"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/01/2024

Jurisprudência 2023 (85)


Incompetência absoluta;
remessa do processo


1. O sumário de RP 27/3/2023 (30/22.1T8PVZ.P1é o seguinte:
 
I - Desde o Código de Processo Civil de 1939, a remessa do processo ao tribunal materialmente competente na sequência da declaração de incompetência em razão da matéria dependia do acordo das partes (artigo 105º do Código de Processo Civil de 1939, segundo parágrafo), regime que se manteve no Código de Processo Civil de 1961 (artigo 105º do Código de Processo Civil de 1961), surgindo apenas com o atual Código de Processo Civil a possibilidade de a remessa do processo ocorrer sem acordo das partes e isso desde que não exista oposição justificada do réu, ou seja, desde que não seja deduzida oposição fundamentada, no sentido de se basear em razões concretas passíveis de serem controladas ou apreciadas.

II - A necessidade de justificação da oposição à remessa para o tribunal competente aponta no sentido da carência de uma fundamentação, ainda que com um menor grau de exigência, segurança e certeza do que a requerida em sede de fundamentação de qualquer pretensão em geral, porventura com um grau de exigência similar ao da necessidade de justificação do receio de lesão do direito acautelado no domínio dos procedimentos cautelares (veja-se o nº 1 do artigo 365º do Código de Processo Civil).

III - Ainda que não se requeira uma comprovação segura e cabal das razões ou dos motivos invocados para justificar a oposição à remessa do processo ao tribunal materialmente competente, devem ser invocados motivos concretos para justificar a oposição e os mesmos devem ser verosímeis.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nos termos do disposto no nº 2 do artigo 99º do Código de Processo Civil, “[s]e a incompetência for decretada depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se desde que o autor requeira, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, a remessa do processo ao tribunal em que a ação deveria ter sido proposta, não oferecendo o réu oposição justificada.

Esta previsão altera o regime que constava do nº 2 do artigo 105º do anterior Código de Processo Civil, ampliando as possibilidades de aproveitamento dos articulados.

Na realidade, desde o Código de Processo Civil de 1939, a remessa do processo ao tribunal materialmente competente na sequência da declaração de incompetência em razão da matéria dependia do acordo das partes (artigo 105º do Código de Processo Civil de 1939, segundo parágrafo), regime que se manteve no Código de Processo Civil de 1961 (artigo 105º do Código de Processo Civil de 1961), surgindo apenas com o atual Código de Processo Civil a possibilidade de a remessa do processo ocorrer sem acordo das partes e isso desde que não exista oposição justificada do réu, ou seja, segundo cremos, desde que não seja deduzida oposição fundamentada, no sentido de se basear em razões concretas passíveis de serem controladas ou apreciadas.

Sublinhe-se que, no domínio da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos aprovada pelo decreto-lei nº 267/85 de 16 de julho, o regime era mais flexível do que o que constava do processo civil na medida em que a remessa do processo não dependia do acordo das partes (artigo 4º, nº 1 da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos), sendo certo em todo o caso que esta faculdade apenas operava no domínio da jurisdição administrativa e fiscal (artigo 4º, nº 4 da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos).

A referida previsão legal tem vindo a ser aplicada nos tribunais e tem dado origem a várias tentativas de concretização do que é passível de constituir motivo justificado de oposição à remessa do processo para o tribunal materialmente competente, destacando-se nesse labor o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de janeiro de 2019, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes, no processo nº 1021/16.7T8GRD-A.C1.S1, acessível no site da DGSI.

Neste aresto sustenta-se, além do mais, que “deve ser considerada justificada a oposição quando seja de prever, de acordo com critérios de razoabilidade, que o réu pode ampliar na nova jurisdição a defesa que apresentou na ação em que foi declarada a incompetência material do Tribunal (como se assinala na motivação da decisão da Rel. de Coimbra de 12-2-15, 141591/13).

A questão que se coloca é a de saber se, para que a oposição à remessa do processo para o tribunal materialmente competente possa ser considerada justificada, basta a invocação, em abstrato, de fundamentos que têm vindo a ser enunciados na doutrina e na jurisprudência como integrantes dessa oposição justificada ou se é necessário ir um pouco além e concretizar as questões concretas que subjazem e que justificam a oposição à remessa do processo para o tribunal materialmente competente.

A necessidade de justificação da oposição à remessa para o tribunal competente aponta no sentido da necessidade de uma fundamentação, ainda que com um menor grau de exigência, segurança e certeza do que a requerida em sede de fundamentação de qualquer pretensão em geral, porventura com um grau de exigência similar ao da necessidade de justificação do receio de lesão do direito acautelado no domínio dos procedimentos cautelares (veja-se o nº 1 do artigo 365º do Código de Processo Civil) [A este propósito vejam-se: Manual de Processo Civil, 2ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora 1985, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nova, páginas 24 e 25; Manual de Processo Civil, AAFDL 2022, João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, páginas 476 a 478.].

