"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/05/2016

Jurisprudência (356)


Dupla conforme; cumulação de pedidos

1. O sumário de STJ 3/3/2016 (151/10.3TBCTB.C1.S1) é o seguinte:

Sendo a matéria da pretensão principal, formulada pelo autor/recorrente – visando o o decretamento da nulidade total de certo negócio jurídico - dirimida pelas instâncias de modo coincidente, quer em termos decisórios, quer em termos de fundamentação jurídica essencial, (considerando o negócio afectado por uma invalidade parcial, susceptível de redução), não é admissível, por via do obstáculo decorrente da dupla conforme, a interposição de revista normal para o STJ, tendo como objecto a rediscussão da matéria da nulidade do negócio e respectivo âmbito, apenas pela circunstância de as instâncias terem divergido quanto à solução a dar a pedido dependente ou consequencial da dita nulidade, referente à obrigação de restituição de frutos civis percebidos pelo interessado.

2. Tem interesse conhecer esta parte da fundamentação do acórdão:

[...] Na presente acção, formulam os AA., em termos essenciais ou principais, um pedido de declaração de nulidade de determinada doação, realizada ao R. por sua mãe, ulteriormente inabilitada por prodigalidade, invocando três fundamentos alternativos: a simulação do referido negócio, a falta de vontade e de consciência do acto por parte da doadora, decorrente da circunstância de esta, estando inteiramente dependente do R., não ter consciência e liberdade para tomar a decisão de fazer ou deixar de fazer o que quer que fosse – situação integradora da previsão normativa do art. 246º do CC – e ainda a invalidade decorrente de a doação ter incidido sobre bem alheio, uma vez que a doadora não podia dispor legitimamente do direito de propriedade plena sobre a totalidade do prédio doado, já que dele era contitular a herança indivisa aberta por óbito do respectivo cônjuge – não se verificando os pressupostos para o decretamento da redução de tal negócio jurídico, atenta nomeadamente a sua indivisibilidade.

Consequencialmente, para o caso de procedência da nulidade do acto, formularam pedidos dependentes ou acessórios decancelamento do registo, de restituição do prédio e dos frutos civis.

Sucede que a matéria daquela pretensão principal foi dirimida, em termos coincidentes, pelas instâncias, quer em termos decisórios, quer em termos de fundamentação jurídica essencial.

Na verdade, a 1ª instância e a Relação coincidiram inteiramente no juízo que formularam acerca da verificação ou inverificação daquelas três possíveis causas de nulidade da doação – entendendo que, perante a factualidade apurada, era claramente improcedente a nulidade assente em invocada simulação e falta de vontade da doadora; porém - no que respeita à ilegitimidade desta, por não ser a única proprietária do imóvel –apenas procedia em parte a referida nulidade, em consequência da aplicação do instituto da redução do negócio jurídico.

Onde não se verificou coincidência decisória ao nível das instâncias foi apenas no respeitante ao pedido consequencial de restituição dos frutos civis percebidos pelo R, já que a Relação:

- alterou, no exercício dos seus poderes sobre a matéria de facto, o quadro factual relevante para apreciação de tal questão, considerando provado que aquando da outorga na referida doação, o R. sabia que o prédio objecto dessa escritura não pertencia apenas a Maria Taciana, mas também à herança aberta por óbito do falecido marido desta (matéria factual que a sentença considerara não provada);

- consequencialmente – e embora continuasse a admitir sem reserva a redução do negócio jurídico nulo – julgou de maneira substancialmente diversa quanto à pretensão formulada pelos AA. de restituição dos frutos civis, entendendo que, como contitular do imóvel, apenas poderia caber ao R., conhecedor da ilegitimidade da doadora, metade desse valor, cabendo-lhe restituir a outra metade das rendas percebidas, o que determinou a parcial revogação da sentença, no que respeita a esta exacta pretensão consequencial.

Poderá, neste quadro factual e jurídico, considerar-se que ocorre dupla conformidade dos juízos decisórios das instâncias acerca da matéria da nulidade parcial da doação, objecto do pedido principal, formulado à cabeça pelos AA. na petição inicial?

