"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/05/2016

Jurisprudência (348)


Apelação; decisão sobre matéria de facto;
poderes da Relação


I. O sumário de STJ 11/2/2016 (907/13.5TBPTG.E1.S1) é o seguinte:

1. Impugnada a decisão da matéria de facto com base em meios de prova sujeitos à livre apreciação (in casu, documentos particulares, testemunhas ou presunções), com cumprimento dos requisitos previstos no art. 640º do NCPC, cumpre à Relação proceder à reapreciação desses meios de prova e reflectir na decisão da matéria de facto a convicção que formar, nos termos do art. 662º.

2. Integra violação de direito processual susceptível de constituir fundamento do recurso de revista, nos termos do art. 674º, nº 1, al. b), do NCPC, o acórdão em que a Relação se limita a tecer considerações de ordem genérica em torno das virtualidades de determinados princípios, como o da livre apreciação das provas, ou a enunciar as dificuldades inerentes à da tarefa de reapreciação dessas provas, para concluir pela manutenção da decisão da matéria de facto.

3. Não tendo sido efectivamente apreciada a impugnação da decisão da matéria de facto nem reapreciada a prova que foi indicada pelo recorrente relativamente aos pontos de facto impugnados, deve o processo ser remetido à Relação para o efeito.
 
II. Da fundamentação do acórdão consta, quanto ao controlo pela Relação da prova livremente apreciada pela 1.ª instância, a seguinte significativa e marcante passagem:

"7. Não estamos [no âmbito do art. 662.º CPC] perante normas que concedam à Relação poderes discricionários, do mesmo modo que nada legitima que sejam feitas do sistema legal – cujo sentido e objectivos se mantêm no mesmo rumo – interpretações “criativas” que acabem por torpedear os objectivos que o legislador procurou alcançar, designadamente o reforço da possibilidade de serem corrigidos erros decisórios, através de um efectivo 2º grau de jurisdição, desempenhando a Relação funções que verdadeiramente respeitam às instâncias quando se trata de recolher para os autos a matéria de facto que verdadeiramente corresponda à realidade subjacente ao litígio.

Nestas circunstâncias, verificado o cumprimento dos requisitos de ordem formal previstos no art. 640º do CPC – sem que seja assumida uma hipervalorização de tais requisitos para além do que o legislador se propôs –, compete à Relação apreciar a impugnação e modificar a decisão da matéria de facto se puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado.

Sendo este o contexto normativo, agora ainda mais claro, para negar a efectiva reponderação dos meios de prova sujeitos a livre apreciação, não pode mais (como já não podia antes) servir de justificação o facto de existirem elementos não verbalizados (gestos, hesitações, postura no depoimento, etc.) insusceptíveis de serem recolhidos pela gravação áudio ou vídeo, tal como não encontra justificação (como dantes já não encontrava também) a invocação da necessidade de respeitar o princípio da livre apreciação pelo qual o tribunal de 1ª instância se guiou ou as dificuldades de reapreciação de provas gravadas em face da falta de imediação.

Para que tal aconteça, é necessário que a Relação proceda a essa reapreciação, sem subterfúgios sustentados em meros argumentos de natureza genérica sobre os princípios da livre apreciação das provas ou do dispositivo ou sobre as maiores ou menores dificuldades relativamente à formação de uma convicção a partir dos meios de prova produzidos e indicados pelas partes.

É verdade que a gravação da prova e a sua reapreciação não garantem, em absoluto, as mesmas condições que se verificavam aquando da prolação da decisão da matéria de facto pelo tribunal de 1ª instância cujo juiz presidiu ao julgamento. Ademais, por muito esforço que tenha sido feito por este na exteriorização dos motivos em que assentou a sua decisão da matéria de facto, sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar ou de verbalizar.

No entanto, estes e outros aspectos não podem servir para justificar aprioristicamente a impossibilidade de a Relação proceder a uma efectiva reapreciação dos meios de prova, sobrepondo aos objectivos prosseguidos pelo legislador e sustentados em normas legais juízos de ordem abstracta em torno dos princípios da imediação e da livre apreciação ou invocando putativas dificuldades que rodeiam o desempenho dessa tarefa, com o objectivo de evitar o confronto directo com as gravações realizadas para efeitos da sua efectiva reponderação, dentro do circunstancialismo que rodeia o segundo grau de jurisdição na Relação no que respeita à matéria de facto. 

Afinal, estas e outras circunstâncias e as correspondentes dificuldades já eram conhecidas do legislador quando modelou o sistema em 1995/96 e, apesar disso, atribuiu à Relação a possibilidade de sindicar erros no julgamento da matéria de facto. Factores que iniludivelmente também eram conhecidos aquando da mais recente revisão de 2013 e que, contudo, não impediram a reafirmação da possibilidade (e da necessidade) de a Relação reapreciar verdadeira e efectivamente os meios de prova e extrair deles o resultado que livremente for firmado.

Sem embargo do confronto com as reais dificuldades inerentes a um tal juízo, nada legitima que sejam invocadas daquele modo para eliminar de raiz qualquer possibilidade de modificar a decisão da matéria de facto e para, mediante juízos meramente abstractos, esvaziar por completo o regime que o legislador instituiu.

As circunstâncias anteriormente enunciadas e outras que poderiam ser identificadas deverão seguramente ser ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando, porventura, a introdução de alterações quando não lhe seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados. Todavia, não autorizam que, com base em puras justificações lógico-formais, se recuse pura e simplesmente a actividade judicativa susceptível de permitir a modificação da decisão, culminando numa decisão vazia de conteúdo no que concerne à apreciação do mérito da impugnação que é o verdadeiro desiderato do recurso de apelação.

8. Como já anteriormente se disse, esta tem sido a tese adoptada pela doutrina em geral e que, além disso (ou mais do que isso), corresponde à jurisprudência reiterada expressa em numerosos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, em qualquer dos casos afirmando que o exercício dos poderes da Relação no que respeita à decisão da matéria de facto não pode quedar-se pela enunciação de argumentos marginais de pendor abstracto, impondo sempre a reapreciação dos meios de prova oralmente produzidos.

Neste contexto, em que tanto a evolução normativa como a jurisprudência deste Supremo aponta no mesmo sentido, é caso para perguntar:

- Que outras alterações legais serão necessárias para que seja definitivamente interiorizada a percepção de que o modelo vigente implica uma efectiva reapreciação dos meios de prova relativamente aos pontos de facto que foram objecto de impugnação?

Ou, de outra forma:

- Quantos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça serão ainda necessários para que se estabilize a ideia – que a lei sustenta de forma sólida – de que cumpre às Relações, em sede de matéria de facto, proceder à efectiva aplicação do regime que agora está concentrado no art. 662º do NCPC?

Perguntas retóricas que servem tão só para sustentar a conclusão pré-anunciada de que, no caso concreto, a Relação não cumpriu – como deveria ter cumprido – os deveres constantes do art. 662º do NCPC, impondo-se que seja retomada a apreciação do mérito da apelação no que respeita à impugnação da decisão da matéria de facto."
 
III. Dir-se-á que é dificil colocar maior ênfase na demonstração do que é actualmente exigido às Relações no controlo das decisões em matéria de facto. É claro que é preciso colocar a law in action em consonância com a law in books -- o que, aliás, na grande maioria dos casos, já está a acontecer.
 
 MTS