"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/01/2024

Jurisprudência 2023 (78)


Penhora;
função conservatória; consequências


I. O sumário de RL 27/4/2023 (9764/18.4T8SNT-B.L1-8) é o seguinte:

1. A aquisição por terceiro de um bem imóvel onerado pela penhora é inoponível à execução, cf. art.º 819º do Código Civil.

2. Tendo a alienação do imóvel ocorrido posteriormente à data da realização da penhora daquele bem e do respetivo registo, não há que fazer intervir o terceiro adquirente na ação executiva.

3. A execução prossegue como se o bem penhorado continuasse a pertencer ao devedor/executado.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2.7. O despacho sob recurso é do seguinte teor:

“Notificado para, em face da aquisição do imóvel penhorado por terceiro, requerer o que tivesse por conveniente, para que o imóvel pudesse ser vendido, veio o exequente invocar que resulta do disposto no art.º 819.º do Código Civil que, “não obstante os atos ali mencionados (alienação/oneração/arrendamento), a execução prossegue como se os bens penhorados continuassem a pertencer aos executados constantes na penhora, desde que a penhora haja sido registada em data anterior àquela em que ocorreu o registo daqueles atos”, requerendo que a execução prossiga sobre o imóvel penhorado como se este continuasse a pertencer aos executados, sem necessidade de fazer intervir os novos adquirentes na ação executiva.

Vejamos,

O bem onerado para garantir o pagamento de uma obrigação pecuniária pode pertencer a um terceiro, quer porque a garantia foi originariamente constituída sobre bens de terceiro, quer porque o terceiro adquiriu os bens onerados com essa garantia.

Dispõe o art.º 818.º do Código Civil que “o direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro, quando estejam vinculados à garantia do crédito, ou quando sejam objecto de acto praticado em prejuízo do credor, que este haja procedentemente impugnado”.

Por sua vez, prescreve o art.º 54.º, no seu n.º 2, do Código de Processo Civil, que “A execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue diretamente contra este, se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor”, no seu n.º 3 que “Quando a execução tenha sido movida apenas contra o terceiro e se reconheça a insuficiência dos bens onerados com garantia real, pode o exequente requerer, no mesmo processo, o prosseguimento da ação executiva contra o devedor, que é demandado para completa satisfação do crédito exequendo” e no seu n.º 4 que “Pertencendo os bens onerados ao devedor, mas estando eles na posse de terceiro, poderá este ser desde logo demandado juntamente com o devedor”.

Sendo intenção do legislador legitimar na execução a presença do terceiro possuidor ou proprietário do bem dado em garantia, é de considerar que se impõe também essa presença, a exercitar através da intervenção de terceiro, quando se pretenda fazer valer a garantia, também no caso de só após a execução ocorrer a transmissão ou ser conhecida essa transmissão.

Com efeito, não estando o terceiro na execução e pretendendo o exequente continuar a usar da garantia real não há qualquer obstáculo a que o faça intervir, antes se impondo essa intervenção, continuando o devedor originário também na execução.

Efetivamente, conforme se decidiu, entre outros, nos acórdãos do TRL, de 14/12/2004, CJ Tomo V, pág. 122, do TRP, de 21/03/2002, CJ. Tomo II, pág. 203, e do TRE, de 03/11/94, CJ Tomo V, pág. 278, o instrumento processual adequado para fazer intervir o adquirente do bem hipotecado é o incidente de habilitação de adquirente, sendo as razões aí apontadas aplicáveis, mutatis mutandis, também ao adquirente do bem penhorado na execução.

Termos em que, face ao exposto, indefiro o requerido pelo exequente, ficando a venda a aguardar seja requerida a intervenção do atual proprietário do imóvel penhorado.

Notifique.”

2. Fundamentação de direito.

É certo, como se afirma no despacho em crise, que o bem onerado para garantir o pagamento de uma obrigação pecuniária pode pertencer a um terceiro, quer porque a garantia foi originariamente constituída sobre bens de terceiro, quer porque o terceiro adquiriu os bens onerados com essa garantia e, nesse caso, a execução é intentada desde logo contra esse terceiro ou, não o sendo, querendo o exequente valer-se da garantia real terá que fazer intervir nos autos esse terceiro, cf. art.ºs 818º e 54º do CPC., através do incidente de habilitação de adquirente.

Mas esta solução e citados normativos não tem aplicação nos casos em que, como aconteceu nos presentes autos, o bem penhorado foi adquirido por terceiro após a penhora.

Parece que no despacho sob recurso, ao citar e transcrever o nº 4 do art.º 54º do CPC, foi decisivo o facto do bem penhorado estar na posse de terceiro, a sociedade "Traços Dinâmicos, Lda.".

É certo que - conforme prescreve o citado normativo -“Pertencendo os bens onerados ao devedor, mas estando eles na posse de terceiro, poderá este ser desde logo demandado juntamente com o devedor”, mas a tese defendida pelo tribunal “a quo” e citados normativos não tem aplicação nos casos em que, como aconteceu nos presentes autos, o bem penhorado foi adquirido por terceiro após a penhora.

Com efeito, o que importa apurar, para se saber se o terceiro, que está na posse do bem penhorado, deve ou não ter intervenção da execução, é saber quando adquiriu a posse/propriedade do bem penhorado.

Ora, do citado normativo, conclui-se que o momento relevante é a data da penhora, ou seja, quando se efetiva a penhora constata-se que o bem penhorado, que é pertença do devedor/executado, está na posse/pertence a terceiro, nesse caso, porque a posse/propriedade do terceiro é posta em causa pela penhora, deverá ser requerida a intervenção do terceiro na execução.

Ora, nada disto se passou no caso concreto.

