Importa apreciar em primeiro lugar da suscitada nulidade da sentença por excesso de pronuncia com ausência de contraditório e, por omissão de pronúncia, sendo estas questões aptas a inutilizar, ainda que parcialmente, o demais decidido.
Reage o A./apelante contra o facto de a sentença ter julgado procedente por provada, a exceção perentória extintiva de caducidade do direito de ação, assente no conhecimento e reconhecimento prévio de um vício de anulabilidade quer da convocatória, quer da reunião de gerência, quer das alegadas “deliberações” ali tomadas, vício esse que o A. não invocou, não foi objeto de convolação expressa nem sujeito a contraditório, o que contende com os limites do pedido e da causa de pedir. O A. se limitou-se a pedir a declaração de inexistência ou nulidade das: convocatória, reunião e alegadas deliberações nela tomadas. Pedidos que, segundo o apelante, ficaram sem resposta. Estaremos assim, simultaneamente, sob os apontados excesso e omissão de pronúncia.
Vejamos se assim é.
Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, do CPC que a sentença é nula quando:
«(…) d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.»
Importará aferir, por exclusão de partes, quais as questões de que o tribunal pode tomar conhecimento e qual o objeto do pedido, tendo presente um conjunto de princípios e normas que regem o processo civil.
O artigo 3.º do CPC que consagra o princípio da necessidade do pedido e da contradição dita:
«1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2 - Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4 - Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência preliminar ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.»
Também o artigo 5.º do CPC que define o princípio do dispositivo e os poderes de cognição do tribunal, refere:
«1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.»
Da conjugação destas normas resulta que as questões de que o tribunal pode/deve tomar conhecimento são todas aquelas que as partes (autor e réu) trouxeram ao processo como causa de pedir e como exceções, cabendo às partes a sua alegação articulada como factos essenciais, mas, podendo o juiz considerar ainda factos instrumentais, complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa, ou seja, do probatório com contraditório proporcionado, bem como factos notórios, ou seja, aqueles que são do conhecimento geral (artigo 412.º), não estando o tribunal sujeito à vontade das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
Expostos os contornos e limites do poder/dever de conhecimento e pronúncia vejamos o que foi pelas partes carreado para os autos como causa de pedir:
Na petição o Autor articula factos que dão conta da realização de uma “reunião de gerência” no dia 26 de Setembro de 2014, convocada em desrespeito de determinada antecedência temporal, o que compromete a validade e eficácia das alegadas deliberações nela tomadas, sem quórum, sendo estas por isso mesmo, nulas, na interpretação e aplicação que o Autor faz do direito. E, sendo nula a convocatória, nula a reunião, nulas as deliberações, nulos são também todos os atos praticados pelo Sócio Gerente BB com fundamento nas alegadas deliberações.
Acrescenta o Autor na sua petição (artigos 83.º e 84.º da p.i.) que:
“Acontecendo ainda e porém e sem prescindir que;
Se tais, alegadas, deliberações não forem consideradas Nulas (…)
Sempre terá de se considerar que, embora tendo ocorrido a referida reunião/assembleia, (mesmo sem quórum e estando a mesma impedida de deliberar exatamente pela falta de quórum: - “…salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados…”), desta reunião não resultou qualquer deliberação, conforme se verifica da exaustiva leitura da Ata;”
Temos pois que:
O A. articulou como causa de pedir determinada realidade factual (convocatória / prazo de convocação / realização de reunião / ausência de quórum / ausência de deliberação em ata), que juridicamente qualificou como de nulidade, o que, pelo n.º 3 do artigo 5.º do CPC não vincula o tribunal, mas que o próprio Autor na mesma peça admitiu, secundariamente, poder o tribunal afastar para dar lugar a um vício menor.
Em coerência com essa interpretação alargada, sempre possível ao tribunal, o Autor no cabeçalho da petição inicial identificou a ação como «Acção Declarativa em Processo Comum, com vista à Declaração de Nulidade ou Anulação de Deliberações Sociais/Atos dos Sócios» [...].
