"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/01/2024

Jurisprudência 2023 (95)


Matéria de facto; 
conceitos jurídicos; "angariador"*


1. O sumário de RE 20//4/2023 (390/20.9T8SSB.E1) é o seguinte:

I – O despacho que rejeita a junção de um documento aos autos é autonomamente recorrível, ao abrigo do disposto no artigo 644.º, n.º 2, alínea d) do CPC, de acordo com cuja estatuição cabe recurso de apelação autónoma do despacho de rejeição de algum meio de prova.

II – Não tendo sido interposto recurso, tal despacho transitou em julgado, estando coberto pelo caso julgado formal e tendo força obrigatória dentro do processo, tal como previsto no artigo 620.º, n.º 1, do CPC, autoridade essa que vincula este tribunal, que não pode reapreciar a decisão da matéria de facto com fundamento em tal documento.

III – A qualidade de “angariador” de um imóvel é um conceito jurídico, que depende da prova da prática dos atos previstos no regime jurídico a que fica sujeita a atividade de mediação imobiliária, que exige ainda que essa menção conste obrigatoriamente do contrato de mediação.

IV – A apreciação da matéria de facto não pode dissociar-se da qualificação jurídica dos atos praticados, que determina a base factual, impondo-se nesse caso, a modificação da matéria de facto, com a eliminação desse segmento do ponto de facto provado.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Dissente a autora do segmento da decisão recorrida que considera que a angariação do imóvel da Lagoa de Albufeira, foi efetuada por BB, apenas sendo devido à autora metade do valor que lhe cabia da comissão.

Defendendo ter sido ela quem angariou o imóvel da Lagoa da Albufeira, que BB somente lhe referenciou, circunscreve a sua impugnação da decisão de facto da sentença recorrida, ao segmento final do ponto 13, mais concretamente onde consta que foi BB quem na prática angariou esta moradia para a Chave Certa, ponto este da decisão da matéria de facto, que determinou a absolvição parcial da Ré do pedido, que foi decidida na sentença recorrida, e que a Apelante pretende seja revogada nessa parte.

Tendo a apelante cumprido os ónus que sobre si impendem, cumpre apreciar se a prova produzida, impõe ou não decisão diversa da recorrida, à luz das sobreditas considerações genéricas.

In casu, para fundamentar a sua decisão quanto ao indicado ponto da matéria de facto, a Senhora Juíza ponderou que:

«CC afirmou, no essencial, que AA e BB estavam como angariadoras e vendedoras de imóveis na loja da Ré localizada em Sesimbra, e no início de 2019 começaram a trabalhar juntas, tendo a segunda transmitido o contacto e o imóvel da cliente P... sito na Lagoa da Albufeira para mediação da venda.

A A., AA acompanhou clientes compradores ao imóvel, que era uma moradia. O contrato de promessa de compra e venda foi celebrado na loja de Lisboa, da Ré, e estiveram presentes AA, BB e a própria testemunha, CC. O sinal foi recebido.

A proprietária da casa, P..., que depôs como testemunha, confirmou que efetivamente foi a BB que indicou o seu imóvel para mediação da venda na Chave Certa, mas que foi AA que posteriormente a esse momento inicial tratou de tudo.

O contrato de mediação imobiliária junto com a p.i., correspondente a tal negócio, é confirmativo de tal sendo que no mesmo se encontra aposta a assinatura de AA e da cliente.

O negócio foi todo realizado por AA, mas como BB referenciou a cliente e o imóvel àquela, ou seja, fez a angariação, tem direito a metade da comissão a pagar pela Chave Certa.

No processo há também uma ficha de visita ao imóvel da Lagoa de Albufeira, assinada pela Autora e pela proprietária P... comprovativa das mencionadas visitas por clientes compradores da Chave Certa.

Existem emails trocados entre AA e a cliente proprietária confirmativos de que a A. esteve à frente desta mediação imobiliária, em nome da Ré.

