"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/01/2024

Jurisprudência 2023 (83)


Defesa por excepção; preclusão;
excepção de caso julgado

1. O sumário de STJ 27/4/2023 (2622/18.4T8CSC.E1.S1) é o seguinte:

I - O requisito da norma do art.º 293.º do CCiv, relativo à vontade hipotética das partes, tem de ser invocado e provado pela parte que invoca a conversão do negócio, posto não ser o mesmo de conhecimento oficioso.

II – Na conversão, cabe uma interpretação melhorada do negócio, de modo a fazer dele a leitura sistemática – não se convertem negócios, mas sim as declarações negociais de um único negócio.

III - O que está em causa na conversão, à luz do disposto no art.º 293.º do CCiv, não é uma prévia ou necessária declaração de invalidade do negócio (nulo, anulável ou relativamente ineficaz), para, mais tarde, em nova acção (ou até na acção primitiva, por reconvenção) se invocar a conversão.

IV - A conversão pode ser aplicada por analogia aos casos de ineficácia em sentido estrito.

V – Para efeitos da preclusão extraprocessual da alegação, considera-se que incumbe ao réu o ónus de apresentar toda a defesa na contestação – art.º 573.º n.º1 do CPCiv, ficando assim precludidos todos os factos que podiam ter sido invocados como fundamento dessa contestação, tenham ou não qualquer relação com a defesa apresentada e, por isso, com aquela que foi apreciada antes pelo tribunal.

VI - Sendo a defesa por via da conversão do negócio dedutível enquanto defesa por excepção, fica a mesma precludida pelo disposto no art.º 573.º n.º1 do CPCiv, caso não venha a ser deduzida na contestação da acção.

VII - A preclusão em causa opera por via da excepção dilatória de caso julgado, visto o disposto nos art.ºs 580.º n.º1 e 581.º n.º1 do CPCiv.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I

A análise da impugnação recursória implica se situe a matéria dos autos, a partir da decisão recorrida ou dos respectivos termos, designadamente a partir do conceito ali desenvolvido de excepção dilatória de caso julgado, nas vertentes da repetição da primeira acção em matérias de pedido e causa de pedir – art.ºs 580.º n.º1 e 581.º n.ºs 14 do CPCiv.

No acórdão recorrido, exarou-se então:

“Da análise que dos documentos constantes na presente acção e dos documentos que nela foram juntos referentes à acção 123/06...., podemos concluir, como aliás salientam os réus DD e BB, que a questão essencial colocada no âmbito das duas acções é idêntica.”

“Na aludida acção, por estes instaurada no Tribunal ..., pretenderam ver reconhecida a qualidade de herdeiros da sua avó PP e, em consequência, verem cancelados os registos de aquisição sobre os prédios que elencaram que estavam registados a favor de BB (ali Réu) e do seu falecido irmão AA.

Na presente acção, todos os ora Recorrentes, Fundação e Chamados (à excepção do chamado BB) pretendem o inverso daquilo que os ora Réus quiseram e lhes foi reconhecido na acção que intentaram em ..., ou seja, que tais prédios voltem a estar registados a favor de BB e AA, independentemente do substracto jurídico usado para atingir tal desideradto.”

“Na verdade, da análise do conteúdo do acórdão do S.T.J. proferido na acção 123/06...., que emitiu pronúncia definitiva sobre as pretensões das partes, cada um dos pedidos formulados na presente acção já aí foram objecto de apreciação.”

“Pois, relativamente aos pedidos formulados pelas autoras na presente acção relativa à validade e eficácia da procuração por conversão, como disposição de última vontade, revogatória de parte do testamento, bem como à condenação dos réu a reconhecerem tal (pedidos vertidos na al.B) – a) e c) do petitório), o S.T.J., no acórdão proferido nesses autos, concluiu que: “Não há revogação – tácita ou expressa, nem caducidade do testamento que institui herdeiro da quota disponível da herança, se o de cujus outorga instrumento de procuração posterior, irrevogável, para produzir efeitos em vida e depois da sua morte, nomeando seus procuradores os filhos, para doarem a si próprios bens imóveis, certos e determinados, em comum e partes iguais, com dispensa de colação e reserva de usufruto a seu favor e do marido, ou para procederem a partilhas judiciais ou extrajudiciais, certo que aqueles bens, apesar de integrarem o acervo hereditário, não o esgotam.” [...]

“Embora nesta acção se invoque a figura jurídica da conversão do negócio como sustentáculo da pretensão formulada, o substato factual relevante em qualquer das acções é idêntico, não tendo sido alegados factos novos capazes de suportar, de forma autónoma, uma pretensão assente em tal figura.”