Assim, da mera análise da petição inicial podemos com segurança afastar a existência de excesso de pronúncia ao ter a sentença conhecido e reconhecido o vício de anulabilidade quer da convocatória, quer da reunião de gerência, quer das alegadas “deliberações” ali tomadas, em vez do vício de nulidade ou inexistência das mesmas, fundamento do pedido principal.
Estamos no âmbito da qualificação jurídica e ainda que o não estivéssemos, foi respeitado o princípio do dispositivo.
Vejamos ainda o que trouxe a Ré à ação a título de exceção e que, conformando a causa de pedir confere ao tribunal o poder/dever do seu conhecimento e pronúncia.
Lê-se na contestação (artigos 20º a 31º):
“ Apenas são nulas as deliberações do conselho de administração:
a) Tomadas em conselho não convocado, salvo se todos os administradores tiverem estado presentes ou representados, ou, caso o contrato o permita, tiverem votado por correspondência;
b) Cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberação do conselho de administração;
c) Cujo conteúdo seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais imperativos (artigo 411.º, n.º 1, do CPC);
- Por seu turno, expressa o artigo 412.º, n.º 1, do CSC que “O próprio conselho ou a assembleia geral pode declarar a nulidade ou anular deliberações do conselho viciadas, a requerimento de qualquer administrador, do conselho fiscal ou de qualquer acionista com direito de voto, dentro do prazo de um ano a partir do conhecimento da irregularidade, mas não depois de decorridos três anos a contar da data da deliberação.”
- Há muito que se mostra decorrido, quer o prazo de 1 ano após o conhecimento, quer o próprio prazo de 3 anos a que se alude no artigo 412.º, n.º 1, do CSC;
- O que configura caducidade do direito, caducidade que desde já se vem arguir com as legais consequências;
- Ainda que assim se não entenda e se entenda que ao prazo para convocar à reunião de gerência é aplicável o prazo para a convocatória das assembleias gerais;
- Apenas estaríamos perante uma mera anulabilidade e nunca uma nulidade;
- O Código das Sociedades Comerciais, nos artigos 56º a 59º, refere-se às duas qualificações de deliberações inválidas em sentido lato, regulando no artigo 58º as deliberações nulas e no artigo 59º as deliberações sociais anuláveis.
- Ao contrário do regime previsto no Código Civil, em que a regra tendencial é a de considerar a nulidade dos atos que violem a lei (artigo 280.º do C.C.), no Código das Sociedades Comerciais o regime-regra é o da mera anulabilidade.
(…) - A solução da nulidade apenas se justifica quando a deliberação, pelo seu conteúdo e consequentemente, padecendo deste vício, atenta contra normas imperativas,
- Já assim não será quando a deliberação padecer de vício de procedimento, caso em que apenas é sancionada com a anulabilidade”.
Desta exposição resulta que a consequência da anulabilidade foi invocada pela parte contrária, como integrando a exceção perentória de caducidade do direito de ação, tendo sido dada ao Autor o direito de resposta através do despacho de 06/01/2022 [---], que exerceu no seu requerimento entrado em 24/01/2022 (artigos 33.º e seguintes).
O que igualmente legitima e obriga ao seu conhecimento por parte do tribunal.
Não estava o tribunal impedido de julgar procedente o vício de anulabilidade relativamente a qualquer dos atos alegadamente viciados, caso os pressupostos substantivos e temporais o permitissem.
Não se impondo qualquer convolação expressa para uma outra realidade quando a parte pôde exercer o contraditório de forma completa e tal convolação resulta inequivocamente implícita da fundamentação.
De resto, face à menor gravidade das consequências, não viola o disposto no artigo 609.º, n.º 1, do CPC (limites da condenação), a sentença que, perante um pedido de declaração de nulidade convola para o de anulabilidade (em sentido idêntico, o Ac. STJ de 23/09/1999, Proc. 99B510, in www.dgsi.pt.)
Daí que, quando a sentença conhece e decide:
“Em face disto, não só a convocatória para a reunião de gerência de 26-9-2014 é juridicamente existente como não padece de qualquer vício, seja ele de nulidade ou de anulabilidade.
