"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/01/2024

Jurisprudência 2023 (90)


Aplicação da lei no tempo;
dupla conforme; recurso de revista


1. O sumário de STJ 1/3/2023 (12927/94.2TVLSB.L1.S1) é o seguinte:

Com a expressão “com exceção do disposto no n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil” (constante do art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 41/2013, de 01-09) quer-se dizer e significar que o pressuposto negativo da “Dupla Conforme”, seja na versão inicial (do DL n.º 303/2007), seja na atual versão “suavizada” (da Lei n.º 41/2013), não é aplicável às ações instauradas antes de 01-01-2008, ou seja, quer-se dizer e significar que a “Dupla Conforme” continua a não constituir obstáculo, em tais ações (instauradas antes de 01-01-2008), à admissibilidade do recurso de revista.


2. Na fundamentação do acórdão (que tem um voto de vencido) afirmou-se o seguinte:

"Ciente disto – [isto é] dos dilemas e embaraços colocados pela aplicação no tempo das leis processuais sobre recursos, principalmente quando estão em causa as suas condições de admissibilidade – o legislador, quando procede a significativas alterações às leis processuais, não se tem furtado a incluir disposições transitórias especiais, destinadas a definir o campo temporal de aplicação das leis processuais em confronto.

Foi justamente o que aconteceu com o DL 303/2007, de 24 de Agosto, cujas disposições entraram em vigor no dia 1 de Janeiro de 2008, e com a Lei 41/2013, de 26 de Junho, cujas disposições entraram em vigor no dia 1 de Setembro de 2013; diplomas em cujo âmbito foram introduzidas alterações às condições de admissibilidade do recurso de revista.

Alterações que, para o que aqui interessa, se resumem ao seguinte:

Até ali, até 1 de Janeiro 2008, o pressuposto negativo da “Dupla Conforme” não era um obstáculo ao acesso ao terceiro grau de jurisdição, ou seja, se a causa tivesse valor para tal e houvesse sucumbência, era sempre admissível recurso de revista; e, além disto, em termos procedimentais, num primeiro momento e prazo, o recorrente limitava-se a interpor requerimento de recurso e, este admitido, então, num segundo momento e prazo, é que tinha que apresentar a sua alegação.

Em 1 de Janeiro de 2008, foi introduzido o pressuposto negativo da “Dupla Conforme”, passando, nos termos do então art. 720.º/3 do CPC, a não ser admitido recurso de revista do acórdão da Relação que confirmasse, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1.ª Instância (ressalvados os casos de revista excecional, hipótese/situação que não vem ao caso); e, além disto, em termos procedimentais, a interposição de recurso e a apresentação da alegação, passaram a acontecer concentradamente num primeiro e único momento (cfr. art. 684.º-B do CPC).

Posteriormente, em 1 de Setembro de 2013, manteve-se o pressuposto negativo da “Dupla Conforme”, porém, foi-lhe introduzida uma suavização/nuance, passando, nos termos do agora art. 671.º/3 do CPC, a deixar de existir “Dupla Conforme” quando a Relação, para a confirmação da decisão da 1.ª Instância, empregue “fundamentação essencialmente diferente”; e, além disto, em termos procedimentais, manteve-se a concentração da interposição do recurso e da inclusão da alegação.

Sucedendo, passando às disposições transitórias especiais, que o legislador do DL 303/2007, de 24 de Agosto, resolveu o problema da aplicação da lei no tempo (em relação, designadamente, ao ter sido introduzido o pressuposto negativo da “Dupla Conforme” para aceder ao 3.º grau de jurisdição e à referida “concentração”) dum modo simples e claro, ao dispor, no art. 11.º/1 do DL 303/2007 (sem prejuízo do seu n.º 2, que não vem ao caso) que «as disposições do presente decreto-lei não se aplicam aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor», ou seja, num processo como o presente (entrado em juízo em 29/09/1994 e pendente em 01/01/2008) o recurso de revista, a interpor após 1 de Janeiro de 2008, continuou, mesmo em casos de Dupla Conforme, a ser admissível e a contemplar os dois referidos momentos (interposição de recurso e, posteriormente, alegação).

Identicamente, também a Lei 41/2013, de 26 de Junho, estabeleceu disposições transitórias especiais destinadas a definir o seu campo temporal de aplicação, porém, não no mesmo sentido e não com idêntica clareza.

Veio dizer, no seu art. 5.º/1 (da Lei 41/2013) que, «sem prejuízo do disposto nos números seguintes, o Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, é imediatamente aplicável às ações declarativas pendentes.», ou seja, veio fixar em letra de lei (e sem prejuízo do disposto nos demais números de tal art. 5.º) a tal orientação prevalente na doutrina em relação às norma de processo: o tal entendimento de “que a nova lei processual deve aplicar-se imediatamente, não apenas às ações que venham a instaurar-se após a sua entrada em vigor, mas a todos os atos a realizar futuramente, mesmo que tais atos se integrem em ações pendentes (…)

Porém, logo a seguir, no seu (da mesma Lei 41/2013) art. 7.º/1, veio determinar que «aos recursos interpostos de decisões proferidas a partir da entrada em vigor da presente lei em ações instauradas antes de 1 de janeiro de 2008 aplica-se o regime dos recursos decorrente do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, com as alterações agora introduzidas, com exceção do disposto no n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei.»