“No fundo, como bem salientam os recorridos, as autoras e os réus procuram obter, no presente processo, o mesmo efeito que já visavam no processo de ..., pois a pretensão de aquisição válida e eficaz, por via da partilha, dos imóveis constantes da procuração invocada nos presentes autos pelas autoras, já era a manifestada e defendida no processo anterior, embora aí na posição de parte passiva – na altura, com a consequente pretensão de manutenção dos registos então existentes, agora com a pretensão consequente de cancelamento dos registos actualmente existentes, que foram efectuados com base no acórdão do S.T.J. no processo de ..., estribando as suas pretensões na mesma causa de pedir – entendida como facto jurídico concreto ou complexo de factos jurídicos dos quais emerge a pretensão – dado que o peticionado pelas autoras se baseia, em ambos os processos, na procuração outorgada por PP a seus filhos, e na celebração de escritura de partilhas, como se tivesse constituído uma execução dos poderes contidos nessa procuração – mais, de cumprimento de um suposto mandato, e ainda por esta constituir (alegadamente) uma disposição de última vontade capaz de revogar ou fazer caducar o testamento a favor dos Réus BB e DD (total ou parcialmente, é indiferente, porque  aparte está contida no todo).” [...]

“Do exposto, há que reconhecer a verificação do requisito da identidade da causa de pedir.”

“No que respeita à identidade do pedido, diremos que a mesma se verifica quando numa ou noutra acção se pretenda obter o mesmo efeito jurídico em conformidade com o que resulta do disposto no art.º 581.º n.º3 do CPC, aferindo-se tal identidade pela circunstância de em ambas as acções se pretender obter o mesmo efeito prático-jurídico, não sendo de exigir uma adequação integral das pretensões, devendo sempre vedar-se a possibilidade de ocorrer, com a sentença que venha a ser proferida, uma contradição decisória (v. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Pires de Sousa, CPC Anotado, I, 2018, 661-662).”

“Da apreciação que fazemos dos factos, a pretensão que as autoras formulam na presente acção é, na sua substância, a de reverter em parte os efeitos decorrentes do julgado definitivo firmado na acção instaurada em ..., tendo por base os mesmos factos relevantes, e nessa medida possibilitar que os bens imóveis identificados na procuração outorgada em .../4/2002 regressem ao património de BB e seu irmão AA (falecido). Ou seja, de parte do património que integra a herança de PP (só aquele referenciado na procuração).”

“Assim, nesta acção pretendem as autoras obter o mesmo efeito jurídico, embora parcial (não está em causa a totalidade da herança, mas apenas os bens aludidos na procuração de .../4/2002) que obtinham com a posição que foi assumida na acção instaurada em ..., pelo que se verifica uma situação de identidade de pedido, identidade essa que não é afastada pelo facto de a pretensão ser dirigida a apenas parte, e não todos, os bens integrantes da herança de PP, porque a parte dos bens que agora é reclamada estava ela própria, já incluída na sua pretensão manifestada no processo anterior e na decisão que nele foi dada às questões suscitadas – da validade e eficácia quer do testamento de 1979, quer da procuração de Abril de 2002, quer das escrituras de habilitação de herdeiros e de partilhas de Outubro e Dezembro de 2002.”

“Concluímos assim, em dissonância com o entendimento dos recorrentes, bem como o entendimento do julgador a quo (este apenas reconheceu estarmos perante uma situação de autoridade de caso julgado) verificar-se a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir e, como tal, a excepção de caso julgado.” [...]

IV

A matéria deve ser decidida à luz do princípio da preclusão.

Como explana M. Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, pgs. 584 a 586), o caso julgado incide sobre uma decisão que deve considerar a matéria de facto tal como ela se apresenta finda a discussão, daí decorrendo a ideia de que as partes devem, sob pena de preclusão, alegar os factos nos articulados normais, exceptuando os casos de articulados supervenientes admissíveis (art.ºs 588.º e 589.º do CPCiv).

Mas o âmbito da preclusão diverge, do autor para o réu.

Para o primeiro, a preclusão define-se pelo caso julgado.

Para o segundo, há que considerar que lhe incumbe o ónus de apresentar toda a defesa na contestação – art.º 573.º n.º1 do CPCiv – pelo que a preclusão que o atinge é independente do caso julgado, em sentido estrito: ficam precludidos todos os factos que podiam ter sido invocados como fundamento dessa contestação, tenham ou não qualquer relação com a defesa apresentada e, por isso, com aquela que foi apreciada antes pelo tribunal.

Lembremos Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pg. 324): “se a sentença reconheceu, no todo ou em parte, o direito do Autor, ficam precludidos todos os meios de defesa do Réu, mesmo os que ele não chegou a deduzir, e até os que ele poderia ter deduzido com base num direito seu (por ex.: ser ele Réu, o proprietário do prédio reivindicado); neste sentido, pelo menos, vale a máxima segundo a qual o caso julgado “cobre o deduzido e o dedutível”.

“Por ex.: julgada procedente uma acção de reivindicação, não pode o Réu vir depois com uma nova acção dessas contra o Autor, fundado em que tinha adquirido por usucapião a propriedade do respectivo prédio; se a nova acção pudesse triunfar e valesse a correspondente decisão, seria contrariada a força de caso julgado que cabe à sentença anterior; tirava-se ao Réu um bem que a mesma sentença lhe tinha dado.”