Os documentos 1 e 2 juntos com a petição inicial contribuíram para provar a relação de colaboração imobiliária, na angariação e venda de imóveis, entre a Autora e a Ré, os quais constituem publicidade à Chave Certa nas quais está escrito o nome de AA, o endereço eletrónico e o telefone da mesma como contactos da empresa Ré (assim como estão os contactos de BB para o mesmo fim), sendo que no documento 2. AA está denominada como Consultora Imobiliária da Chave Certa, na loja de Sesimbra.

A compradora da moradia sita na Lagoa de Albufeira foi inquirida como testemunha, de seu nome DD, tendo confirmado que, com efeito, na celebração do contrato de promessa de compra e venda estavam presentes quer BB quer a Autora, mas que foi a A. que acompanhou todo o assunto da compra do princípio ao fim tendo estado presente inclusivamente na escritura pública de compra e venda».

Invoca a Apelante que “se é certo que o imóvel da Lagoa da Albufeira não adveio de cliente direto da A., a vendedora também não era cliente de BB pois esta tinha abandonado o processo há anos, limitando-se, à data dos factos, a transmitir o contacto da proprietária, sua antiga cliente, P..., à recorrente. Tratou-se de uma mera referenciação do cliente, de uma dica dada à A., o que aliás é admitido pelo Tribunal. «(…) BB referenciou a cliente (…) àquela (…)» que, todavia, e de forma incorreta, iguala essa referenciação a uma angariação e, por isso, salvo o devido respeito, erradamente conclui que esta «(…) fez a angariação, tem direito a metade da comissão a pagar pela Chave Certa.»

Por seu turno, a Apelada, transcreve excertos do depoimento da testemunha P..., onde consta que a BB também esteve presente no primeiro dia em que a autora e a vendedora do imóvel se encontraram, e também esteve presente na escritura.

É certo que a testemunha BB foi quem facultou à autora o contacto da vendedora, P..., que reuniram no primeiro dia as 3, na reunião em que se estabeleceram as condições do negócio, preço da venda, percentagem da Agência, que a mesma acompanhou o processo pelo menos na fase da celebração do contrato-promessa, e que esteve presente na escritura de compra e venda.

Porém, não cremos que tal imponha a conclusão que foi a BB quem “angariou” o cliente.

Vejamos.

Começando pela prova documental.

O contrato de mediação imobiliária referente ao imóvel em questão, consta a fls. 13 e v.º, como tendo sido celebrado em regime de exclusividade, estando datado de 06.04.2019 e subscrito pela vendedora, a testemunha P..., e pela autora. O mesmo acontece com o relatório de visita ao imóvel, nesse mesmo dia, que faz fls. 14.

Seguidamente, temos uma troca de correspondência eletrónica, de fls, 15 a 29, entre a autora e a vendedora, entre a autora e a compradora, a testemunha DD, agilizando encontros e prestando informações diversas, entre a autora e MM, a respeito do certificado energético, entre a autora e a testemunha CC, e desta para a vendedora, prestando informação sobre o estado das diligências de avaliação bancária, neste caso, com conhecimento apenas para a autora, sem incluir a BB.

A fls. 34v.º consta um email dirigido unicamente à autora, remetido pela compradora do imóvel, a agradecer a diligência daquela, e mencionando apenas a ajuda da CC com os bancos.

Do negócio de Fernão Ferro, sobre o qual a autora apenas pediu o valor da venda, não está junto o contrato de mediação, mas apenas uma ficha de visita ao imóvel (fls. 37 v.º), o que indicia a existência de uma situação diversa entre um e outro caso, como, aliás, a autora mencionou nas suas declarações de parte quando afirmou que quando referindo-se a que tinha dois processos pendentes (quando cessou a colaboração com a ré), afirmando “o de Fernão Ferro era só venda. A angariação é da BB. A Lagoa de Albufeira era angariação e venda”.

