"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/01/2024

Jurisprudência 2023 (86)


Prova por declarações de parte;
valoração; "probabilidade prevalecente"*


1. O sumário de RP 27/3/2023 (108/17.3T8VCD-G.P3) é o seguinte:

I - A prova por declarações de parte, nos termos enunciados no artigo 466º do Código de Processo Civil, é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão, na certeza de que a livre apreciação é sempre condicionada pela razão, pela experiência e pelas circunstâncias e que, neste enquadramento, a declaração de parte que é favorável e que surge desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente, será normalmente insuficiente à prova de um facto essencial que constitua a causa de pedir ou em que se baseie a exceção invocada.

II - Portanto, será num contexto de suficiência probatória e não propriamente de valoração negativa e condicionada da prova que as declarações de parte devem ser analisadas.

III - A afirmação pelo tribunal de que um facto se considera provado não dependerá da íntima e subjetiva convicção do julgador, mas mais, e prevalentemente, da aplicação de critérios racionais que se devem pautar pelo standard da “probabilidade prevalecente”, isto é, num juízo de preponderância em que esse facto provado se apresente, fundadamente, como mais provável ter acontecido do que não ter acontecido.

IV - Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual.

V - A obrigação de alimentos é vista como expressão de um dever de solidariedade familiar, razão pela qual o fundamento dessa obrigação dos pais em relação aos filhos é não apenas a menoridade, mas também a carência económica destes depois de atingirem a maioridade e enquanto prosseguem os seus cursos universitários ou a sua formação técnico-profissional

VI - O direito a alimentos do filho maior apenas poderá cessar se a não ultimação da respetiva formação profissional se ficar a dever a culpa grave sua, o que deve aferir-se de acordo com um critério de razoabilidade.

VII - Este critério relaciona-se, pois, com a existência de um comportamento especialmente censurável por parte do filho maior que esteja na origem da não conclusão da sua formação profissional, de modo a que, nas concretas circunstâncias do caso, se revele injustificado exigir dos pais a continuação da contribuição alimentícia.

VIII - Compete ao devedor de alimentos o ónus da prova de que a falta de aproveitamento escolar de um filho maior se deveu a um comportamento censurável deste em termos de cumprimento das suas obrigações escolares.

IX - A nulidade de que a sentença padeça torna-se irrelevante nas situações em que esse vício formal não constitua o único fundamento da apelação e esta venha a ser julgada em sentido favorável ao recorrente que o arguiu.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Procedeu-se à audição do registo fonético das declarações prestadas por ambas as partes na audiência final e bem assim dos depoimentos das indicadas testemunhas, constatando-se que sobre a factualidade em crise apenas depuseram, com efetivo conhecimento, o requerido e a testemunha CC, já que as demais pessoas nada de concreto souberam adiantar sobre essa matéria.

Assim, o requerido declarou que, de há vários anos a esta parte, vem suportando os encargos referentes ao imóvel sito na Rua ..., onde reside a requerente juntamente com os dois filhos do casal. Adiantou ainda que tem diversos encargos mensais fixos, seja com a renda da casa onde habita (sita na Rua ...), seja com água, luz, eletricidade, gás, empregada de limpeza, seguros, prestação de um empréstimo contraído para aquisição de um veículo automóvel, alimentação, deslocações e bem assim a pensão de alimentos devida ao seu filho DD.

Por seu turno, a testemunha CC referiu que ainda durante o período de tempo em que residiu com o seu pai na Rua ... já este teria passado a residir regularmente com a namorada na habitação desta, somente se deslocando esporadicamente ao apartamento.

Já no concernente aos suportes documentais que o requerido juntou aos autos com o propósito de comprovar as despesas por si alegadas (cfr. documentos juntos com a contestação), os mesmos reportam-se apenas ao final do ano de 2019, sendo que não foram aportados aos autos quaisquer outros documentos que comprovem que o requerido continuou a incorrer nos alegados dispêndios, mormente com renda da casa, despesas com empréstimos e com empregada de limpeza.

Significa isto que, na essência, o único subsídio probatório tendente a demonstrar as despesas alegadas pelo requerido para além do referido período temporal se traduz nas declarações que prestou em julgamento.

Ora, como a este propósito tem sido recorrentemente sublinhado pela doutrina e jurisprudência pátrias [Cfr., por todos, na doutrina, FERNANDO PEREIRA RODRIGUES, in Os meios de prova em Processo Civil, 2ª edição, págs. 72 e seguintes, LEBRE DE FREITAS, in A ação declarativa comum – à luz do Código de Processo Civil de 2013, 2ª edição, pág. 278, REMÉDIO MARQUES, A aquisição e a valoração probatória de factos (des)favoráveis ao depoente ou à parte, in Julgar, nº 16, págs. 168 e seguintes e ELIZABETH FERNANDEZ, Nemo debet esse testis in propria causa ? Sobre a (in)coerência do sistema processual a este propósito, in Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, págs. 27 e seguintes; na jurisprudência, acórdão da Relação de Lisboa de 26.04.2017 (processo nº 18591/15.0T8SNT.l1-7) e acórdão desta Relação de 23.04.2018 (processo nº 482/17.1T8VNG.P1), acessíveis em www.dgsi.pt.], a valoração das declarações de parte há de ser feita com parcimónia, já que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação.