Ou como em Castro Mendes (cit. in Ac.S.T.J. 20/6/84, Bol. 338/353, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, numa passagem de Paulus, e a propósito do actual art.º 581.º n.º3 do CPCiv): “É o mesmo objecto, não sempre que coincide absolutamente a anterior quantidade ou qualidade, sem qualquer aditamento ou subtracção, mas sempre que é a mesma utilidade, de harmonia com o conceito comum”.

Também se escrevia na Revista Decana, ano 70.º, pg. 234, igualmente citada no mesmo Ac. do S.T.J.: “O instituto do caso julgado destina-se, como é sabido – e outra não pode ser razoavelmente a sua função, pelo menos conforme está organizado, a evitar que as situações concretas definidas por uma sentença, ou por outras palavras talvez mais frisantes, os direitos ou bens que uma sentença reconheceu e garantiu, possam sofrer alteração ou prejuízo por virtude de uma nova sentença”.

Nos termos do art.º 573.º n.ºs 1 e 2 do CPCiv, toda a defesa deve ser deduzida na contestação, salvo os casos de defesa superveniente.

Deste modo, apresentada a contestação, fica precludida a invocação pelo réu, quer de outros meios de defesa, quer dos meios que ele não chegou a deduzir e até mesmo daqueles que ele poderia ter deduzido com base num direito seu (ut Ac. do S.T.J. de 30/11/2017 Col.III/106, rel. M.ª Rosa Tching).

No mesmo contexto escreve M. Teixeira de Sousa (blog do ippc, Preclusão e Caso Julgado, paper):

“A excepção de caso julgado através da qual opera a preclusão de um facto não se compatibiliza com a exigência da repetição de uma causa quanto ao objecto. A verdade é que aquela excepção de caso julgado nada tem a ver com a excepção de caso julgado que, desde o direito romano, pressupõe a repetição de um mesmo objecto em duas acções. A excepção de caso julgado através da qual opera a preclusão de um facto obsta à apreciação de um aliud; a excepção de caso julgado que impede a repetição de uma mesma causa obsta a reapreciação de um idem.”

“O que a solução mostra é que a excepção de caso julgado pode ter um âmbito de aplicação mais vasto do que habitualmente lhe é reconhecido. Normalmente, a excepção de caso julgado cumpre uma função negativa: esta excepção garante, como se estabelece no art. 580.º, n.º 2, a proibição de repetição de uma causa anterior. Basta atentar, no entanto, no disposto no art. 580.º, n.º 2, para se perceber que a excepção de caso julgado também pode realizar uma função positiva: não a função de excluir a repetição do mesmo, mas a função – também referida no art. 580.º, n.º 2, de obstar à contradição do decidido numa causa anterior. É precisamente isso o que sucede quando a excepção de caso julgado impede a apreciação de um aliud com base num facto precludido.” 

V

Igualmente se impõe constatar que, se os factos ora invocados por acção, conducentes à conversão do acto de procuração e subsequente conversão do negócio de partilha, tivessem sido invocados na primeira acção, na qual se invocara a invalidade da partilha (concluída pelo julgado de ineficácia da mesma partilha), teriam necessariamente constituído defesa por excepção peremptória e teriam conduzido à absolvição do pedido.

Isto é: o que está em causa na conversão do negócio, à luz do disposto no art.º 293.º do CCiv, não é uma prévia ou necessária declaração de invalidade do negócio (nulo, anulável, ou, como visto, relativamente ineficaz), para, mais tarde, em nova acção (ou até na acção primitiva, por reconvenção) se invocar a conversão.

Sendo a defesa por via da conversão do negócio, como seria o caso, dedutível enquanto defesa por excepção, fica a mesma precludida, exaurida, pelo disposto no art.º 573.º n.º1 do CPCiv, caso não venha a ser deduzida na contestação da acção.

Se a natureza exauriente não é aferida em absoluto, mas por relação com o objecto, tal como delineado pelo autor, a preclusão em causa abrange toda a defesa que pudesse ser classificada como defesa por excepção (assim, Paula Costa e Silva, O Direito, 2009, I, pg. 226), como seria o caso da invocação, na acção anterior, da conversão do negócio de partilha, caso tivesse sido invocada.

E é óbvio também que a preclusão em causa opera por via da excepção dilatória de caso julgado, como foi declarado na Relação, visto o disposto nos art.ºs 580.º n.º1 e 581.º n.º1 do CPCiv, excepção dilatória que sempre acartaria, em qualquer caso, e independentemente da pronúncia de 1.ª instância, conhecimento oficioso (note-se que, não obstante, a 1.ª instância se pronunciou igualmente pelo caso julgado, embora classificando-o como “excepção de autoridade de caso julgado”, e absolveu da instância) – tudo nos termos dos art.ºs 578.º e 577.º al.i) do CPCiv."

[MTS]