Por seu lado, com a contestação, a Ré juntou também um conjunto de emails enviados por CC em que a BB é incluída em conhecimento juntamente com a autora. Mas, se bem atentarmos, os mesmos respeitam já à fase do contrato-promessa de compra e venda (cfr. fls. 69 a 72), constando até um email dirigido pela vendedora para a CC a respeito do NIB para pagamento da comissão à agência, onde refere “a BB já me tinha enviado, mas eu não encontro o email dela”. Com efeito, o único email da testemunha é dirigido à CC, em 22.04.2019, tem como assunto “Comissão Lagoa de Albufeira” e menciona que “derivado a estarmos pendentes de avaliação de imóvel para concluirmos o processo, só pretendo receber a comissão na totalidade, após a escritura do mesmo”.

Vejamos, então, como se processou a angariação da cliente, ou seja, como se fechou o acordo que levou à celebração do contrato de mediação imobiliária a que aludimos.

Disse a testemunha CC – que, tal como o tribunal a quo, se nos afigurou ter sido credível e imparcial –, que surgiu um cliente, a testemunha DD, que pretendia comprar um imóvel na zona da Lagoa, e então a autora começou a fazer a prospeção. “Prospeção é bater de porta em porta ou deixar flyers a dizer que eu tenho um cliente comprador para esta zona, quer vender o seu imóvel? É um bocado assim”. Explicou que a D. AA esteve lá vários dias e porque estava na loja de Sesimbra com a D. BB, esta teve conhecimento e disse: “em tempos eu tive uma senhora na empresa anterior em que eu trabalhei havia uma senhora que queria vender a casa na Lagoa, eu não vou fazer a angariação, mas se quiseres eu dou-te o contacto da senhora.” E assim foi.

Perguntada sobre a razão porque é que ela não fez a angariação, a testemunha respondeu, sem certezas, ter a ideia que alguma coisa tinha corrido mal na outra imobiliária, mas que não entrou em pormenores.

Ora, a verdade, é que esta é a primeira dúvida que afronta as regras da experiência comum para concluirmos que a angariação foi da testemunha e só a venda da autora. Se era a BB quem tinha o contacto da Prof.ª P..., que veio a ser a vendedora, porque razão não lhe ligou diretamente e deu o contacto à autora para ela ligar? Se depois esteve com a autora na casa da testemunha, estiveram as três à mesa, a conversar, e, como esta referiu, falaram dos pormenores do contrato, porque razão, se fosse a BB a angariadora, foi a autora quem subscreveu o contrato de mediação celebrado com a vendedora, e não aquela?

Cremos que a resposta se apresenta natural, e, ao contrário do referido pelo tribunal a quo, foi dada pela própria testemunha CC quando perguntada sobre quem fez o trabalho a partir daquela indicação (dita referenciação, pela testemunha), que respondeu: “tem de ser a AA, não é, que foi o angariador. A D. AA fez a angariação, tirou as fotografias, até tratou do certificado energético na altura e depois vai mostrar ao cliente, e fecha o negócio”. E mais adiante, já concretamente a respeito da percentagem da comissão, respondeu que “neste caso, como tinha a angariação e a venda estamos a falar de 50%, pois os outros 50% é para a empresa”, confirmando quando o Ilustre mandatário questionou se, portanto, “a D. AA teria de receber 50% deste valor (25% da angariação + 25% da venda).

Munidos desta informação sobre as concretas tarefas levadas a cabo pela autora (confirmadas também pelo teor dos depoimentos das testemunhas vendedora e compradora), confrontemos a questão de facto, com a qualificação jurídica dos atos praticados, que determina a base factual.

Com pertinência para o caso em presença, cumpre relembrar o ensinamento de A. CASTANHEIRA DAS NEVES quando sublinha que “«a questão–de-facto» e a «questão-de-direito» não são duas entidades em si, de todo autónomas e independentes, antes mutuamente se condicionam, além de também mutuamente se pressupõem e remetem uma para a outra”(…) [In Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano nº 129, página 166.]. “Para dizer a verdade, o puro facto e o puro direito não se encontram nunca na vida jurídica: o facto não tem existência senão a partir do momento em que se torna matéria de aplicação do direito, o direito não tem interesse senão no momento em que se trata de aplicar ao facto; pelo que quando o jurista pensa o facto, pensa-o como matéria de direito, quando pensa o direito, pensa-o como forma destinada ao facto.” [A distinção entre a questão-de-facto e a questão-de-direito, in DIGESTA, VOLUME I, Coimbra Editora, página 522.]