Por isso, ainda que não se requeira uma comprovação segura e cabal das razões ou dos motivos invocados para justificar a oposição à remessa do processo ao tribunal materialmente competente, a nosso ver, devem ser invocados motivos concretos para justificar a oposição e os mesmos devem ser verosímeis.

Anote-se que quer no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12 de fevereiro de 2015, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Carvalho Martins no processo nº 141591/13, quer no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de janeiro de 2019, proferido no processo nº 1021/16.7T8GRD-A.C1.S1, ambos acessíveis no site da DGSI, os réus invocaram factos concretos que motivaram a sua oposição à remessa do processo para o tribunal materialmente competente.

No requerimento que o ora recorrente ofereceu opondo-se à pretensão da recorrida de remessa do processo ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto e para a justificar, alegou que “tivesse a acção sido proposta no tribunal competente, ab initio, e teria este alegado e suscitado outras questões que apenas assumem importância no foro administrativo”, que sendo “o Réu funcionário administrativo, considera-se justificada a sua oposição ao aproveitamento dos articulados e remessa para o Tribunal competente, posto que a defesa a exercer no âmbito de uma acção administrativa poderá muito bem ser distinta da apresentada no âmbito de uma ação jurídico-privada”, que, situando-se o litígio dos autos no domínio de uma relação administrativa e não se tratando de uma relação jurídica cível, “daqui resulta que a defesa do Réu, seja necessariamente diversa, uma vez que os pressupostos e legislação são também eles diversos”, que a remessa requerida pelo A., determina uma restrição das garantias do réu, uma vez que a defesa já deduzida não contempla a alegação de questões próprias e específicas da jurisdição do tribunal competente ou de outras questões que só nesta assumam pertinência, não tendo ainda o réu utilizado todos os meios de defesa que lhe seriam proporcionados se a acção tivesse sido proposta no tribunal competente, centrando-se a defesa mais numa defesa por excepção do que impugnação, atenta a evidência das excepções, com um justificável menor desenvolvimento das demais questões” o que “não sucederia se a acção tivesse sido interposta no tribunal competente, onde o Reu teria deduzido uma defesa mais completa e díspar da alegada nestes autos.

Que dizer?

No requerimento em que o recorrente se opôs à pretensão da recorrida de remessa deste processo ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto não há a referência a uma qualquer questão concreta que não tenha colocado perante a jurisdição cível e que colocaria na jurisdição administrativa se porventura a ação aí tivesse sido instaurada ab initio.

Por outro lado, a afirmação do recorrente de que em virtude de a ação não ter sido proposta no tribunal materialmente competente levou a que centrasse a sua defesa mais numa defesa por exceção do que por impugnação, não corresponde à realidade processual que os autos evidenciam.

De facto, se é certo que à defesa por exceção o ora recorrente dedicou sessenta artigos da sua contestação, destes sessenta artigos apenas dezanove respeitam à incompetência em razão da matéria, respeitando os restantes quarenta e um artigos à defesa por exceção típica do processo civil, enquanto à defesa por impugnação o ora recorrente dedicou quarenta e sete artigos da sua contestação.

Apenas em sede de alegações de recurso o recorrente tenta expor de modo mais concreto as razões para a sua oposição, aludindo ao diferente recorte da ilicitude e da culpa na responsabilidade civil extracontratual e na responsabilidade extracontratual de um funcionário público, como era o caso do ora recorrente, mas, a nosso ver, fá-lo a destempo, não sendo o recurso de apelação o instrumento processual para a exposição dessas razões, já que, em sede de recurso, ressalvando-se os casos de questões de conhecimento oficioso, apenas se conhecem de questões que hajam sido colocadas ao tribunal recorrido, não se conhecendo de questões novas.

De todo o modo, estando em causa nestas questões ora aventadas matéria de direito e sendo o tribunal na jurisdição administrativa tão livre no conhecimento do direito como é o tribunal comum (artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil, também aplicável subsidiariamente à jurisdição administrativa ex vi artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), não se nos afigura que mesmo que tais questões tivessem sido tempestivamente suscitadas, pudessem por si só constituir justificado motivo de oposição à pretensão da autora de remessa do processo ao tribunal materialmente competente.

Pelo exposto se conclui que o recurso improcede, devendo ser confirmada a decisão recorrida, sendo as custas do recurso da responsabilidade do recorrente, uma vez que decaiu integralmente a sua pretensão recursória (artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil)."

[MTS]