"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/05/2016

Jurisprudência (360)




Apelação; impugnação da matéria de facto;
ónus do recorrente


1. O sumário de STJ 3/3/2016 (1190/10.0TBFLG.P1.S1) é o seguinte:
 

I - A reforma do Código de Processo Civil de 2013 não pretendeu alterar o sistema dos recursos cíveis, mas teve a preocupação de conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto através do reforço e ampliação dos poderes da Relação, sem que, porém, tenha trazido consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995 – art. 640.º, n.º 1, do NCPC (2013).

II - Embora o NCPC tenha deixado de exigir a formulação de quesitos da base instrutória, antes prevendo a enunciação de temas de prova, quanto ao julgamento de facto continua a determinar que o tribunal dê como provados ou não provados os factos relevantes para a decisão – art. 607.º, n.º 4, do NCPC.

III - Não se tendo o recorrente limitado, nas alegações apresentadas, a afirmar que o acidente ocorreu de forma diferente ou a dar uma nova versão genérica da matéria de facto, antes tendo feito afirmações concretas sobre como se desenrolaram os factos, em contradição com o conteúdo das respostas aos quesitos, mostra-se suficientemente cumprido o ónus previsto no art. 640.º, n.º 1, al. c), do NCPC que sobre si recaía.

IV - Em consequência, resultando das alegações qual a decisão que devia ter sido tomada relativamente aos diversos factos da causa, o recurso relativo à impugnação da decisão da matéria de facto não devia ter sido rejeitado.
 

2. Tem interesse conhecer esta parte da fundamentação do acórdão:
 

"[...] O Supremo Tribunal de Justiça tem sido repetidamente chamado a verificar se, ao impugnarem a decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto, os apelantes, cumpriram ou não as exigências feitas pela lei de processo como condição de conhecimento de tal impugnação; exigências essas decorrentes da necessidade de definição do objecto e de fundamentação do recurso, conformes com o modelo de impugnação da matéria de facto acolhido na lei portuguesa.

Recorda-se, assim, o que se escreveu já várias vezes e, por último, no acórdão de 1 de Outubro de 2015, www.dgsi.pt, proc. nº 6626/09.0TVLSB.L1.S1:

«7. O Supremo Tribunal de Justiça já tratou inúmeras vezes da questão central deste recurso [tratava-se então de saber se a recorrente cumprira ou não os ónus definidos pelos nºs 1 e 2 do artigo 640º do Código de Processo Civil, quando impugnou parte significativa da decisão sobre a matéria de facto, no recurso de apelação]. No recente acórdão de 9 de Julho de 2015,www.dgsi.pt, proc. nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, escreveu-se o seguinte, que aqui se reitera e, por comodidade, se transcreve:«Como este Supremo Tribunal tem repetidamente recordado (cfr. por exemplo o acórdão de 4 de Novembro de 2010,www.dgsi.pt, proc. nº 7006.05.1TBBRG.G1.S1 e jurisprudência nele citada, e ainda os acórdãos de 29 de Novembro de 2011,www.dgsi.pt, proc. nº 39/2002.E1.S1 ou de 30 de Junho de 2011, www.dgsi.pt, proc. 6450/05.9TBSXL.L1.S1), a impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, ainda que apenas se pretenda discutir parte da decisão.

Como se diz no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 (…), “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto,nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.”

Nesse sentido, impôs-se ao recorrente um “especial ónus de alegação”, no que respeita “à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”, em decorrência “dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º [actual 662º]) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito e julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.

Daí que se estabeleça”, continua o mesmo preâmbulo, “no [então] artigo 690º-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto. Tal ónus acrescido do recorrente justifica, por outro lado, o possível alargamento do prazo para elaboração e apresentação das alegações, consentido pelo nº 6 do [então] artigo 705”

O ónus especificamente criado foi pois justificado pela necessidade de impor ao recorrente uma “delimitação do objecto do recurso” e uma “fundamentação”, repete-se, tendo em conta o âmbito possível do recurso da decisão de facto, tal como foi concebido (cfr. acórdãos de 9 de Outubro de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 07B3011, ou de 18 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08B2998).

O artigo 690º- A do Código de Processo Civil foi posteriormente alterado pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto. Continuou a incumbir ao recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto proferida em primeira instância, para o que agora releva, “especificar (…) os concretos pontos de facto que [o recorrente] considera incorrectamente julgados” e “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”. Mas, se “os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas [tiverem] sido gravados”, passou a caber-lhe, “sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522ºC”.

O artigo 690º-A veio a ser revogado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que em sua substituição acrescentou ao Código o artigo 685º-B, mantendo os ónus referidos (indicação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados e dos concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que implicassem decisão diversa da proferida, se for possível, “indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição”.

A reforma do Código de Processo Civil de 2013 não pretendeu alterar o sistema dos recursos cíveis, aliás modificado significativamente pouco tempo antes, pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto; mas teve a preocupação de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto”, como se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII apresentada à Assembleia da República, de cuja aprovação veio a resultar o actual Código de Processo Civil, disponível em www.parlamento.pt .

Essa maior eficácia traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação, no que toca ao julgamento do recurso da decisão de facto; mas não trouxe consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995. Com efeito, o nº 1 do artigo 640º vigente, aplicável ao recurso de apelação que agora nos interessa:

– manteve a indicação obrigatória “dos concretos pontos de facto” que o recorrente “considera incorrectamente julgados” (al. a),

– manteve o ónus da especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida” (al. b),

– e veio exigir ao recorrente que especificasse “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (al. c), sob pena de rejeição do recurso de facto.

E à mesma rejeição imediata conduz a falta de indicação exacta “das passagens da gravação em que se funda” o recurso, se for o caso, sem prejuízo de poder optar pela apresentação da “transcrição dos excertos” relevantes.

Cumpridos os requisitos assim definidos para a delimitação e fundamentação da impugnação da decisão de facto, então caberá à Relação julgar o recurso, dispondo para o efeitos dos poderes reforçados do actual artigo 662º (correspondente ao anterior artigo 712º, com alterações).»"


3. O acórdão procede a uma análise aprofundada do ónus que recai sobre o recorrente que impugna a matéria de facto e toma a única orientação que é compatível com a letra e o espírito do regime legal estabelecido no art. 640.º, n.º 1, al. c), CPC. Se é certo que não basta que o recorrente se limite a afirmar que discorda da decisão proferida pela 1.ª instância, também é verdade que tem de se considerar que esse ónus se encontra devidamente cumprido se das alegações desse recorrente resultar o sentido em que, em sua opinião e em função da prova produzida, a matéria de facto impugnada deveria ter sido julgada pela 1.ª instância.

Saber se, num caso concreto, este critério se encontra preenchido é algo que deve ser feito com ponderação e razoabilidade, mas sempre sem exigir ao recorrente "formas únicas", dado que estas são incompatíveis com os actuais parâmetros do processo civil português. Estes mesmos parâmetros conduzem a que o tribunal deva partir do princípio de que as partes cumprem os ónus que lhes são impostos pelo CPC. Quaisquer dúvidas sobre as posições das partes devem ser resolvidas pelo tribunal através do seu dever de esclarecimento (cf. art. 7.º, n.º 2, CPC). 

MTS