Oposição à execução; abuso de direito;
litigância de má fé
I. O sumário de STJ 8/10/2015 (370/13.0TBEPS-A.G1.S1) é o seguinte:
1. Os efeitos da invalidade do negócio jurídico por vício de forma podem ser excluídos pelo abuso de direito, em casos excepcionais, a ponderar casuisticamente, em que as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo.
2. Actua em violação grosseira do princípio da boa fé, na vertente da protecção da confiança, o Banco que dá à execução determinado crédito hipotecário, desconsiderando o anterior comportamento de um seu funcionário qualificado, gerente de agência bancária, que:
- pôs em circulação cópia de um documento autenticado que cabalmente autorizava a realização do distrate da hipoteca quanto à fracção adquirida, entregando-o à própria executada, após ter embolsado os cheques visados que era suposto titularem o montante do crédito hipotecário em dívida;
- garantiu cabalmente à executada que o distrate das hipotecas estava plenamente assegurado, ao assumir que tal declaração conteria um lapso material na identificação das fracções objecto da autorização de distrate de hipoteca , omitindo indevidamente a fracção que correspondia à garagem, comprometendo-se a proceder à respectiva correcção e a entregar o original da declaração devidamente rectificado (e só com este pretexto retendo na sua posse o referido original do documento autenticado de renúncia à hipoteca);
- tal comportamento concludente do representante do Banco criou justificada confiança na executada quanto à inverificação de qualquer obstáculo na efectivação do distrate de ambas as hipotecas – só por isso tendo realizado a escritura de alienação do imóvel.
3. Neste concreto circunstancialismo, fica vedada ao Banco exequente a invocabilidade do défice formal, decorrente de o executado não dispor do original do documento autenticado que titulava a renúncia à hipoteca e autorizava o respectivo distrate, não podendo consequentemente prosseguir os seus termos a respectiva execução hipotecária.
II. Por não constar do sumário deste importante acórdão -- que não pode deixar de concitar a plena adesão --, retira-se da sua fundamentação o seguinte trecho:
"[...] Insurge-se ainda o Banco exequente contra a respectiva condenação por litigância de má fé – cabendo a este STJ o exercício do duplo grau de jurisdição quanto a esta matéria ( art. 542º, nº 3, do CPC).
Como é evidente, o fundamento essencial de tal condenação assentou na negação cabal de que o gerente bancário da agência em causa tivesse estado presente aquando da realização da escritura de venda, assumindo no acto os comportamentos, atrás relatados, envolvendo reconhecimento expresso e categórico de que nenhum obstáculo se verificaria quanto ao distrate da hipoteca, apesar de não se ter imediatamente facultado à exequente a disponibilidade do original do título de renúncia à hipoteca – comportamentos que estiveram na génese da fundada confiança da executada.
Ora, ao contrário do sustentado pela entidade recorrente, tais comportamentos não se consubstanciam em factos meramente instrumentais, mas antes em factos essenciais para apurar o preenchimento da figura do abuso de direito.
Cabia, pois, à entidade exequente – sujeita , aliás, como instituição de crédito a especiais deveres deontológicos e de protecção da confiança dos cidadãos – perante a alegação da oponente e a circunstância de esta exibir uma cópia do título autenticado de renúncia à hipoteca, ter averiguado diligentemente, junto dos respectivos funcionários, da eventual presença destes no acto e dos possíveis compromissos que aí tivessem assumido perante a executada, explicando em termos consistentes como poderia deter a executada cópia do documento de distrate – em vez de se limitar a negar categoricamente estes factos, com vista a eximir-se de qualquer responsabilidade.
Como é sabido, a litigância de má fé não pressupõe necessariamente um comportamento doloso, bastando-se com a negligência grave da parte – considerando-se que a conduta processual do Banco, ao negar categoricamente a presença de qualquer funcionário ou representante aquando da celebração do negócio jurídico de transmissão do imóvel hipotecado, desvalorizando e deixando sem explicação plausível o facto de a executada exibir cópia de um documento autenticado, legitimador do distrate da hipoteca, é susceptível de integrar o referido conceito de negligência grave na alteração da verdade material.
E, nesta óptica, considera-se que não merece censura o decidido pela Relação, ao sancionar tal conduta processual no campo da litigância de má fé."