A solução encontrada pelo tribunal “a quo” e os citados normativos não tem aplicação nos casos em que, como aconteceu nos presentes autos, o bem penhorado foi adquirido por terceiro após a penhora, ou seja, no momento em que efetivada a penhora o bem era pertença do devedor e estava na posse deste, sendo de todo irrelevante que o tenha vendido depois de penhorado.

O terceiro adquiriu um bem onerado com a penhora, bem objeto da presente execução, a penhora mantém-se e o bem pode ser executado sem que o terceiro tenha que ter intervenção no processo de execução, cf. art.º 819º do Código Civil, sob a epígrafe “Disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”, ao prescrever “Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis em relação à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”.

O art.º 54.º, n.º 2, do CPC aplica-se tanto as situações em que o terceiro, não devedor, onerou uma coisa de que é proprietário para garantir o pagamento de uma dívida alheia, como os casos em que o terceiro adquiriu a propriedade já onerada com uma garantia em benefício de outrem.

No segundo caso, a alienação é plenamente eficaz, passando o bem a pertencer ao património de um terceiro, mas o credor continua a poder realizar o seu direito de crédito à custa da coisa onerada, na medida em que a prévia constituição da garantia, a penhora, fez nascer sobre o imóvel um vínculo de natureza real que é oponível erga omnes.

Ocorrendo, antes da propositura da ação executiva, qualquer uma das situações enunciadas - Terceiro, não devedor, onerou uma coisa de que é proprietário para garantir o pagamento de uma dívida alheia ou Terceiro adquiriu a propriedade já onerada com uma garantia em benefício de outrem -, o credor/exequente, querendo beneficiar da garantia real constituída em seu benefício por um terceiro não devedor, tem de propor a ação executiva contra este.

O art.º 819.º do CC sob a epígrafe “Disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”, prescreve «Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os atos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados.»

O citado normativo aplica-se quer às situações em que o bem penhorado pertencia ao devedor/executado, quer àquelas em que o bem penhorado pertence a terceiro, mas está vinculado, pela penhora, à garantia do crédito do exequente.

O que resulta do art.º 819.º, do Código Civil é que, não obstante os atos ali mencionados, a execução prossegue como se os bens penhorados continuassem a pertencer ao devedor/executado, desde que a data da penhora seja anterior àquela em que ocorreu a prática do acto de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados.

A inoponibilidade ali prevista significa que o terceiro adquirente não se pode opor a que a execução prossiga contra o seu bem, onerado com a penhora.

Assim, não faz sentido que ele, o terceiro adquirente, tenha que intervir, como “parte”, na execução, não podendo aquele defender que pode ser prejudicado com a execução.

Com efeito, sendo a penhora de imóveis um ato sujeito a registo, quando o terceiro adquire o bem penhorado, não pode alegar desconhecimento da situação real do mesmo e, consequentemente, interferir na marcha do processo executivo, cuja finalidade é a venda do bem penhorado e subsequente pagamento ao credor/exequente.

Ora, resultando dos autos que a exequente, no âmbito da presente execução, registou a seu favor, pela AP. 3326 de 2021/01/06, uma penhora sobre o prédio urbano sito na Rua Heliodoro Salgado, freguesia de Queluz, inscrito na matriz predial urbana sobre o artigo … e descrito na conservatória predial de Queluz sob o número …, propriedade do executado B, e que o identificado imóvel foi adquirido pela sociedade "Traços Dinâmicos, Lda", conforme AP. 1637 de 2021/04/19, esta aquisição, porque posterior à penhora, é inoponível à execução, nos termos do citado art.º 819º do Código Civil.

Ao contrário do entendimento do tribunal “a quo”, in casu, não está em causa uma dívida garantida por hipoteca constituída sobre o imóvel penhorado, mas sim uma dívida garantida por penhora efetuada sobre um imóvel que, à data da instauração da execução e da penhora, se encontravam na esfera jurídica do executado/devedor, e responde pela divida, cf. art.º 817.º, do Código Civil.

Tendo a alienação do imóvel ocorrido posteriormente à data da realização da penhora daquele bem e do respetivo registo, não há que fazer intervir o terceiro adquirente na ação executiva porquanto, em face do disposto no art.º 819.º, do Código Civil, a transmissão do bem é inoponível ao exequente.

Nem faz sentido falar na produção do “efeito útil normal da execução” - que é a venda dos bens do executado e afetação do produto da mesma à satisfação dos créditos do exequente e dos demais credores que tenham vindo reclamar os respetivos créditos na execução - na medida em que a execução prossegue sobre o bem como se este continuasse a pertencer ao executado B.

Em conclusão, o despacho recorrido fez uma errónea aplicação do direito aos factos, não sendo aplicável ao caso dos autos o art.º 818.º do Código Civil e artigo 54.º do CPC, violando, deste modo, o disposto no artigo 819.º do Código Civil, pelo que, na procedência das conclusões impõe-se a revogação do despacho recorrido."


*3. [Comentário] Como é claro, o acórdão adoptou a solução correcta.

O art. 819.º CC estabelece a inoponibilidade à execução dos actos de disposição do bem penhorado. Portanto, para a execução, é como se a disposição pelo executado do bem penhorado não tivesse acontecido. Trata-se de uma regra de protecção do exequente, dado que, não sendo a disposição oponível à execução, esta parte pode ignorar a disposição do bem penhorado e nada tem de praticar neste processo.

É, aliás, por esta razão que a penhora (e o arresto: art. 622.º, n.º 1, CC) não pode ser qualificada como um direito real de garantia (e, por isso, não pode ser equiparada à hipoteca). Se o fosse, através da sequela, a penhora acompanharia a alienação e o terceiro adquirente teria de intervir na execução. Mas é precisamente isto que o art. 819.º CC visa evitar.

MTS