"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/01/2024

Jurisprudência 2023 (87)


Responsabilidade civil médica;
ónus da prova*


I. O sumário de RL 2/5/2023 (2313/14.5T8LSB.L1-7) é o seguinte:

1. Em acções fundadas em responsabilidade civil médica, incumbe ao paciente alegar e provar a desconformidade objectiva entre os actos praticados/omitidos pelo médico e as leges artis (o incumprimento ou cumprimento defeituoso), bem como o nexo de causalidade entre tais actos e o dano;

2. Demonstrada a violação das leges artis, opera a presunção de culpa a que se reporta o art.º 799º do CC;

3. O que se presume é a culpa do cumprimento defeituoso e não o cumprimento defeituoso em si mesmo;

4. Operando a presunção de culpa, cabe ao médico demonstrar a conformidade entre a sua conduta efectivamente observada e a actuação que lhe era exigível;

5. Não se exige ao médico a demonstração da real causa do dano, sendo suficiente uma explicação que sustente a existência do dano e a sua conduta diligente;

6. Por outro lado, a responsabilidade médica resulta também excluída se se demonstrar que o dano se deve a caso fortuito ou de força maior;

7. Não logrando a A. provar que a evolução da sua situação clínica, e que conduziu à amputação da sua perna, se deveu a uma lesão da artéria poplítea direita, causada por anterior cirurgia efectuada pelo R., não se mostra possível concluir por uma violação das leges artis, não podendo, por conseguinte, operar a presunção de culpa constante do art.º 799º do CC, o que leva à improcedência da acção.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Insere-se a presente acção no instituto da responsabilidade civil e, em concreto, na problemática da responsabilidade civil por acto médico.

Tal como tem vindo a ser defendido, este subdomínio da responsabilidade civil encontra-se na confluência da responsabilidade extracontratual, consagrada nos art.ºs 483º e ss. do CC, e da responsabilidade contratual, prevista nos art.ºs 799º e ss. do CC.

Seguiremos aqui de perto os recentes acórdãos desta secção de 27-11-2018, proc. 18450/16.9T8LSB.L1, relatado pela ora 1ª adjunta, de 13-10-2020, proc. 1572/13.5TVLSB.L1-7, relator Luís Filipe Sousa, de 28-09-2021, proc. 612/17.3T8MTA.L2, relator Edgar Taborda Lopes e, em particular, de 24-01-2023, proc. 12091/16.8T8LSB.L1-7, relator Diogo Ravara, e no qual a ora relatora e a 1ª adjunta tiveram intervenção como 1ª e 2ª adjunta, respectivamente. [...]

No que aos presentes autos diz respeito, estruturou a apelante a presente acção com fundamento em responsabilidade civil, alegando ter sido amputada a sua perna direita na sequência de complicações causadas pela cirurgia efectuada pelo 2º R. nas instalações do 1º R.. Mais sustenta que, não fora tal cirurgia, não teria ocorrido a amputação.

Embora tenha invocado, na petição inicial, como causa do seu direito a responsabilidade civil extracontratual, veio a apelante, em alegações, invocar a responsabilidade contratual dos RR..

Com interesse para esta questão, mostra-se assente que a A., ora apelante, foi submetida, em 11-07-2012, a uma intervenção cirúrgica efectuada pelo R., Dr. B, nas instalações do R. Hospital dos Lusíadas e com apoio de pessoal e equipamento deste Hospital (facto nº 15).

Deste facto e da sua conjugação com a demais factualidade assente, conclui-se que a apelante terá celebrado com o Hospital um contrato de prestação de serviços médicos, figura contratual sem regulamentação legal específica, incluída na categoria genérica dos contratos de prestação de serviços previstos no art.º 1154º do CC, e subordinada às regras supletivas do contrato de mandato, com as devidas adaptações (cfr. art.º 1156º do CC).

Assim, tem de se concordar com a apelante quando refere que a questão trazida a juízo deve ser apreciada de acordo com os termos da responsabilidade civil contratual. [...]

Assim, e tal como decorre do art.º 799º do CC, “o devedor que falte culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causar ao credor”.

No que se refere ao conteúdo da prestação a cargo do médico, na responsabilidade civil contratual decorrente do incumprimento de um contrato de prestação de serviços médicos, para além do que conste de concretas cláusulas contratuais acordadas, há que recorrer ao que consta dos regulamentos deontológicos próprios, seja em convenções internacionais subscritas pelo Estado Português, nomeadamente a Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina, celebrada em Oviedo em 1997, e habitualmente conhecida como Convenção de Oviedo, seja no Regulamento de Deontologia Médica da Ordem dos Médicos (Diário da República, 2.ª série, n.º 139, de 21/07/2016) e na Lei de Bases da Saúde.

