"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/03/2016

Jurisprudência (304)


Interpretação da lei processual; actividade do agente de execução;
desrespeito de prazo processual


I. O sumário de RE 21/1/2016 (623/14.0TBBJA-A.E1) é o seguinte:

1. A interpretação da lei processual, deve ser efetuada dentro de um quadro de razoabilidade, em que tenha por princípio estruturante, o direito constitucionalmente protegido, nomeadamente o acesso à tutela jurisdicional, que se consubstancia, entre o mais, no direito de acesso aos Tribunais para fazer valer os direitos legalmente protegidos (artigo 20º da Constituição).
 
2. Todos os operadores judiciários, devem ter em mente, que esse direito constitucionalmente reconhecido, só será levado a bom porto, se todos colaborarem com o fito de, relativamente a um determinado caso em concreto, tentarem obter a melhor solução que sirva o interesse da Justiça.
 
3. Nesse sentido, deve o Juiz do processo indagar, antes de proferir decisão que possa coartar o direito de qualquer das partes, por via de um excessivo apego ao formalismo processual, ou a prazos meramente balizadores da atividade processual e, por vezes, pouco adequados às necessidades de obter o desiderato processual que vimos replicando, os motivos do não cumprimento desses prazos, adequando o seu limite à necessidade do caso concreto.
 
4. O facto de o agente de execução não ter cumprido com o estabelecido no artigo 749º ou no nº 3 do artigo 855º do CPC, conforme se trate de processo executivo ordinário ou sumário, dentro do prazo estabelecido na lei, não preclude desde logo a possibilidade de aquele realizar as diligências prévias à penhora, devendo o Tribunal indagar da razão porque assim sucedeu.
 
5. Se houver motivo justificativo, nada impede o Tribunal de, considerando o fim último do processo, admitir a prática da diligência solicitada, mesmo para além do prazo definido pela lei, o que será necessariamente preferível a uma atividade processual que não produza o efeito necessário da cobrança da dívida exequenda, e conduza a interposição de novo processo para o efeito.


II. Da fundamentação do acórdão extrai-se a seguinte passagem:

"Entendeu o legislador atribuir ao Agente de Execução um papel central no Processo Executivo, incumbindo-o de uma panóplia de funções, nomeadamente, e no que interessa ao caso, desenvolver um conjunto de diligências prévias à penhora, nos termos do art.º 749º do NCPC, tendo em vista obter as necessárias informações sobre a existência de bens penhoráveis.

Concedendo-lhe a lei, para o efeito, o prazo de três meses, tanto no caso do Processo Ordinário (n.º1 do art.º 750º do NCPC), como no caso do Processo Sumário (n.º 4 do art.º 855º do NCPC), embora a contar de momentos processuais diversos, uma vez que a tramitação dos referidos tipos de processo executivo também é diversa.

A questão que se põe é a de saber, no caso do Agente de Execução não cumprir com o estabelecido no art.º 749º do NCPC ou no n.º3 do art.º 855º do NCPC, conforme se trate de Processo Executivo Ordinário ou Sumário, no prazo estabelecido na lei, se preclude a possibilidade do Agente de Execução proceder a essas diligências prévias, nomeadamente a que interessa ao presente processo, a da consulta de elementos protegidos pelo sigilo fiscal.

Para resolver a questão objecto do presente recurso, não devemos olvidar um princípio basilar do Estado de Direito Português, vazado nos art.º 20º da Constituição da República Portuguesa, o do direito ao acesso à tutela jurisdicional, que se consubstancia, entre o mais, no direito de acesso aos Tribunais para fazer valer os direitos legalmente protegidos.

Emanação desse princípio, o art.º 2º do NCPC reafirma-o, dando ênfase a uma vertente que muitas das vezes é esquecida, a do cidadão dever obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie a pretensão que deduziu em juízo, e de a fazer executar em tempo útil.

Do que decorre, a nosso ver, que a interpretação da lei processual, deve ser efectuada dentro de um quadro de razoabilidade, em que tenha por princípio estruturante, o direito constitucionalmente protegido, nas suas diversas vertentes.

Daí que, perante uma dúvida razoável sobre a interpretação de um dispositivo da lei processual, se deva deitar mão do referido princípio constitucional, equacionando a melhor interpretação que o faça prevalecer, no sentido de quem aceda à justiça veja o seu direito apreciado, em prazo razoável, mormente, no caso das acções executivas para pagamento de quantia certa, veja o seu crédito satisfeito, num prazo razoável.

E para que isso suceda, é preciso que o juiz do processo, enquanto intérprete da lei processual, deite mão a uma interpretação que faça convergir a actividade processual para obter o desiderato tão caro a qualquer exequente, o da satisfação do seu crédito.

Isto sem prejuízo de assegurar e fazer cumprir os direitos do executado.

Consequentemente, toda a aparente celeridade processual que o legislador quis impor ao processo executivo, parecendo estar mais interessado em arquivar processos, atrás de processos, por via da extinção de sucessivas instâncias abertas para obter a mesma pretensão executiva, em vez de pretender satisfazer, em prazo razoável, o direito do exequente a ser pago do seu crédito, merece-nos a maior cautela na interpretação dos atinentes normativos processuais, tendo em vista o cumprimento do princípio constitucional acima aludido.