Note-se que o requisito da dupla conforme tem de ser apreciado, não relativamente a cada uma das questões suscitadas pelo recorrente, mas referentemente ao objecto do processo, ou seja, às pretensões formuladas pelas partes – só se verificando tal obstáculo à normal recorribilidade quando o objecto do processo é dirimido da mesma forma e pelos mesmos fundamentos essenciais na 1ª instância e na Relação – sem embargo de se dever entender que , nos casos em que o objecto da causa é plúrimo, o requisito da dupla conforme deve ser avaliado em relação a cada um dos objectos autónomos e cindíveis do processo.

Veja-se, nomeadamente, o Ac. de 29/10/15, proferido por este Supremo no P. 258/09.0TBSCR.L1.S1, em que se considerou que num processo cujo objecto é integrado por várias pretensões que não devam ter-se por incindíveis o requisito da dupla conformidade carece de ser apreciado em relação a cada um de tais objectos ou pretensões dotadas de autonomia, podendo, por isso, o acesso ao STJ estar vedado quanto à matéria da pretensão que foi objecto de decisões estritamente coincidentes das instâncias, sem prejuízo de ser interposta e admitida revista quanto à matéria das pretensões que mereceram decisões diversificadas em 1ª e 2ª instâncias.

Daí que se venha entendendo, por exemplo, que, havendo reconvenção, a existência do requisito da dupla conformidade deverá, em princípio, ser analisada separadamente em relação aos segmentos decisórios que se pronunciaram sobre a acção e a reconvenção, salvo se ocorrer uma situação de incindibilidade entre a matéria de tais pretensões, por estar a decisão de ambas irremediavelmente ligada (AC. de 10/10/12, proferido pelo STJ no P. 29/09.3TBANCO FFFV.P1.S1)

E tal entendimento será naturalmente transponível para os casos em que existir pluralidade de pedidos formulados pelo A, meramente conexos ou dependentes de determinada factualidade essencial, podendo cindir-se ou destacar-se juridicamente a solução a dar a cada um deles.

No caso dos autos, como decorre das anteriores transcrições, o único aspecto divergente nas decisões proferidas reporta-se à matéria do pedido formulado acessoriamente pelos AA no ponto 5. da respectiva petição inicial, na parte em que pretendiam obter, na íntegra, os frutos civis proporcionados pelo prédio doado – e só quanto a este aspecto se mostrando revogada a decisão proferida em 1ª instância.

Ora, perante o funcionamento do requisito da dupla conforme, entendido em termos funcionalmente adequados, não parece justificável abrir uma via de recurso, em que se pretende controverter matéria essencial atinente à verificação e ao âmbito da nulidade do negócio, dirimida de modo coincidente pelas instâncias, apenas pela circunstância de não ter sido também coincidente o juízo decisório que incidiu, não sobre o tema fulcral da nulidade da doação, mas sobre a matéria de pedido consequencial e acessório, referente ao dever de restituição de frutos civis: na verdade, a matéria deste pedido – relativamente ao qual os AA. obtiveram, aliás, decisão mais favorável do que a que haviam alcançado em 1ª instância - é perfeitamente destacável ou cindível do tema da nulidade do negócio, em nada o podendo influenciar, já que se configura como aspecto meramente consequencial relativamente ao decretamento da nulidade, não podendo, consequentemente, em revista normal, rediscutir-se aquele tema central ou nuclear, só pela circunstância de não ter sido coincidente o juízo emitido pelas instâncias acerca do objecto de pretensão meramente consequencial e dependente daquela matéria fulcral da nulidade do negócio (e do âmbito, total ou parcial, desta).

Nestes termos e ao abrigo do disposto no art. 658º do CPC decide a conferência suscitar a questão prévia da recorribilidade quanto à matéria central do pedido de declaração de nulidade do negócio jurídico, objecto do pedido principal dos AA. , por força do disposto no art. 671º, nº 3, do CPC, determinando a audição das partes sobre tal questão."

3. Convém conhecer os seguintes dispositivos legais:

-- Art. 671.º. n.º 1, CPC: "Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos";

-- Art. 671.º, n.º 3, CPC ‐ "Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância [...]".

MTS