"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/05/2016

Jurisprudência (341)



Direito de retenção; qualidade de consumidor;
uniformização de jurisprudência; aplicação no tempo


1. O sumário de STJ 16/2/2016 (135/12.7TBMSF.G1.S1) é o seguinte:

I – A traditio é um pressuposto indispensável do direito de retenção e que se configura como o poder de facto sobre a coisa que o promitente-vendedor conferiu ao promitente-comprador, ou seja, como um conjunto de atos materiais ou simbólicos demonstrativos do controlo sobre a coisa.

II – Segundo o AUJ n.º 4/2014, a qualidade de consumidor refere-se ao utilizador final dos imóveis, que faz destes um uso próprio, ao qual é alheio o escopo de revenda, mas não implica que o prédio seja urbano e se destine a habitação permanente do promitente-comprador.

III - Não compete a este Supremo Tribunal sindicar o estatuto de consumidor atribuído pelo Tribunal da Relação aos autores, na sua dimensão factual, a não ser em situações excecionais de contradição lógica das presunções judiciais usadas pela Relação com a matéria de facto provada, o que não se verifica no caso concreto.

IV – Não se verifica a inconstitucionalidade dos artigos 755.º, n.º 1 al. f) e 759.º do Código Civil por violação dos princípios da confiança e da proporcionalidade previstos nos artigos 2.º e 18.º da CRP, pois o regime jurídico plasmado naquelas normas, segundo o qual o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, encontra justificação na tutela dos direitos dos particulares. Tem-se entendido que as entidades bancárias cujo crédito está garantido por hipoteca voluntária têm outros instrumentos de tutela da sua posição, o que não ocorre com o promitente-comprador, a parte mais fraca do contrato e com menos acesso à informação.
 


2. Regista-se a sensibilidade do STJ para a problemática da aplicação do tempo dos acórdãos de uniformização de jurisprudência, tal como resulta desta passagem da fundamentação do acórdão:
 
"[...] O acórdão uniformizador não é fonte de direito, nem tem força obrigatória geral como os antigos assentos, apesar de ser dotado de um particular poder de persuasão.

A aplicação imediata do AUJ n.º 4/2014, defendida pelo acórdão deste Supremo Tribunal, de 17-11-2015 [
1999/05.6TBFUN-I.L1S1], levanta, contudo, o problema dos processos pendentes, em que à data da sua instauração não estava ainda em vigor a restrição do direito de retenção ao promitente-comprador com a qualidade de consumidor.

Este acórdão de 17-11-2015, tal como o AUJ n.º 4/2014, foram proferidos no contexto de um processo de insolvência, para os casos em que o administrador da insolvência recusa o cumprimento do contrato promessa obrigacional em que houve traditio,enquanto o caso sub judice se refere a uma ação de condenação intentada pelo promitente-comprador contra os promitentes-vendedores e o credor hipotecário (Banco).

O conceito de consumidor, enquanto conceito restrito e funcional, utilizado no AUJ, surgiu no contexto específico do direito insolvencial.

Pode questionar-se, se o conceito de consumidor é aplicável fora do quadro do processo de insolvência e se funciona como requisito constitutivo e essencial do direito de retenção, cujo ónus de alegação e prova recairia sobre o promitente-comprador, pois o acórdão uniformizador definiu o seu âmbito de aplicação no domínio da recusa de cumprimento do contrato promessa pelo administrador da insolvência e não, em geral, para os casos em que o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa é titular de um crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º do CC.

O acórdão uniformizador não tem por consequência, necessariamente, que a interpretação restritiva do art. 755.º, n.º 1 al. f) do CC defendida pelo Banco, ora recorrente, nomeadamente a sua restrição a prédios urbanos destinados a habitação, tenha aplicação ao caso sub judice, desde logo porque a noção de consumidor não foi objeto da referida uniformização e porque o AUJ, embora tenha citado na sua fundamentação o preâmbulo do DL 386/86, de 11-11, quando definiu o conceito de consumidor na nota 10 não procedeu a semelhante restrição.".


Como já várias vezes se referiu neste Blog (cf,, por exemplo, Aplicação no tempo dos acórdãos de uniformização de jurisprudência), a problemática da aplicação do tempo dos acórdãos de uniformização de jurisprudência não pode ser ignorada pela jurisprudência. É salutar que o STJ a tenha referido no acórdão.

3. Em contrapartida, o se pode acompanhar a orientação do STJ segundo a qual: 

"Em relação ao conceito de consumidor, não compete a este Supremo Tribunal sindicar o estatuto de consumidor, enquanto conceito factual, atribuído pela Relação aos autores, a não ser em situações excecionais de contradição lógica das presunções judiciais usadas pela Relação com a matéria de facto provada, o que não se verifica no caso concreto."

O "conceito de consumidor" não é matéria de facto: a qualidade de consumidor só pode ser reconhecida ou não reconhecida em função de um critério jurídico (naturalmente aplicado à matéria de facto apurada nas instâncias). Portanto, o conceito de consumidor é um conceito de direito, como tal sindicável pelo STJ (cf. art. 46.º LOSJ; art. 682.º, n.º 1, CPC).

MTS