Ora, decorre dos artigos 23.º e 24.º da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro, que estabelece o regime jurídico a que fica sujeita a atividade de mediação imobiliária, a definição dos “colaboradores de empresas de mediação imobiliária”.

Assim, nos termos do artigo 23.º, “são designados por técnicos de mediação imobiliária os colaboradores das empresas de mediação imobiliária que desempenham, em nome destas, as funções de mediação imobiliária referidas nos n.ºs 1, 2 e 4 do artigo 2.º”. Na definição do artigo 24.º, “são designados por angariadores imobiliários os colaboradores das empresas de mediação imobiliária que coadjuvam os técnicos referidos no artigo anterior, executando tarefas necessárias à preparação e ao cumprimento dos contratos de mediação imobiliária celebrados pela mesma”.

Por seu turno aqueles números do artigo 2.º, que densifica as definições, dizem-nos que:

“1 - A atividade de mediação imobiliária consiste na procura, por parte das empresas, em nome dos seus clientes, de destinatários para a realização de negócios que visem a constituição ou aquisição de direitos reais sobre bens imóveis, bem como a permuta, o trespasse ou o arrendamento dos mesmos ou a cessão de posições em contratos que tenham por objeto bens imóveis.
2 - A atividade de mediação imobiliária consubstancia-se também no desenvolvimento das seguintes ações:
a) Prospeção e recolha de informações que visem encontrar os bens imóveis pretendidos pelos clientes;
b) Promoção dos bens imóveis sobre os quais os clientes pretendam realizar negócios jurídicos, designadamente através da sua divulgação ou publicitação, ou da realização de leilões. (…)
4 - As empresas de mediação imobiliária podem ainda prestar serviços que não estejam legalmente atribuídos em exclusivo a outras profissões, de obtenção de documentação e de informação necessários à concretização dos negócios objeto dos contratos de mediação imobiliária que celebrem”.

Como é bom de ver, a atividade levada a cabo pela autora na situação em litígio, integra-se de pleno no desenvolvimento das atividades constantes dos n.ºs 1, 2 e 4, do artigo 2.º, e mostra-se já provada nos factos 12 a 18. Inversamente, relativamente a este contrato, não se mostra provada qualquer atividade desenvolvida pela D.ª BB, salvo a conclusão de que foi ela quem angariou o imóvel. Tratando-se, porém, de um conceito jurídico, não tem respaldo nos factos e é mesmo infirmado pela prova documental.

Com efeito, do artigo 16.º, n.º 1, do mesmo diploma, que rege sobre o contrato de mediação imobiliária, resulta que este documento é obrigatoriamente reduzido a escrito, acrescentando o n.º 2, que do mesmo constam obrigatoriamente os seguintes elementos: (…) e) “A identificação do angariador imobiliário que, eventualmente, tenha colaborado na preparação do contrato”.

In casu, como dito, neste contrato do imóvel da Lagoa apenas consta o nome da autora, identificada como “a mediadora”, não constando ali identificada como angariadora BB.

Assim, atenta a prova produzida e vistos os factos à luz das normas referidas não estando identificada BB como angariadora no contrato de mediação, não pode concluir-se que tenha tido tal qualidade na economia do contrato de mediação em causa, já que tal menção constitui obrigatoriamente elemento do contrato.

Consequentemente, impõe-se a modificação do ponto 13. da matéria de facto provada, eliminando-se a referência à angariação do imóvel por BB, e ficando com o seguinte teor:

«13. A Autora acompanhou o processo respeitante a esse imóvel desde o início até à assinatura do respetivo contrato de compra e venda, embora o mesmo lhe tenha sido referenciado por BB»."


*3. [Comentário] O principal interesse do acórdão reside em mostrar, com bastante clareza, que nada impede que nos temas da prova se utilizem conceitos de direito. O que, em matéria probatória, é essencial é que, como o acórdão também demonstra, os factos provados sejam subsumíveis a esse conceito.

MTS