Com efeito, seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e, tão só, por ela admitidos.

Não obstante, o certo é que são um meio de prova legalmente admissível e pertinentemente adequado à prova dos factos que sejam da natureza que ele mesmo pressupõe (ou seja, nos termos do art. 466º, nº 1 in fine, factos em que as partes tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto).

Todavia, tais declarações são apreciadas livremente pelo tribunal (art. 466º, nº 3, 1ª parte) e, nessa apreciação, engloba-se a sua suficiência à demonstração do facto a provar.

A afirmação, perentória e inequívoca, de as declarações das partes não poderem fundar, de per si e só por si, um facto constitutivo do direito do depoente, não é correta, porquanto, apresentada sem qualquer outra explicação, não deixaria de violar, ela mesma, a liberdade valorativa que decorre do citado nº 3 do art. 466º.

Mas compreende-se que, tendencialmente, as declarações de parte, sem qualquer corroboração de outra prova, qualquer que ela seja, não apresentem, ainda assim, e sempre num juízo de liberdade de apreciação pelo tribunal, a suficiência bastante à demonstração positiva do facto pretendido provar. Portanto, será num contexto de suficiência probatória e não propriamente de valoração negativa e condicionada da prova que as declarações de parte devem ser analisadas.

Evidentemente que, perspetivando de modo inverso o problema, também a admissão da prova por declarações de parte num sentido interpretativo de onde decorresse, em qualquer circunstância, a prova dos factos favoráveis ao deferimento da sua pretensão (sejam eles factos constitutivos, modificativos, impedimentos ou extintivos, consoante a posição do declarante na lide) por mero efeito de declarações favoráveis nesse sentido, também não pode ser sufragada, na medida em que, num processo de partes como é o processo civil, deixaria sem possibilidade de defesa a parte contrária.

Como assim, a prova por declarações de parte, nos termos enunciados no art. 466º, é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão, na certeza de que a livre apreciação é sempre condicionada pela razão, pela experiência e pelas circunstâncias e que, neste enquadramento, a declaração de parte que é favorável e que surge desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie, será normalmente insuficiente à prova de um facto essencial que constitua a causa de pedir ou em que se baseie a exceção invocada.

Em resultado do exposto, inexistindo outros meios de prova que comprovem as despesas que o requerido alegadamente incorreu após o final de 2019, a questão que naturalmente se coloca é a de saber se se justifica a fixação da materialidade constante do ponto nº 16 nos moldes que dele constam.

Como deflui dos nºs 4 e 5 do já citado art. 607º, a afirmação pelo tribunal de que um facto se considera provado não dependerá da íntima e subjetiva convicção do julgador, mas mais, e prevalentemente, da aplicação de critérios racionais que, conforme se bem entendendo [Cfr., por todos, acórdão do STJ de 6.12.2011 (processo nº 1675/06.2TBPRD.P1.S1), acessível em www.dgsi.pt.], se devem pautar pelo standard da “probabilidade prevalecente”, isto é, num juízo de preponderância em que esse facto provado se apresente, fundadamente, como mais provável ter acontecido do que não ter acontecido.

Na esteira desse posicionamento, afigura-se-nos, in casu, não ter sido produzida prova consistente que permita a formulação de um juízo sobre a sindicada afirmação de facto nos termos vertidos no aludido ponto nº 16, justificando-se, por isso, a sua alteração de molde a que dele passe a constar que “O requerido suporta mensalmente os seguintes encargos fixos:

Habitação sita na Rua ...:
i. Prestação crédito habitação - 375,00
ii. Seguro Vida - 65,00
iii. Seguro Multi-riscos - 11.00
iv. Condomínios - 33,00
v. IMI - 24,00
vi. pensão de alimentos do filho DD – 275,25
vii. para além das despesas referidas nos pontos nºs 17, 18 e 19, suporta outras quantias, não concretamente apuradas, relativas a despesas pessoais com alimentação, limpeza, higiene e deslocações.
O requerido tem um vencimento líquido mensal de cerca de €3.150,00”.
 

*3. [Comentário] No acórdão aceita-se como standard probatório a "probabilidade prevalecente". Em referência ao ordenamento jurídico português, trata-se, salvo o devido respeito, de um equívoco, como já houve oportunidade de referir, com outras indicações, aqui.

MTS