"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/11/2015

Jurisprudência (238)


Direito de retenção; consumidor


1. O sumário de RC 3/11/2015 (452/13.9TBCBR.C1) é o seguinte: 

I - A norma do art.755.º, nº 1, al. f), do C. Civil deve ser objecto de interpretação restritiva, no sentido de conferir o direito de retenção ao promitente-comprador “consumidor”.

II - A qualidade de consumidor assume um verdadeiro elemento constitutivo do direito de retenção.

III - A norma do art.759.º, n.º 2, do C. CIv. ao estatuir a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca registada anteriormente não enferma de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da igualdade, proporcionalidade e confiança.
 

2. Da fundamentação do acórdão consta o seguinte trecho:

"A alínea f) do n.º 1 do art.755.º do CC foi aditada pelo DL n.º 379/86 de 11/11, e contém a seguinte redacção: 

Gozam do direito de retenção “f) O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º. 

Do preâmbulo ao diploma legal consta a seguinte justificação, em termos de política legislativa:

«Tem de reconhecer-se que, na maioria dos casos, a entrega da coisa ao adquirente, apenas se verifica com o contrato definitivo. E, quando se produza antes, não há dúvida de que se cria legitimamente, ao beneficiário da promessa, uma confiança mais forte na estabilidade ou concretização do negócio. A boa fé sugere, portanto, que lhe corresponda um acréscimo de segurança.

O problema só levanta particulares motivos de reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, maxime tomados de instituições de crédito. Ora, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil). Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos. 

Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras. 

Persiste, em suma, o direito de retenção que funciona desde 1980. No entanto, corrigem-se inadvertências terminológicas e desloca-se essa norma para lugar adequado, incluindo-se entre os restantes casos de direito de retenção [artigo 755.º, n.º 1, alínea f)].».

Considerando o propósito de conciliar os interesses no confronto com os credores hipotecários, em face do regime do art. 759.º, n.º 2, CC, a norma do art. 755.º, n.º 1, f), do CC vem sendo objecto de interpretação restritiva, no sentido de atribuir o direito de retenção ao promitente-comprador “consumidor”.

Argumenta-se, em síntese, que a intenção legislativa foi a de proteger o promitente-comprador nos contratos-promessa sinalizados tendo havido a tradição da coisa, sendo “uma norma de tutela do consumidor”, como realçado no preâmbulo. Por conseguinte, a ratio legis é no sentido de que só beneficia o consumidor (cf. , por ex., Pestana de Vasconcelos, “Direito de Retenção, contrato promessa e insolvência”, Cadernos de Direito Privado n.º 33, pág. 3 e segs.).

Também Almeida Costa, autor do anteprojecto legislativo em que se baseou a reforma de 1986 (DL n.º 379/86 de 11/11) afirma que a consagração legal do direito de retenção aos promitentes compradores foi “uma deliberada opção legislativa, dentro de uma política de defesa do consumidor (…)” (Contrato Promessa – Uma síntese do seu regime actual, 5ª ed., pág. 68).

Esta interpretação foi reforçada com o AUJ do STJ de 20/3/2014 (DR 1ª Série de 19/5/2014) ao uniformizar a jurisprudência, nos seguintes termos:
«No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755 nº 1 alínea f) do Código Civil».

O acórdão, conforme fundamentação, parece ter acolhido a tese da “imputabilidade reflexa” e fez uma interpretação restritiva do art. 755.º, n.º 1, f), CC, limitando a sua aplicação aos consumidores.

A jurisprudência tem vindo a seguir esta interpretação restritiva, embora sobretudo na aplicação dos casos no âmbito do regime insolvencial, mas já defendida em todas as demais situações (cf., por ex., Ac STJ de 30/4/2015 (proc. n.º 1187/08), Ac STJ de 9/7/2015 (proc. n.º 1242/10), disponíveis em www dgsi.pt).

Sendo assim, a qualidade de consumidor assume um verdadeiro elemento constitutivo do direito de retenção.

A Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31/7 (rectificada pela Declaração de rectificação n.º 16/96, de 13/11), alterada pela Lei n.º 85/98, de 16/12, e pelo DL n.º 67/2003, de 8/4), que funciona como lei-quadro em sede de Direito do Consumidor, define o consumidor como «todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios».

O conceito operatório de consumidor postula, assim, a verificação de quatro elementos: o elemento subjectivo (“todo aquele”), o elemento objectivo («a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços e transmitidos direitos»), o elemento teleológico («destinados a uso não profissional») e o elemento relacional («pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios»).

Tem-se entendido que a LDC acolheu a noção estrita de consumidor, a mais relevante no Direito Comunitário, como a pessoa singular que adquire um bem ou serviço para uso não profissional, ou seja, uso privado, com vista à satisfação das necessidades pessoais ou familiares, ou seja, com um fim alheio ao âmbito da sua actividade profissional, sendo que a contraparte do consumidor será sempre pessoa singular ou colectiva que exerce, com carácter empresarial, uma actividade económica (cf., por ex., Jorge Carvalho, Os Contratos de Consumo, pág. 26 e segs., Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 3.ª ed., pág.44; Ac STJ de 20/10/2011 ( proc. n.º 1097/04), em www dgsi.pt)".


3. Sobre o problema da constitucionalidade do art. 759.º, n.º 2, CC é afirmado o seguinte: 

"A sentença recorrida discorreu sobre a questão e justificou a conformidade constitucional, com apoio da jurisprudência, sumariando os argumentos, adrede utilizados. 

Apelante insiste em que a norma do art. 759.º, n.º 2, do CC, ao estatuir a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca registada anteriormente, padece de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da igualdade, proporcionalidade e confiança, consagrados nos arts. 2.º, 18.º, n.º 2, e 20.º da CRP. 

Não se ignora que o regime da prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca tem sido objecto de vários estudos doutrinários, verificando-se que alguns deles apontam para uma interpretação restritiva ou correctiva do art. 759, n.º 2, CC, no sentido de excluir da sua órbita o direito especial de retenção do art. 755.º, nº 1, f), CC, passando pela querela da inconstitucionalidade e até mesmo a própria supressão do instituto (cf., por ex., Cláudia Madaleno, A Vulnerabilidade das Garantias Reais, pág.169 e segs.; Maria Isabel Campos, Da Hipoteca, pág. 225 e segs.). 

Adere-se, no entanto, à posição sufragada na sentença, para a qual se remete, sendo que a jurisprudência tanto do Tribunal Constitucional, como do Supremo é no sentido da não inconstitucionalidade. 

Assim, o TC nos acs n.º 374/2003, de 15/7/2003, n.º 594/2003 de 3/12/2003, n.º 356/2004, de 19/5/2004, n.º 698/2005, de 14/12/2005 (disponíveis no site do tribunal) rejeitou a inconstitucionalidade, nomeadamente pela violação dos princípios imputados. 

Também o STJ mantém orientação uniforme, ao estabelecer que a norma do art. 759.º, n.º 2, do CC interpretada no sentido de que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca anteriormente constituída e registada não padece de inconstitucionalidade material (arts. 2.º, 13.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 1, 165.º, b), CRP) (cf., por ex., Ac STJ de 29/1/2003 (proc. n.º 02B4480), de 9/7/2014 (proc. n.º 1206/11), de 9/7/2015 (proc. n.º 1242/10), em www dgsi.pt)."

MTS