"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/03/2016

Jurisprudência (297)


Apreciação da prova; acção condenatória; ónus da prova;
acção de apreciação negativa; ónus da prova


1. O sumário de RP 11/1/2016 (554/09.6TVPRT.P1) é o seguinte:

I - Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.

II - A relação de administração assume natureza contratual, mesmo nos casos em que, por imposição legal ou estatutária, a escolha dos titulares da gestão ou de algum deles não é feita pelo colectivo dos sócios.

III - A acção destinada a obter a indemnização a que um gerente destituído se julga com direito invocando a inexistência de justa causa, é uma acção condenatória que comporta uma apreciação negativa acerca dessa inexistência, pelo que, face ao disposto no artigo 343º do Código Civil, compete à sociedade a invocação e prova dos factos que fundamentam o afastamento compulsivo do gerente.

IV - É em concreto, e objectivamente, que se afere se a conduta imputada ao gerente constitui motivo de destituição com justa causa, isto é, se o facto ou situação imputados prejudicam de tal modo o interesse social que impõem a ruptura do vínculo, se afrontam a actuação de um gestor criterioso e ordenado, em benefício do interesse social e tendo em conta o interesse dos sócios.

V - A justa causa de destituição dos gerentes, administradores e directores não tem, necessariamente, que traduzir-se num comportamento culposo àqueles imputável, ainda que este também a possa determinar, aliás, por assim ser é que a incapacidade por impedimento físico justifica a destituição (artigos 257.º, nº 6 e 403.º, nº 4 do CSComerciais).

VI - A indemnização quando a destituição seja sem justa causa não é uma consequência automática desta; por isso se tem julgado que o direito de indemnização implica forçosamente a comprovada existência de danos, exigindo-se a demonstração de factos reveladores de que a situação real do lesado é, após a destituição, mais gravosa do que aquela em que se encontraria sem ela.

VII - O simples cômputo das remunerações e prémios que, não fora a destituição, seriam auferidas até ao termo do mandato do administrador, é insuficiente para caracterizar danos passíveis de serem objecto de indemnização devida.

2. a) O acórdão da RP chama a atenção pela afirmação de que "a acção destinada a obter a indemnização a que um gerente destituído se julga com direito, invocando a inexistência de justa causa, é uma acção condenatória que comporta uma apreciação negativa acerca dessa inexistência, pelo que, face ao disposto no artigo 343º do Código Civil, compete à sociedade a invocação e prova dos factos que fundamentam o afastamento compulsivo do gerente". Esta afirmação extrai de uma evidência uma conclusão mais do que discutível.

Antes de o procurar demonstrar, deixa-se uma observação terminológica. A RP fala de uma "apreciação negativa acerca [de uma] inexistência". Não era certamente de uma apreciação negativa de uma inexistência, mas antes de uma apreciação "positiva" de uma inexistência que se queria falar. O que se pretende obter numa acção de apreciação negativa é a declaração de que algo inexiste (no caso sub iudice, de que a inexiste qualquer causa para afastar o gerente), não de que algo "não-inexiste".

b) A evidência a que acima se aludiu é a de que o direito que se pretende fazer valer numa acção condenatória pode resultar da inexistência de um facto. Esta circunstância nada tem de incomum. Quando, por exemplo, o credor pede a condenação do réu no pagamento de uma dívida, a condenação do devedor demandado na satisfação do crédito do autor demandante pressupõe a inexistência do pagamento da dívida.

O que é muito discutível é a conclusão de que, pela circunstância de o direito do autor "comporta[r] uma apreciação negativa acerca d[a] inexistência" de um facto, então deva competir ao réu a alegação e a prova do facto contrário ao facto alegado pelo autor. Em concreto: se, como sucedeu no caso sub iudice, o autor alegar a falta de justa causa para o seu afastamento de funções, então caberia ao réu a alegação e a prova de que essa justa causa se verificou. Seguindo-se este critério, haveria que concluir que, numa vulgar acção condenatória destinada a obter a condenação do réu no cumprimento de uma prestação, incumbiria a este demandado a alegação e a prova do cumprimento da obrigação.