E é em tal art. 7.º/1 que surge a dificuldade e divergência interpretativas, mais exatamente, em relação ao sentido a conferir à expressão “com exceção do disposto no n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil”.

Expressão esta que, com todo o respeito por opinião diversa, só pode ter o sentido de querer significar que o pressuposto negativo da “Dupla Conforme”, seja na versão inicial, seja na atual versão “suavizada”, não é aplicável aos recursos de revista intentados nas ações instauradas antes de 01 de Janeiro de 2008 (como é o caso dos presentes autos), ou seja, que a “Dupla Conforme” não constitui obstáculo, em tais ações, ao acesso ao terceiro grau de jurisdição.

Não faz qualquer sentido, mais uma vez com todo o respeito, que a expressão “com exceção do disposto no n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil” se refira às “alterações agora introduzidas” e que, por via disso, às “ações instauradas antes de 1 de janeiro de 2008” se aplique, como se sustenta no despacho reclamado, o obstáculo da “Dupla Conforme” e na versão inicial (do Decreto-Lei n.º 303/2007) sobre a “Dupla Conforme”.

Se assim fosse, se tal interpretação fosse a correta, teria o legislador caído num incompreensível contra senso.

Repare-se:

As ações intentadas após 1 de Janeiro de 2008, sujeitas ab initio à versão inicial (do Decreto-Lei n.º 303/2007) da “Dupla Conforme”, passaram a ficar sujeitas à versão “suavizada” da “Dupla Conforme”, ou seja, passaram a ver aumentadas as possibilidades de aceder ao 3.º grau de jurisdição.

As ações intentadas antes de 1 de Janeiro de 2008 – que até à entrada em vigor da Lei 41/2013 estavam sujeitas, como já se referiu, ao art. 11.º/1 do DL 303/2007  em que o recurso de revista, a interpor até 01 de Setembro de 2013, continuava, mesmo em casos de Dupla Conforme, a ser admissível, passariam a ver diminuídas as possibilidades de aceder ao 3.º grau de jurisdição e, mais do que isso, passariam mesmo a ter menos possibilidades de acesso ao terceiro grau de jurisdição que as ações intentadas após de 1 de janeiro de 2008 (sendo certo que, até ali, era exatamente o oposto que sucedia4).

E é esta “ultrapassagem” – se se entendesse que a expressão em causa quer significar que às ações instauradas antes de 1 de janeiro de 2008 se aplica o obstáculo da “Dupla Conforme” e na versão inicial (do Decreto-Lei n.º 303/2007) da “Dupla Conforme” – que exprime o contra senso que não pode/deve ser imputado ao legislador.

Ações que, quando foram intentadas, estavam sujeitas a uma regra “rígida” de Dupla Conforme viam ser-lhe aplicável a regra “suavizada”; ações que, quando foram intentadas (e depois disso), não estavam sujeitas a qualquer regra de Dupla Conforme, passavam a ficar sujeitas à “Dupla Conforme” mais rígida e abrangente (e menos possibilitadora da revista).

Sem prejuízo da redação do art. 7.º/1 em causa não ser feliz e inequívoca, a harmonia do sistema, o histórico das disposições transitórias (o que já vinha do art. 11.º do DL 303/2007) e a presunção de acerto de que goza o legislador (art. 9.º do C. Civil), apontam para o sentido e interpretação supra referidos, de com a expressão “com exceção do disposto no n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil” se ter querido dizer que o pressuposto negativo da “Dupla Conforme”, seja na versão inicial, seja na atual versão “suavizada”, não é aplicável às ações instauradas antes de 01 de Janeiro de 2008, ou seja, que a “Dupla Conforme” continua a não constituir obstáculo, em tais ações, ao acesso ao terceiro grau de jurisdição.

É claro, reconhece-se, que teria sido fácil dizer isto mesmo – era fácil redigir uma disposição transitória dizendo que «aos recursos interpostos de decisões proferidas a partir da entrada em vigor da presente lei em ações instauradas antes de 1 de janeiro de 2008 não se aplica o obstáculo da dupla conforme constante do n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil» – porém, qualquer outra interpretação, designadamente a que conduz e encerra a descrita “ultrapassagem” (em que, sem razão compreensível, as possibilidades de revista passam de mais a menos, na comparação com os recursos de revista das ações intentadas após 1 de Janeiro de 2008), fere a racionalidade e harmonia interpretativas.

Como supra se referiu, não repugna à doutrina sobre a aplicação no tempo das leis sobre recursos que uma lei que negue o recurso (a decisões anteriormente recorríveis) seja imediatamente aplicável, todavia, a questão não é esta: a questão é que a lei, seguindo-se a interpretação sustentada no despacho reclamado, estaria a distinguir processos (as suas condições de recurso), determinando a aplicação imediata da lei a uns processos antigos e mandando aplicar a outros processos antigos – ao arrepio de qualquer razão compreensível – uma “lei intermédia” (mais restritiva do recurso de revista, quando tais processos, quando foram intentados, até gozavam dum regime mais aberto de recurso de revista)."

[MTS]