"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/01/2024

Prazos regressivos e (des)protecção da parte


1. Um relativamente recente acórdão da RE (RE 18/12/2023 (842/22.6T8SRT-A.E1)) volta a ocupar-se da contagem do prazo regressivo que consta do art. 598.º, n.º 2, CPC. O acórdão defende a posição maioritária na jurisprudência: "Para beneficiar da possibilidade inscrita no n.º 2 do artigo 598.º do Código de Processo Civil, a parte tem o ónus de apresentar o pedido com 20 dias de antecedência relativamente à data designada para a audiência final, descontando o período de férias judiciais que se interponha"

O conhecimento do acórdão -- que adopta uma posição contrária àquela que se vem defendendo neste Blog -- proporciona uma nova reflexão sobre o tema da contagem dos prazos regressivos. Nunca pode estar excluída uma mudança de posição sobre essa matéria, dado que qualquer académico tem de aceitar isso como perfeitamente natural e inerente ao diálogo científico. O que sucede é que até agora, salvo melhor opinião, ainda não foi apresentado um argumento convincente para essa mudança.

2. Como se sabe, na contagem de qualquer prazo há que considerar um dies a quo (termo inicial) e um dies ad quem (termo final): o prazo começa a correr a partir de certa data e termina numa certa data. Os prazos regressivos não são excepção a esta regra: também eles têm um dies a quo e um dies ad quem. A especialidade reside em que o prazo corre "para trás": a partir de uma data futura (dies a quo) inicia-se uma contagem para o passado até se chegar ao dies ad quem.

Embora isso não resulte explícito, crê-se que a jurisprudência fundamenta a sua posição na simetria dos prazos "progressivos" e dos prazos "regressivos": se a contagem (para frente) de um prazo "progressivo" se interrompe nas férias judiciais (art. 138.º, n.º 1, CPC), a contagem (para trás) de um prazo "regressivo" sofre essa mesma interrupção.

Salvo o devido respeito, esta orientação esquece um aspecto substancial. Trata-se do seguinte: a interrupção do prazo "progressivo" durante as férias judiciais destina-se a proteger a parte que tem o ónus de praticar o acto, dado que essa interrupção permite que essa parte não tenha de realizar o acto em férias judiciais. Mais em concreto: a parte é beneficiada com a faculdade de poder vir a praticar o acto apenas depois das férias judiciais (se o prazo terminava durante essas férias) ou com o desconto das férias judiciais (se o prazo não terminava durante aquelas férias).

Posto isto, a pergunta que importa fazer é a seguinte: quanto aos prazos "regressivos", qual é a orientação que melhor salvaguarda a parte onerada com a prática do acto? A interrupção do prazo durante as férias judiciais e a consequente antecipação do dies ad quem ou a não interrupção durante as férias judiciais e a consequente postergação desse dies ad quem?

Supõe-se que a resposta é evidente: a parte é beneficiada, não com a interrupção do prazo durante as férias judiciais, mas antes com essa não interrupção. Enquanto a interrupção durante as férias judiciais antecipa o dies ad quem para antes das férias, a não interrupção durante as férias adia o dies ad quem para o decurso das férias. 
Posto isto, a conclusão também é evidente: a jurisprudência que defende a interrupção dos prazos "regressivos" durante as férias judiciais transforma uma regra que se destina a beneficiar a parte que tem o ónus de praticar um acto numa regra que prejudica essa mesma parte. Com a mudança de prazo "progressivo" para prazo "regressivo" passa-se da protecção para a desprotecção da parte.

O disposto no art. 138.º, n.º 1, CPC tem efectivamente de ser aplicado de forma simétrica para os prazos "progressivos" e para os prazos "regressivos". Só que essa simetria implica soluções distintas para situações igualmente distintas. Aliás, seria estranho que situações opostas (um prazo que se conta "para diante" e um prazo que se conta "para trás") merecessem a mesma resposta.

Assim, tendo por base a teleologia do disposto no art. 138.º, n.º 1, CPC, a contagem de um prazo "progressivo" não pode ser igual à contagem de um prazo "regressivo". A protecção da parte que tem o ónus de praticar o acto implica soluções distintas para cada um desses prazos: (i) no caso do prazo "progressivo", essa protecção implica que a parte não seja obrigada a praticar o acto durante as férias judiciais; por isso, a parte deve poder praticar o acto depois das férias; (ii) na hipótese do prazo "regressivo", aquela protecção implica que a parte não seja obrigada a praticar o acto antes das férias judiciais; por isso, a parte deve poder praticar o acto durante as férias.

A jurisprudência que defende a interrupção da contagem dos prazos regressivos durante as férias judiciais adopta uma solução "matemática". O que o problema exige é uma solução "jurídica".

3. Em suma: por agora, não se vê motivo para alterar a posição de que a contagem dos prazos regressivos não se interrompe durante as férias judiciais. 

MTS