"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/01/2024

Algumas conclusões sobre os "factos conclusivos"


1. O acórdão da RP 12/7/2023 (797/19.4T8VCD-E.P1) ocupa-se, uma vez mais, dos chamados "factos conclusivos". O acórdão constrói os "factos conclusivos" da seguinte maneira:

É matéria conclusiva toda aquela que não consiste na perceção de uma ocorrência da vida real, trate-se de um facto externo ou interno, mas antes constitui um juízo acerca de certa realidade factual, devendo distinguir-se dentro desta matéria conclusiva os juízos de facto periciais, dos juízos de facto comuns passíveis de serem emitidos por qualquer pessoa com base nos seus conhecimentos.

O problema não reside na construção dos "factos conclusivos", mas antes na censura que a RP faz à utilização dos "factos conclusivos" pela 1.ª instância. O acórdão fornece a oportunidade para, mais uma vez, reflectir sobre essa figura misteriosa que são os "factos conclusivos". As reflexões contêm uma crítica interna ao acórdão e uma crítica externa à negação dos "factos conclusivos" como algo inerente à aplicação do direito a casos concretos.


2. 
Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A recorrente pede nas conclusões das suas alegações a reapreciação dos pontos 14 e 15 dos factos provados, pugnando por que tal matéria seja julgada não provada.

Em síntese, a recorrente alicerça as suas pretensões no seguinte:

- quanto ao ponto 14 dos factos provados, refere que a sua primeira parte é conclusiva e, de todo o modo, nenhuma prova desta matéria foi produzida na audiência final;
 
- quanto ao ponto 15 dos factos provados, a recorrente afirma que a prova produzida na audiência final é de todo insuficiente para permitir a formação de uma convicção positiva quanto à realidade de tal factualidade.

Os pontos de facto cuja reapreciação é requerida pela recorrente têm o seguinte teor:

- A requerida está a prejudicar o crescimento e bem-estar da filha, causando ao progenitor tristeza e revolta (ponto 14 dos factos provados);

- A requerida diz ao requerente que ele só verá a filha “para o ano”, “quando ela quiser”, dizendo ao requerente, que o “regime de visitas caducou”, “que o seu mandatário diz que não há visitas agora”, “que não pode ver a filha”, “agora só para o ano”, provocando no requerente um sentimento de revolta e tristeza (ponto 15 dos factos provados)."
 
O acórdão considerou que a primeira parte da afirmação "A requerida está a prejudicar o crescimento e bem-estar da filha, causando ao progenitor tristeza e revolta" enuncia um "facto conclusivo". O que é interessante é que o mesmo acórdão, na reapreciação da matéria de facto e depois de alterar o facto provado no ponto 14, considera não conter nenhum "facto conclusivo" a afirmação de que "O requerente sente revolta e tristeza por não poder visitar sua filha CC".

Não se consegue vislumbrar a razão para a diferenciação. Ambas as afirmações possuem carácter valorativo e, por isso, necessariamente conclusivo e ambas são inferências (ou conclusões) retiradas de factos que foram provados em juízo.


3. O anátema que recai sobre os "factos conclusivos" esquece o carácter inferencial da prova. Dos factos que são provados em juízo o juiz vai inferir os factos que integram as previsões das regras jurídicas, ou seja, os factos jurídicos. Por exemplo: da circunstância de ter ficado demonstrado que o progenitor se ausentou da casa de morada de família e não mais procurou estabelecer contacto com o filho pode inferir-se que esse progenitor não se preocupa com "o desenvolvimento físico, intelectual e moral" do filho (art. 1885.º, n.º 1, CC).

Não há nenhum problema em que o tema da prova seja o de saber se a conduta do progenitor afectou ou está a afectar "o desenvolvimento físico, intelectual e moral" do filho, porque seria verdadeiramente estranho que o que se pretende saber e o que deve ser esclarecido através da produção da prova fosse exactamente o que não poderia ser enunciado como tema da prova. Dito isto, é claro que a testemunha não é chamada a pronunciar-se sobre como qualifica a conduta do progenitor, mas antes a referir factos das quais se possa inferir que o progenitor está a afectar "o desenvolvimento físico, intelectual e moral" do filho. Este é o tema da prova e o que o tribunal (não, evidentemente, a testemunha) deve dar como provado ou não provado.