Note-se que não está em causa que, se o réu alegar o cumprimento da obrigação, lhe incumbe o respectivo ónus da prova. O que está em causa é que, como resulta do entendimento da RP no acórdão em análise, a acção condenatória deva proceder se o réu demandado não alegar e não provar o cumprimento da obrigação. Supõe-se que uma tal orientação nunca foi defendida na doutrina, nem nunca foi seguida na jurisprudência.

A construção da RP confunde o que o réu tem o ónus de impugnar -- que é a inexistência do cumprimento -- com aquilo que o réu não pode ter o ónus de alegar -- que é a existência do cumprimento. No fundo, a posição seguida pela RP transforma o ónus de impugnação do réu quanto aos factos alegados pelo autor num ónus de alegação pelo réu de "contra-factos" contrários aos factos alegados pelo autor. Noutros termos: em vez de considerar que, perante a afirmação pelo autor de uma "inexistência", o réu possa limitar-se a invocar a "não-inexistência", a RP exige que, perante a alegação daquela "inexistência", o réu tem o ónus de alegar a "existência".

Supõe-se que é indiscutível que o ónus de impugnação se basta com a negação da "inexistência", não exigindo, de modo nenhum, a alegação da "existência". É, aliás, por aqui que passa a distinção entre a defesa por impugnação e a dedução de uma reconvenção:

-- Na defesa por impugnação, o réu limita-se a negar o facto alegado pelo autor; portanto, "inexistência"/"não-inexistência";

-- Na dedução de uma reconvenção, o réu opõe ao facto alegado pelo autor um facto contrário; portanto, "inexistência"/"existência".

c) Do exposto terá resultado que a orientação seguida pela RP não pode ser aceite: onde a lei impõe ao réu apenas um ónus de impugnação, a RP impõe a essa parte um ónus de "contra-alegação"; onde a lei estabelece que, para a improcedência da causa, basta a não prova dos factos alegados pelo autor, a RP faz depender essa improcedência da prova pelo réu de um "contra-facto".

3. Independentemente do que acima se disse, importa acrescentar uma palavra sobre a aplicação pela RP da orientação (talvez) maioritária relativa à distribuição do ónus da prova nas acções de apreciação negativa. A RP interpreta o disposto no art. 343.º CC como atribuindo ao réu o ónus da prova dos factos constitutivos da justa causa do afastamento compulsivo do autor como gerente de uma sociedade comercial. É muito discutível que seja este o sentido do preceito, sob pena de um regresso às acções de jactância medievais (já Chiovenda, N. Dig. it. 2 (1937), 128, concluía que os antigos processi provocatori constituíam uma "forma anormal e imperfeita da função processual de accertamento").

Não está em causa que, numa acção de apreciação negativa, incumba ao réu a prova dos factos constitutivos: pressuposto disto é, no entanto, que o réu alegue naquela acção o direito que decorre desse facto constitutivo (o que não tem de fazer, se apenas quiser obter a improcedência da causa com fundamento na impugnação da inexistência alegada pelo autor). O objecto de uma acção apreciação negativa é a inexistência de um direito, não a existência desse direito. Isto basta para demonstrar que o réu não pode ser obrigado a discutir algo que está fora do objecto da acção de apreciação negativa

Se assim não entendesse, a acção de simples apreciação negativa seria uma vulgar acção de apreciação positiva, pois que o que nela se exigiria seria a prova de que o direito existe. A acção de apreciação negativa e a acção de apreciação positiva não se distinguiriam pelo seu objecto (em qualquer delas exigir-se-ia a alegação e prova da existência do direito), mas apenas pela parte que tem o ónus de alegar a existência do facto constitutivo: genericamente, pode dizer-se que, na acção de apreciação positiva, esse ónus pertence ao credor e que, na acção de apreciação negativa, o mesmo ónus pertence a esse mesmo credor, agora como demandado. Isto significa que, independentemente do tipo de acção, seria sempre sobre o credor que racaíria o ónus de alegar e provar o facto constitutivo, dado que este credor, para obstar à procedência da acção (de apreciação negativa) ou para obter a procedência da acção (de apreciação positiva), teria sempre de provar a existência do crédito.

Parece claro que esta solução nega qualquer autonomia prática e dogmática à acção de apreciação negativa. Esta acção só pode ser diferente de uma acção de apreciação positiva se, como qualquer outra acção, puder ser considerada procedente ou improcedente em função da inexistência que o autor alega e, caso haja impugnação, tem o ónus de provar. 

MTS