Dito isto, resulta do normativo em apreço -- o n.º4 do art.º 855º do NCPC -- que, decorridos três meses sobre o início das diligências prévias à penhora, observa-se o disposto no n.º1 do art.º 750º do NCPC, ou seja, é notificado o exequente para especificar quais os bens que pretende ver penhorados na execução e cita-se o executado para o processo e para indicar bens à penhora, extinguindo-se a execução se ambos não indicarem bens no prazo de 10 dias a contar da notificação ou citação, respectivamente.

O que significaria, numa interpretação literal, que, não tendo o agente de execução obtido atempadamente autorização para solicitar informações protegidas pelo sigilo fiscal ou por outros regimes de confidencialidade, no aludido prazo de três meses, que ficaria vedado o direito do exequente, volvido esse prazo, a fazer valer o pagamento do seu crédito por via da penhora de bens do executado efectuada por via das informações que poderia obter por aquelas canais privilegiados e que não estão ao seu alcance senão por aquela via.

Dir-se-á que assim será -- em abono da tese da interpretação literal do preceito --, porque, sendo agente de execução designado pelo exequente, entre os registados em lista oficial (n.º1 do art.º 720º do NCPC), também pode ser substituído pelo mesmo exequente, se este verificar que o agente de execução que designou não está a cumprir atempadamente com as suas funções (n.º4 do mesmo preceito).

E por isso, a perda desse direito do exequente, seria o resultado da sua inépcia.

É aparentemente verdade, para quem olhe a questão de um ponto de vista meramente formal.

Apesar de não ser menos verdade, que o agente de execução não é um mero executor de ordens do exequente, tendo a autonomia bastante para efectuar por sua iniciativa e dentro do seu quadro de independência funcional, todas as tarefas de que a lei o incumbe.

Mas também é verdade, para quem conhece minimamente a máquina judiciária, a que os agentes de execução se vieram associar, que os processos têm o seu tempo, mesmo que sejam postos ao serviço dos agentes de execução os meios informáticos que hoje existem, tempo esse a que os agentes de execução se acomodaram, pois interagem com os outros operadores judiciários -- entre eles advogados, magistrados e funcionários --, habituados a tal tempo.

E o tempo da justiça, desde que seja razoável -- e todos sabemos que às vezes não o é -- é o necessário para resolver, a contento e de forma equilibrada, os interesses das partes, para o que celeridades processuais excessivas e muito ligadas a aspectos formais são perniciosas.

Acresce que, nos tempos que correm desde há alguns anos a esta parte, a grande afluência processual executiva gerada pela grave crise económica, veio trazer à actividade processual uma maior morosidade, nomeadamente, dado que é disso que estamos a falar, porque os agentes de execução ficaram assoberbados de trabalho.

Acréscimo de trabalho esse, que importa, necessariamente, também acréscimo de serviço dos Srs. Advogados, dos Srs. Magistrados e dos Srs. Funcionários, como aliás aconteceu no caso em apreço em que, a atentar no histórico que nos foi facultado, só foi aberta conclusão à Sr.ª Juíza do Processo em 17/09/2015, data em que proferiu o Despacho recorrido, sendo certo que o Requerimento do Sr. Agente de Execução é de 10/03/2015.

Aqui chegados, afigura-se-nos dizer que, todos os operadores judiciários, devem ter em mente, que o direito constitucionalmente reconhecido, acima expendido, só será levado a bom porto, se todos colaborarem com o fito de, relativamente a um determinado caso em concreto, tentarem obter a melhor solução que sirva o interesse da Justiça.

Nesse sentido, deve o Juiz do processo indagar, antes de proferir decisão que possa coartar o direito de qualquer das partes, por via de um excessivo apego ao formalismo processual, ou a prazos meramente balizadores da actividade processual e, por vezes, pouco adequados às necessidades de obter o desiderato processual que vimos replicando, os motivos do não cumprimento desses prazos, adequando o seu limite à necessidade do caso concreto."


III. A acrescentar ao que é referido -- com algum carácter pedagógico, pode dizer-se -- no acórdão da RE, importa apenas referir que nenhuma das partes pode ser prejudicada pelo desrespeito pelo agente de execução de qualquer prazo processual. Em particular, o agente de execução não é um representante do exequente (cf. art. 162.º, n.º 3, EOSAE), pelo que a inobservância de um prazo por aquele agente nunca pode implicar a preclusão da prática de um acto pelo exequente. 

É certo que o desrespeito do prazo pelo agente de execução pode implicar a responsabilidade disciplinar do agente. As consequências desta responsabilidade não podem reflectir-se, no entanto, na posição do exequente na execução. Uma vez praticado pelo agente de execução o facto gerador de responsabilidade disciplinar, o exequente não pode suportar nenhumas consequências desse mesmo facto e, em especial, não pode ainda ver piorada a sua situação para além dos inconvenientes que já lhe tenham sido impostos pelo desrespeito do prazo pelo agente de execução.

MTS