"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/11/2015

Jurisprudência (239)



Responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional; 
revogação prévia da decisão


I. O sumário de RG 1/10/2015 (6982/13.5TBBRG.G1) é o seguinte:


1 - A competência para uma ação que tem por causa de pedir um facto ilícito imputado a um órgão da administração judiciária (funcionário judicial) no exercício da atividade estranha à função de julgar, pertence aos tribunais administrativos.

2 – Sendo a causa de pedir um facto ilícito imputado a um juiz no exercício da sua função jurisdicional (na sua função de julgar) serão competentes os tribunais judiciais, para o conhecimento de ação de responsabilidade civil extracontratual do Estado.

3 – O pedido de indemnização por responsabilidade civil decorrente do erro judiciário, deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente – artigo 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007 de 31/12.

4 – Tal norma não é inconstitucional.
 

II. Sobre o problema da constitucionalidade do art. 13.º, n.º 2, L 67/2007, é afirmado no acórdão o seguinte:

"O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicos foi aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, e estabelece, no seu artigo 13.º a responsabilidade civil decorrente do erro judiciário, acrescentando o seu n.º 2 que «o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente».
 
Tal revogação tem que ser vista como uma condição prévia da ação de indemnização, tendo o legislador estatuído neste preceito uma condição de procedência da ação para efetivação da responsabilidade por erro judiciário. A ausência de revogação da decisão danosa fundada num vício de julgamento qualificável como erro judiciário determina, só por si, a improcedência da ação de responsabilidade – cfr. Carlos Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas anotado, 2.ª edição, Coimbra Editora, anotação 8 ao artigo 13.º, pág. 274, nota 479 e anotação 9 ao artigo 13.º, pág. 276, nota 483 e Luís Fábrica, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2013, nota 3 ao artigo 13.º, pág. 357, ambos citados no recente Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2015, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 186, de 23 de setembro de 2015.
 
Assim sendo, estamos perante um pressuposto da ação indemnizatória, pressuposto esse que determina, só por si, a improcedência da ação, conduzindo à absolvição do réu do pedido, uma vez que impede o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor – artigo 576.º, n.º 3 do CPC.

Finalmente, cabe apreciar da constitucionalidade do referido artigo 13.º, n.º 2 da Lei 67/2007, de 31/12, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
 
Seguindo de perto o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2015, publicado no DR 2.ª Série, n.º 186, de 23/09/2015, que decidiu «Não julgar inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.º 2 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31/12, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente», diremos o seguinte:
 
- o artigo 22.º da CRP reconhece aos cidadãos o direito à reparação dos danos que lhes forem causados por ações ou omissões praticadas por titulares de órgãos do Estado e das demais entidades públicas, ou por seus funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções, reparação essa que deve ser integral e assumida solidariamente pela Administração, mas o mesmo artigo 22.º não estabelece os concretos mecanismos processuais através dos quais se há-de exercitar esse direito;
 
- reconhece-se uma larga margem de conformação ao legislador, quanto à definição dos pressupostos da responsabilidade do Estado, cabendo-lhe densificar os pressupostos da obrigação de indemnizar, não podendo, porém, restringir arbitrária ou desproporcionadamente o direito fundamental à reparação dos danos consagrado no artigo 22.º da CRP;
 
- sabendo que a efetivação da responsabilidade por erro judiciário implica o reexercício da função jurisdicional relativamente à mesma questão de direito ou de facto, constituirá sempre condição necessária da procedência de uma eventual ação de indemnização, a verificação de que a pretensa decisão danosa incorreu num erro de direito, verificação essa que obriga a uma nova apreciação da questão de direito;
 
- ora, o instrumento para superar e corrigir a incorreção de decisões judiciais, tem de ser o recurso (e reclamação);
 
- é na própria natureza da função jurisdicional e no modo como o respetivo exercício se encontra estruturado – o sistema de recursos e a hierarquia dos tribunais – que se pode encontrar justificação para uma limitação como a estatuída no n.º 2 do artigo 13.º da Lei 67/2007;
 
- o que está em causa é a racionalidade sistémica e a coerência institucional: uma decisão judicial definitiva sobre uma dada questão, não deve poder ser desconsiderada por outra decisão judicial, uma vez que inexiste qualquer critério jurídico-positivo para fazer prevalecer a segunda sobre a primeira; menos ainda se poderá admitir que a decisão judicial definitiva sobre uma determinada questão adotada por um tribunal superior possa vir a ser desconsiderada pela decisão de um tribunal hierarquicamente inferior;
 
- a segurança jurídica, associada às decisões judiciais transitadas em julgado, e a autoridade das decisões dos tribunais superiores, inerente à estrutura hierarquizada do sistema judiciário, constituem bens constitucionais reconhecidos.
 
Desta pequena súmula do Acórdão do T. Constitucional a que nos vimos referindo (que pode ser aprofundada pela sua integral leitura) resulta que a mencionada solução legal «limita-se a estabelecer que o reexercício da função jurisdicional coenvolvido na reapreciação da decisão judicial danosa se faça com respeito pelas competências e hierarquia próprias do sistema judiciário e de acordo com o seu específico modo de funcionamento: o reconhecimento do erro judiciário implica uma revogação da decisão danosa pelo órgão jurisdicional competente no quadro de um recurso ou de uma reclamação. Ao fazê-lo, o artigo 13.º, n.º 2 do RCEEP não está a interferir com qualquer âmbito de proteção constitucionalmente pré-definido»."

III. Sobre esta orientação da RG importa deixar três apontamentos:

-- É discutível que a prévia revogação da decisão danosa seja uma condição de procedência da acção de indemnização contra o Estado e que a ausência dessa revogação determine a improcedência dessa acção; melhor é qualificar essa prévia revogação como um pressuposto processual: perante a falta dessa revogação, a acção deve ser considerada inadmissível;

-- Discutível é também, apesar da posição do TC, a constitucionalidade da exigência da prévia revogação da decisão danosa, nomeadamente quando esta decisão provém de um tribunal que, no caso concreto, decide sem possibilidade de recurso ordinário; dado que, nesta situação também não é admissível nenhum recurso extraordinário, cabe perguntar se, com base na garantia do acesso aos tribunais para tutela de direitos e interesses (cf. art. 20.º, n.º 1, CRP), uma interpretação do disposto no art. 13.º, n.º 2, L 67/2007 conforme à Constituição não impõe, sempre que se verifique a impossibilidade da impugnação da decisão danosa através de recurso, a admissibilidade de uma acção destinada a revogar essa decisão (ficando por analisar a possibilidade de cumular, num único processo, aquele pedido de revogação com o pedido de indemnização);

-- Sobre a problemática relativa ao disposto no art. 13.º, n.º 2, L 67/2007, após TJ 9/9/2015 (C-160/14), cf. Responsabilidade civil do Estado por erro judiciário; consequências de TJ 9/9/2015 (C‑160/14).

MTS