto ] e, explicitando quais as relevantes razões que nos conduziram a alterar de posição, começa-se desde logo por subscrever o entendimento do STJ no sentido de que a Lei da Nacionalidade [ e que no artigo 3.º, n.º 3, reza que “O estrangeiro que à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível”], incorpora manifestamente - em sede de atribuição de competência específica para determinada acção – uma norma especial no confronto com a lei geral de enquadramento e organização do sistema judiciário.

Com efeito, enquanto lei que incorpora o regime da atribuição e da aquisição da nacionalidade portuguesa, isto por um lado e, por outro, uma sua e especifica disposição regula a aquisição da NACIONALIDADE por parte de estrangeiro em caso de casamento ou união de facto com nacional português, é claro que na referida matéria consagra um regime específico/especial para as referidas situações , designadamente no tocante à competência do tribunal no tocante à ação de reconhecimento da situação de união de facto interpor – pelo estrangeiro - no tribunal cível .

É que, se como refere JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO (Em “O Direito, Introdução e Teoria Geral. Uma perspetiva Luso-Brasileira”, 11.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2001, página 524.) , ocorre uma relação de especialidade quando “as normas estão entre si em relação de género a espécie”, sendo que “ Uma das normas caberia integralmente no conteúdo de outra”, pacifico é que entre a Lei da Nacionalidade e a LOSJ existe uma relação de especialidade.

Ora, no seguimento da referida constatação, certo é que, nos termos do disposto nos nºs 1 e 2, do artº 7º, do CC, “ Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei”, sendo que a “A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior”.

De acordo ainda com a referida disposição legal do CC, reza o respectivo nº 3, que “A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador”.

Ou seja, e no que à situação referida por último concerne, ensina OLIVEIRA ASCENSÃO (Em O Direito, Pág. 259. , e citado no  Ac. do TRL de 22/3/2007, proferido no Processo nº 964/07-2 e  disponível em  www.dgsi.pt.) que em sede de aferição do conceito de intenção inequívoca, deve o intérprete ser particularmente exigente, o que equivale a dizer que devem mostrar-se afastadas as situações que se apresentem dúbias, ou que sejam passíveis de várias interpretações, antes devem apenas relevar as que revelam claramente um determinado propósito do legislador , que não suscitam em suma quaisquer dúvidas.

Ainda para OLIVEIRA ASCENSÃO (Em “O Direito, Introdução e Teoria Geral”, 13ª Edição, Almedina, 2006, págs. 534-535, e citado no Ac. do TRL de 20/9/2007, proferido no Processo nº 6753/2007-2 e  disponível em  www.dgsi.pt), a intenção inequívoca do legislador “haverá de revelar-se por indícios traduzidos na premência da solução da lei geral, igualmente sentida no sector em que vigorava a lei especial, ou resultantes do facto de a solução constante da lei “especial” não se justificar afinal por necessidades próprias desse sector, pelo que não merece subsistir como lei especial”. (Cfr. Ac. do TRL de 15/2/2007, proferido no Processo nº 1180/2007-8 e  disponível em www.dgsi.pt.)

Dito de uma outra forma, “A existência de intenção inequívoca do legislador deve assentar em referência expressa na própria lei ou, pelo menos, num conjunto de vectores incisivos que a ela equivalham, recorrendo-se a uma menção revogatória clara, do género, “são revogadas todas as leis em contrário, mesmo as especiais”. (Vide BATISTA MACHADO, em Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, pág. 170.)

Isto dito, pacifico é para nós que a LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO não veio revogar o nº 3, do artº 3, da LEI DA NACIONALIDADE [introduzido pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril ], não o tendo feito de forma expressa ou sequer tácita e, outrossim, não decorre igualmente da LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO que foi “ intenção inequívoca” do legislador revogar a lei especial que consubstancia em rigor [ em sede de competência para as acções de reconhecimento de situação de união de facto por período superior a três anos ] o nº 3, do artº 3, da LEI DA NACIONALIDADE.

Assim sendo, e como assim o considerou/decidiu o STJ no Ac. de 17/6/2022, acima parcialmente transcrito, o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade mantém-se vigente e aplicável, definindo uma competência específica dos tribunais, em razão da matéria, para o julgamento das ações de reconhecimento das situações de união de facto, com duração superior a três anos, como requisito de aquisição da nacionalidade portuguesa, por declaração, passando a constituir uma exceção às novas regras gerais da distribuição de competências dos tribunais judiciais entretanto aprovadas”.

Em suma, mantendo-se o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade vigente e aplicável ao caso sub judice e, em razão do principio de que a lei especial derroga a lei geral (lex specialis derrogat legi generali), temos como boas e concludentes as razões que amparam a decisão do Ac. do STJ acima referido, sendo o mesmo portanto de seguir. [...]

Em face de tudo o anteriormente exposto, cientes da persistência de jurisprudência contraditória e, porque desde o Acórdão por nós relatado a 11.12.2018 ,diversos e pertinentes foram os contributos da jurisprudência no âmbito da discussão a propósito da melhor e mais justa solução para a questão que é objecto da presente apelação, eis porque tudo visto e ponderado [em sede de interpretação e complementação da lei, exige-se ao juiz que se socorra dos conhecimentos que a jurisprudência lhe oferece, designadamente daquela que é oriunda de Tribunais - como o STJ – colocados no mais alto nível da estrutura judiciária] temos como pertinente, adequado e sensato abandonar a orientação em sede de resolução do thema decidendum - a sufragada no referido acórdão de 11.12.2018 -, mais exactamente no sentido da orientação jurisprudencial (que consideramos hoje como a mais sustentável) que vem actualmente prevalecendo na 2ª instância."


*III. [Comentário] Muito provavelmente, a referência ao "tribunal cível" que consta do art. 3.º, n.º 3, LN pretende significar "tribunal judicial", e não os actuais juízos centrais cíveis ou juízos locais cíveis (art. 81.º, n.º 3, al. a) e b), LOSJ), aliás, inexistentes no momento do início de vigência da LN. Sendo assim, nada impediria a atribuição de competência ao tribunal de família e menores (art. 122.º, n.º 1, al. g), LOSJ), que é, aliás, o tribunal com maior proximidade à matéria em apreciação.

MTS