Decorre destas normas que a prestação profissional do médico assenta, antes de mais, no dever de prestar os melhores cuidados, restituir ou promover a saúde aos seus pacientes, suavizando o sofrimento e prologando a sua vida.

A jurisprudência maioritária qualifica esta obrigação como uma obrigação de meios, visto que o médico estará obrigado a desenvolver a sua actividade, prudentemente e com diligência, visando um determinado objectivo, sem que lhe seja exigível a obtenção de um concreto resultado. Neste sentido, para lá dos acórdãos já citados, veja-se ainda os Acs. do TRP de 17-03-2017, proc. 7053/12.7TBVNG.P1, relator Jorge Seabra, do TRG de 14-01-2021, proc. 304/17.3T8BRG.G2, relator Cristina Cerdeira e do STJ de 07-03-2017, proc. 6669/11.3TBVNG.S1, relator Gabriel Catarino.

Como se explica, a este propósito, no Ac. de 27-11-2018, já citado, “O médico não está obrigado a determinado resultado material ou imaterial (a cura como evento incerto), mas deve desenvolver uma actividade profissional tecnicamente qualificada na escolha e utilização dos meios mais idóneos a conseguir a cura”.

Não obstante, e como se refere no Ac. desta secção de 24-01-2023 que vimos seguindo de muito perto, “o STJ já admitiu a qualificação de tal obrigação como obrigação de resultado em casos de cirurgias com uma probabilidade de insucesso ínfima [vd. acs. STJ 23-03-2017 (Tomé Gomes), p. 296/07.7TBMCN.P1.S1 e STJ 29-03-2022 (Mª Clara Sottomayor), p. 640/13.8TVPRT.P2.S1], ou relativamente a determinados aspetos da mesma cirurgia [ac. STJ 15-12-2020 (Ricardo Costa), p.  765/16.8T8AVR.P1.S1].”.

Assim, e por forma a que se possa concluir por uma situação de responsabilidade civil médica, terá de existir uma desconformidade objectiva entre os actos praticados/omitidos pelo médico e as leges artis (o incumprimento ou cumprimento defeituoso), bem como o nexo de causalidade entre esses actos e o dano.

Essencial para essa aferição é o conceito de diligência exigível, ou seja, que a concreta actuação do agente se conforme dentro do padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes na altura.

Conclui-se, pois, que no contexto da responsabilidade civil por acto médico o preenchimento do pressuposto ou requisito da ilicitude consiste na violação de deveres profissionais do médico (por acção ou omissão).

Por outro lado, as leges artis correspondem a “métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a standards contextualizados de atuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica como os mais adequados e eficazes” (Ac. STA de 13-03-2012, proc., 0477/11, relator Políbio Henriques apud Ac. TRL de 13-10-2020 supra citado).

Isto é, a violação das leges artis decorre da desconformidade objectiva entre os actos realizados e os que, à luz dos conhecimentos técnicos e as melhores práticas da ciência médica à data, seriam devidos, podendo essa violação decorrer de imperícia, imprudência, desatenção, negligência ou inobservância dos regulamentos, ou da conjugação de dois ou mais destes factores. Para ulteriores esclarecimentos quanto ao que se entenda por imperícia e imprudência,  veja-se o aresto de 24-01-2023, onde se efectua cuidada e detalhada análise da questão.

Como se pode ler neste aresto, “A questão que se coloca pertinentemente será sempre a da definição do já aqui referido padrão de diligência exigível ao médico.

E a exigibilidade está intrinsecamente ligada à culpa, a qual consiste num nexo de imputação do ato ilícito ao agente, em que não há previsão ou aceitação do resultado antijurídico.

O ato ilícito será imputável ao agente porque ele deveria ter atuado por molde a evitá-lo, usando da diligência adequada”.

Consequentemente, tem sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência que, demonstrada a violação das leges artis, opera a presunção de culpa a que se reporta o art.º 799º do CC.

Ou seja, o que se presume é a culpa do cumprimento defeituoso e não o cumprimento defeituoso em si mesmo.

Operando a presunção de culpa, cabe ao médico demonstrar a conformidade entre a sua conduta efectivamente observada e a actuação que lhe era exigível.

Saliente-se que não se exige ao médico a demonstração da real causa do dano, sendo suficiente uma explicação que sustente a existência do dano e a sua conduta diligente, não sendo, porém, bastante a arguição de explicações alternativas para a ocorrência do dano.

Por outro lado, a responsabilidade médica resulta também excluída se se demonstrar que o dano se deve a caso fortuito ou de força maior.

Como se refere nos arestos citados, atenta a complexidade do organismo humano e a circunstância de cada pessoa ser diferente das demais e nessa medida única, em medicina as probabilidades da verificação de situações qualificáveis como caso fortuito são mais elevadas do que em outras actividades humanas, razão pela qual se admite uma certa margem de risco tolerado ao acto médico, nomeadamente face à imperfeição dos conhecimentos da medicina à data do acto.