2. Actua em violação grosseira do princípio da boa fé, na vertente da protecção da confiança, o Banco que dá à execução determinado crédito hipotecário, desconsiderando o anterior comportamento de um seu funcionário qualificado, gerente de agência bancária, que:
- pôs em circulação cópia de um documento autenticado que cabalmente autorizava a realização do distrate da hipoteca quanto à fracção adquirida, entregando-o à própria executada, após ter embolsado os cheques visados que era suposto titularem o montante do crédito hipotecário em dívida;
- garantiu cabalmente à executada que o distrate das hipotecas estava plenamente assegurado, ao assumir que tal declaração conteria um lapso material na identificação das fracções objecto da autorização de distrate de hipoteca , omitindo indevidamente a fracção que correspondia à garagem, comprometendo-se a proceder à respectiva correcção e a entregar o original da declaração devidamente rectificado (e só com este pretexto retendo na sua posse o referido original do documento autenticado de renúncia à hipoteca);
- tal comportamento concludente do representante do Banco criou justificada confiança na executada quanto à inverificação de qualquer obstáculo na efectivação do distrate de ambas as hipotecas – só por isso tendo realizado a escritura de alienação do imóvel.
3. Neste concreto circunstancialismo, fica vedada ao Banco exequente a invocabilidade do défice formal, decorrente de o executado não dispor do original do documento autenticado que titulava a renúncia à hipoteca e autorizava o respectivo distrate, não podendo consequentemente prosseguir os seus termos a respectiva execução hipotecária.
II. Por não constar do sumário deste importante acórdão -- que não pode deixar de concitar a plena adesão --, retira-se da sua fundamentação o seguinte trecho:
"[...] Insurge-se ainda o Banco exequente contra a respectiva condenação por litigância de má fé – cabendo a este STJ o exercício do duplo grau de jurisdição quanto a esta matéria ( art. 542º, nº 3, do CPC).
Como é evidente, o fundamento essencial de tal condenação assentou na negação cabal de que o gerente bancário da agência em causa tivesse estado presente aquando da realização da escritura de venda, assumindo no acto os comportamentos, atrás relatados, envolvendo reconhecimento expresso e categórico de que nenhum obstáculo se verificaria quanto ao distrate da hipoteca, apesar de não se ter imediatamente facultado à exequente a disponibilidade do original do título de renúncia à hipoteca – comportamentos que estiveram na génese da fundada confiança da executada.
Ora, ao contrário do sustentado pela entidade recorrente, tais comportamentos não se consubstanciam em factos meramente instrumentais, mas antes em factos essenciais para apurar o preenchimento da figura do abuso de direito.
Cabia, pois, à entidade exequente – sujeita , aliás, como instituição de crédito a especiais deveres deontológicos e de protecção da confiança dos cidadãos – perante a alegação da oponente e a circunstância de esta exibir uma cópia do título autenticado de renúncia à hipoteca, ter averiguado diligentemente, junto dos respectivos funcionários, da eventual presença destes no acto e dos possíveis compromissos que aí tivessem assumido perante a executada, explicando em termos consistentes como poderia deter a executada cópia do documento de distrate – em vez de se limitar a negar categoricamente estes factos, com vista a eximir-se de qualquer responsabilidade.
Como é sabido, a litigância de má fé não pressupõe necessariamente um comportamento doloso, bastando-se com a negligência grave da parte – considerando-se que a conduta processual do Banco, ao negar categoricamente a presença de qualquer funcionário ou representante aquando da celebração do negócio jurídico de transmissão do imóvel hipotecado, desvalorizando e deixando sem explicação plausível o facto de a executada exibir cópia de um documento autenticado, legitimador do distrate da hipoteca, é susceptível de integrar o referido conceito de negligência grave na alteração da verdade material.
E, nesta óptica, considera-se que não merece censura o decidido pela Relação, ao sancionar tal conduta processual no campo da litigância de má fé."
III. Também esta parte do acórdão do STJ merece total aplauso. O exequente não só actuou, no plano substantivo, com abuso de direito, como ao mesmo tempo, no plano processual, omitiu factos relevantes para a decisão da causa e fez do processo um uso manifestamente reprovável e, por isso, como nenhuma destas condutas é possível sem, pelo menos, uma negligência grave, actuou como litigante de má fé (cf. art. 542.º, n.º 2, al. b) e d), CPC).
Esta posição do STJ mostra que nada obsta a que o abuso de direito substantivo também possa ser sancionado como litigância de má fé. Dito de outro modo: os factos relevantes para sancionar, no plano substantivo, o abuso de direito podem ser os mesmos que implicam, no plano processual, a sanção como litigância de má fé.
MTS