4. a) Sem se admitir que dos factos provados possam ser inferidos os factos jurídicos nunca se pode chegar à aplicação do direito a um caso concreto.  A razão é simples: os chamados "factos conclusivos" não são mais que os factos que integram a previsão de uma regra jurídica, ou seja, os factos jurídicos; ora, se não for possível operar com os "factos conclusivos", está a negar-se a existência dos factos jurídicos e a impossibilitar o preenchimento da previsão de qualquer regra jurídica.

Dito de outro modo: o juiz do processo vai ter necessariamente de recorrer à figura dos "factos conclusivos", dado que em algum momento ele vai ter de verificar se a previsão de uma regra jurídica está preenchida ou não preenchida. Portanto, o que se impõe não é combater os "factos conclusivos", mas antes concluir que esses factos são inerentes à aplicação do direito a um caso concreto. Sem "factos conclusivos" não há a conclusão de nenhum processo.

b) Também quanto a este aspecto o acórdão da RP constitui um excelente exemplo. Aproveitando o facto referido no ponto 14 dos factos provados, suponha-se que uma regra jurídica tem a seguinte previsão: "Se algum dos progenitores estivar a prejudicar o crescimento e o bem-estar de algum filho. [...]". Torna-se claro que, sem o juiz do processo ter inferido dos factos provados que "A requerida está a prejudicar o crescimento e bem-estar da filha" (precisamente a afirmação que a RP qualificou como um inaceitável "facto conclusivo"), nunca se conseguiria aplicar aquela regra.

Isto demonstra que, sem recorrer aos "factos conclusivos", nunca se conseguirá preencher a previsão de uma regra jurídica. Por exemplo: para aplicar a regra que consta do art. 483.º, n.º 1, CC será indispensável recorrer ao "facto conclusivo" de que o lesante actuou com negligência; sem esse "facto conclusivo" -- isto é, sem se concluir, em função dos factos provados, que o lesante actuou com negligência -- nunca se poderá aplicar aquela regra.


5. Por fim, cabe referir que a figura dos "factos conclusivos" foi construída (com ou se razão, isso não interessa agora apurar) quando no processo civil português havia uma estrita separação entre a decisão da matéria de facto pelo tribunal colectivo e a decisão da causa pelo juiz do processo. Terminada esta separação e decidindo o juiz da causa numa única sentença tanto a matéria de facto, como a matéria de direito, é absolutamente irrelevante se esse juiz se pronuncia sobre o preenchimento da previsão de uma regra jurídica umas linhas "abaixo" ou "acima". A verdade é que, em algum momento da sentença, o juiz tem de verificar se os factos provados são subsumíveis à previsão de uma regra jurídica.

Excluir da realidade processual os "factos conclusivos" é contrariar a solução que, de forma adequada, foi finalmente consagrada no regime processual civil português: a de que não há uma estrita separação entre a matéria de facto e a matéria de direito. Afinal, qualquer facto provado em processo só tem relevância se for um facto jurídico, ou seja, um facto que o acórdão qualifica como "facto conclusivo". Em direito, não há senão factos jurídicos, pelo que de duas, uma: 

-- Do facto que é provado em processo não se pode inferir nenhum facto jurídico, porque esse facto não é subsumível à previsão de nenhuma regra jurídica; esse facto é um facto juridicamente irrelevante e não justifica a aplicação de nenhuma regra jurídica;
 
-- Do facto que é provado em processo pode inferir-se um facto jurídico, ou seja, um facto que é subsumível à previsão de uma regra jurídica; o tribunal pode aplicar esta regra, isto é, pode aplicar ao caso concreto a estatuição dessa regra.
 

6. Em suma: em vez de serem combatidos, os "factos conclusivos" devem ser vistos como algo inerente ao carácter inferencial da prova e ao preenchimento das previsões das regras jurídicas; a única coisa que se impõe fazer é substituir a equivocada expressão "factos conclusivos" pela correcta expressão "factos jurídicos".


MTS