Ainda assim se dirá que, para afastar a responsabilidade médica não é suficiente a mera demonstração de que, na sequência de um determinado tipo de cirurgia, numa reduzida percentagem de casos se verificam determinadas sequelas no paciente (percentagem racional de risco típico), sendo sempre necessário apurar a causa efectiva dessas sequelas.

Analisada a questão de forma sintética, apreciemos então o caso dos autos.

Da análise dos factos provados extrai-se que a A., ora apelante foi submetida a uma intervenção cirúrgica ao seu joelho direito em virtude de problemas de há vários anos, tendo, posteriormente, havido necessidade de proceder à amputação da perna.

Mais está provado sob os nºs 18 a 27 que, passados cerca de 4/5 dias da operação, o dedo grande do pé direito da A., e o calcanhar começaram a apresentar uma coloração escura, o que foi referenciado no processo clinico da A. como “Zona de pressão do calcanhar/ sofrimento cutâneo por pressão”, foi retirada a compressão da zona, aplicada “placa Vahreesive”, tendo a A. tido alta dada pelo Dr. B, no dia 20 de julho de 2012; que no dia 27 de Julho de 2012, a A. voltou ao Hospital e examinado pelo R., o qual efectuou diagnóstico e pediu observação por cirurgia vascular; que, no dia, 12 de Agosto de 2012, e face à existência de um “quadro isquémico distal na perna/pé dto (necrose 1º dedo, calcâneo e loca tibial anterior)” foi feita à autora no Hospital dos Lusíadas uma aortografia que revelou “lesão na art. popliteia dta”; tendo a A. sido “submetida a um bypass popliteu/tronco tibioperoneal com veia safena contralateral em posição invertida” e feita “limpeza das zonas necrosadas da perna”; sem que tenha sido obtida evolução clínica favorável, o que levou a nova intervenção cirúrgica para desbridamento, constatando-se coleção purulenta pré-tibial; que, nesta ultima intervenção, a A. foi avaliada no bloco operatório, sob anestesia, pela equipa de Cirurgia Vascular, Plástica e Ortopedia, tendo sido feita exploração do compartimento posterior da perna e a loca tibial anterior, tendo-se constatado a existência de infeção marcada, pelo que se decidiu propor a amputação pelo 1/3 inferior da coxa, sob pena de risco de vida, tendo sido efectuada, dia 21.09. 2012, após consentimento, a amputação da perna direita da A. pelo 1/3 da coxa, ou seja, acima do joelho.

Da sequência destes factos resulta que a amputação da perna direita da A. se deveu a complicações após a cirurgia efectuada pela R., pelo que se impõe apurar se essas complicações e consequente amputação se devem a qualquer violação das leges artis.

[...] dos factos provados não resulta que os procedimentos cirúrgicos adoptados pelo R. fossem inadequados perante o quadro clínico da A. ou que a cirurgia efectuada ao joelho tenha provocado uma lesão na artéria poplítea direita, ficando a perna sem ser irrigada pelo fluxo sanguíneo, nem que, na execução de qualquer dos vários actos médicos praticados, o R. tenha incorrido na violação de qualquer legis artis.

Recorde-se, mais uma vez, que cabia à A. alegar e provar a desconformidade objectiva entre os actos praticados/omitidos pelo R. médico e as leges artis (o incumprimento ou cumprimento defeituoso), bem como o nexo de causalidade entre tais actos e o dano, sendo certo que não se presume o cumprimento defeituoso em si mesmo, mas tão somente a culpa desse cumprimento defeituoso, desde que feita a prova da violação das leges artis.

Não estando assente essa violação das leges artis, não pode operar a presunção de culpa constante do art.º 799º do CC, não estando, assim, demonstrados os pressupostos da ilicitude e da culpa, que constituem elementos integradores da causa de pedir dos autos, o que redunda na improcedência da acção quanto ao 2º R., como decidido em primeira instância."

III. [Comentário] Não se discorda do enunciado de que cabe ao demandante "alegar e provar a desconformidade objectiva entre os actos praticados/omitidos pelo R. médico e as leges artis (o incumprimento ou cumprimento defeituoso), bem como o nexo de causalidade entre tais actos e o dano". Apenas importa ter presente que este critério pode conduzir, em diferentes casos, a diferentes conclusões, dado que haverá casos nos quais a desconformidade do resultado com o esperado provam a inobservância das leges artis -- ou seja, nos quais a violação das leges artis constitui a melhor explicação para o resultado -- e outros nos quais assim não sucede -- ou seja, nos quais a melhor explicação do resultado não é a violação de qualquer legis artisSegundo parece, o caso em análise no acórdão pertence a esta segunda espécie.

MTS