"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/05/2016

Jurisprudência (338)


Defesa por excepção; facto essencial;
facto complementar; factos equipolentes


I. O sumário de STJ 11/2/2016 (427/11.2TBCNT.C1.S1) é o seguinte:

1. Constitui uma defesa por excepção a alegação por parte da seguradora de que a segurada, na ocasião em que subscreveu a proposta de adesão a um contrato de seguro de grupo do Ramo-Vida, omitiu a existência de uma doença de natureza incapacitante (espondilite anquilosante) que veio a ser posteriormente invocada pela segurada como sinistro.

2. Essa defesa por excepção – que, na ocasião, se reconduzia à invalidade do contrato nos termos do art. 429º do Cód. Com - não se confunde com outra excepção, integrada por outros factos essenciais, correspondentes à inexactidão de informações sobre o estado de saúde da segurada, factos que deveriam ter sido alegados também na contestação para serem sujeitos ao contraditório, antes de serem recolhidos para a decisão sobre a matéria de facto.

3. Sendo tais factos essenciais, e não meramente complementares dos que foram alegados na contestação, não podiam ser considerados pelo tribunal de 1ª instância aquando da prolação da sentença, tal como não podem ser considerados pela Relação em sede de apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto.

4. Fundando a seguradora a invalidade do contrato unicamente na omissão por parte da segurada de que sofria de uma doença incapacitante (
espondilite anquilosante) na data em que aderiu ao contrato de seguro de grupo do Ramo-Vida, não é suficiente para a exonerar da responsabilidade a prova de que, nessa ocasião, a segurada sofria de “lombalgia de ritmo mecânico”.

II. 1. Embora, atendendo à forma como foram recolhidas pela seguradora as informações relativas ao estado de saúde da autora, o STJ tenha decidido bem, não se pode concordar com o afirmado nos pontos 2 a 4 do sumário do acórdão.

Para procurar demonstrar o que está em causa nos pontos sumariados considere-se o seguinte exemplo: na acção em que pretende obter a indemnização dos danos sofridos na sua saúde, um trabalhador invoca que, atendendo às más condições de trabalho proporcionadas pela entidade patronal, ficou a sofrer da doença x; em juízo, não se prova que o trabalhador padecesse da doença x, mas antes da doença y, igualmente motivada pelas más condições de trabalho. Pergunta-se: a acção deve ser julgada improcedente (admitindo-se, eventualmente, uma nova acção na qual o trabalhador possa invocar a doença y)?

O exemplo refere-se aos chamados factos equipolentes, ou seja, a factos que, apesar de serem diferentes daqueles que foram alegados pela parte, conduzem, no entanto, à mesma consequência jurídica. A verdade é que -- voltando ao exemplo acima referido -- o trabalhador continua a ter direito a ser indemnizado se, em vez da doença x, padece realmente da doença y. Assim, o que se pode perguntar é se, tendo o trabalhador alegado a doença x, ainda assim pode vir a obter a procedência da acção se se provar a doença y.

A resposta a esta questão depende da resposta a uma outra: qual é a causa de pedir da acção proposta pelo trabalhador doente? Em concreto: essa causa de pedir são os danos sofridos pelo trabalhador na sua saúde ou são os danos causados pela doença x ou y

A melhor forma de procurar responder a esta questão talvez seja a de responder a esta outra: o réu demandado na acção proposta pelo trabalhador deve ser absolvido do pedido se na acção ficar demonstrado que esse trabalhador sofreu danos na sua saúde, mas que estes danos correspondem a uma doença diferente daquela que o trabalhador alegou? Mais em concreto: o réu deve ser absolvido do pedido se as dificuldades de locomoção de que o trabalhador se queixa e que ficaram provadas no processo se devem efectivamente, não a um problema muscular (tal como o trabalhador alegou), mas antes a um problema neurológico (tal como ficou provado na acção)? Supõe-se que a resposta a esta última pergunta só pode ser a seguinte: não se justifica absolver o réu do pedido se, em vez de se provar que o trabalhador padece de uma doença muscular, se provar que o mesmo está afectado por uma doença neurológica. 

Com base nesta conclusão, pode fazer-se o caminho inverso: se a não confirmação em juízo da doença invocada pelo trabalhador não justifica a improcedência da acção por ele proposta, então esta doença não pode integrar a causa de pedir dessa acção. Concluindo pela positiva: a causa de pedir da acção de indemnização proposta pelo trabalhador é constituída (entre outros elementos) pelos danos sofridos por este durante a sua actividade laboral, não pela doença x ou y que esse trabalhador invoque na acção.

Em suma: na linguagem do CPC, a doença x ou y deve ser entendida como um facto complementar da causa de pedir invocada pelo trabalhador (cf. art. 5.º, n.º 2, al. b), CPC), sujeita, por isso, ao regime dos factos complementares. 

2. Adquirida esta conclusão, pode voltar-se ao caso decidido pelo STJ. O que sucedeu foi o seguinte: a seguradora alegou que a autora omitiu, no momento de celebração do contrato de seguro, que sofria de espondilite anquilosante; a alegação não é verdadeira, porque esta doea só foi detectada depois da celebração do contrato de seguro; verdade é, porém, que, como se apurou no processo, a autora omitiu que, aquando da celebração do contrato, já padecia de lombalgia de ritmo mecânico. 

Estabelecendo um paralelismo (aliás, indiscutível) entre a causa de pedir do pedido formulado pelo autor e o fundamento da excepção alegada pelo réu, o que se pergunta é se o fundamento desta excepção é a omissão da comunicação pela segurada de que, no momento da celebração do contrato de seguro, padecia de uma doença ou é a omissão por essa segurada da comunicação de uma doença específica. Nos parâmetros que acima se referiram a propósito da causa de pedir, deve entender-se que o fundamento da excepção é a omissão da comunicação de qualquer doença, não a omissão da comunicação da doença x ou y.

Tendo o réu invocado a omissão da comunicação de uma certa doença pelo segurado e verificando-se que essa doença só foi detectada num momento posterior, poder-se-ia esperar que essa excepção viesse a ser julgada improcedente. Isto não sucede, no entanto, se se provar que o segurado omitiu a comunicação de uma doença diferente daquela a seguradora alegou.

É claro que há algo de aleatório nesta circunstância: se não se desse o acaso de, no momento de celebração do contrato, o segurado padecer de uma doença diferente daquela que a seguradora referiu, nunca a excepção poderia ser julgada procedente. Mas não há nessa circunstância nada de juridicamente inadmissível: o segurado tinha o dever de comunicar todas (repete-se: todas) as doenças de que padecia no momento da celebração do contrato de seguro; é suficiente, por isso, a omissão da informação de uma doença para que esse dever de comunicação tenha sido violado pelo segurado; é a violação deste dever de informação que constitui o fundamento da excepção invocada pelo seguradora; assim, para que esta excepção seja julgada procedente, basta que se prove que o segurado omitiu a comunicação de uma doença, mesmo que esta não coincida com aquela que foi referida pela seguradora. Para este efeito, a omissão da comunicação pelo seguradda doença y é um facto equipolente da omissão da comunicação da doença x, dado que esse segurado, se não tinha o dever de revelar esta doença x, tinha o dever de informar de que padecia da doença y. 

No acórdão em análise, o STJ entendeu que a errada identificação pela seguradora da doença de que a autora padecia no momento da celebração do contrato de seguro impede a procedência da excepção alegada por aquela demandada. Do que se afirmou, terá resultado que não se pode seguir esta orientação (embora, como acima se disse, se acompanhe o STJ na rejeição da excepção alegada pela seguradora). 

MTS