(…) Não obstante, admitindo-se que pudesse estar aqui em causa uma anulabilidade decorrente da reunião de gerência ter tido lugar na data e hora para as quais havia sido convocada, quando o gerente AA tinha comunicado a sua impossibilidade de comparência na mesma, há que ter em consideração os artigos 412.º do CSC «1 - O próprio conselho ou a assembleia geral pode declarar a nulidade ou anular deliberações do conselho viciadas, a requerimento de qualquer administrador, do conselho fiscal ou de qualquer acionista com direito de voto, dentro do prazo de um ano a partir do conhecimento da irregularidade, mas não depois de decorridos três anos a contar da data da deliberação. 2 - Os prazos referidos no número anterior não se aplicam quando se trate de apreciação pela assembleia geral de atos de administradores, podendo então a assembleia deliberar sobre a declaração de nulidade ou anulação, mesmo que o assunto não conste da convocatória. 3 - A assembleia geral dos acionistas pode, contudo, ratificar qualquer deliberação anulável do conselho de administração ou substituir por uma deliberação sua a deliberação nula, desde que esta não verse sobre matéria da exclusiva competência do conselho de administração. 4 - Os administradores não devem executar ou consentir que sejam executadas deliberações nulas» e 59.º/2, do CSC, já que a arguição da invalidade foi feita por meio de ação judicial.
Nos termos do artigo 59.º/2, do CSC «2 - O prazo para a proposição da ação de anulação é de 30 dias contados a partir: a) Da data em que foi encerrada a assembleia geral; b) Do 3.º dia subsequente à data do envio da ata da deliberação por voto escrito; c) Da data em que o sócio teve conhecimento da deliberação, se esta incidir sobre assunto que não constava da convocatória.».
A consequência da violação destes prazos é a caducidade do direito de ação, caducidade essa invocada expressamente pelos RR nos vertentes autos.
Porquanto a reunião de gerência teve lugar em 26-9-2014 e a vertente ação apenas foi proposta em 9-9-2021, estão os prazos legalmente previstos para a propositura da ação de anulação largamente ultrapassados.
Em face do exposto, julgo procedente, por provada, a exceção perentória extintiva de caducidade do direito de ação e, nessa medida, absolvo os RR do pedido de anulação da convocatória para a reunião de gerência de 26-9-2014 e da consequente anulação das deliberações tomadas na mesma (artigos 576.º/3, do CPC).»
*III. [Comentário] Segundo se percebe, a RE decidiu bem.
O demandante invocou a nulidade de uma deliberação social; a demandada alegou que o vício de que esta deliberação padecia era a anulabilidade e que, por esta razão, se encontrava caducada a impugnação da deliberação. Sobre esta alegação da demandada foi ouvido o demandante. O tribunal considerou que o vício de que padecia a deliberação era a anulabilidade e julgou procedente a excepção peremptória de caducidade.
Só importa chamar a atenção para que, salvo o devido respeito, a RE invocou a despropósito o disposto no art. 609.º, n.º 1, CPC. Este artigo poderia ter sido invocado se o demandante tivesse alegado a nulidade da deliberação e, sem qualquer alegação da demandada, o tribunal de 1.ª instância tivesse concluído pela sua anulabilidade. Ora, o que sucedeu foi que se discutiu no processo se o vício que afectava a deliberação era a nulidade ou a anulabilidade, pelo que nada determinava a aplicação do disposto no art. 609.º, n.º 1, CPC, dado que o tribunal pronunciou-se sobre algo que foi alegado -- in casu, pela demandada -- no processo.
A aplicar-se este preceito no caso sub judice, teria também de se aplicar aquele preceito no caso de o demandante pretender obter a condenação no cumprimento de uma prestação contratual, de o demandado invocar a nulidade do contrato e de o tribunal absolver o réu do pedido com base nesta excepção. Como é claro, não é este o campo de aplicação do disposto no art. 609.º, n.º 1, CPC.
MTS