"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/03/2016

Sobre a oposição à execução com fundamento em contracrédito sobre o exequente (3)



1. Numa recente edição de uma obra dedicada ao processo executivo (Costa Ribeiro/S. Rebelo, A Ação Executiva Anotada e Comentada, 2.ª ed. (2016)) enceta-se um diálogo (p. 237 ss.) com um post publicado neste Blog sobre a dedução da compensação nos embargos de executado (Sobre a oposição à execução com fundamento em contracrédito sobre o exequente (2)). A qualidade e a utilidade da obra merecem a continuação do diálogo.

2. O art. 729.º, al. h), CPC estabelece que, fundando-se a execução em sentença, a oposição pode fundamentar-se em contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos. Os Autores da obra acima referida defendem estas duas posições:

-- Nos embargos de executado, "não deve ser admitida a invocação da compensação como fundamento de oposição à execução sem que o executado esteja munido de um título com força executiva" (p. 239); esta mesma orientação tem sido seguida por jurisprudência recente (RC 24/2/2015 (91832/12.3YIPRT-A.C1); RL 7/5/2015 (7520-13.5TBOER-A.L1-8));

-- Nos embargos de executado, só pode ser invocado um contracrédito que seja superveniente ao encerramento da discussão em 1.ª instância (p. 239 s.).

Importa ponderar estas soluções.

3. Não pode deixar de causar alguma estranheza a exigência de que o contracrédito conste de um título executivo, atendendo a que a finalidade da invocação do contracrédito é a oposição à execução, e não a execução do contracrédito. O título executivo atribui a exequibilidade extrínseca a uma pretensão e constitui uma condição da acção executiva. O título executivo só se compreende em função da possibilidade da satisfação coactiva de uma pretensão e para permitir esta satisfação. Sendo assim, não estando em causa a satisfação coactiva do contracrédito, não é justificada a exigência de que o mesmo conste de um título executivo.

Os Autores argumentam com a necessidade de evitar que seja retardado o pagamento do crédito exequendo. O argumento é apelativo, mas há que referir que, seguindo essa mesma orientação, então todas as causas de extinção do crédito exequendo deveriam constar não só de documento (para satisfazer a -- aliás, muito discutível -- exigência do art. 729.º, al. g), CPC), mas, além disso, de documento com valor de título executivo. Por exemplo: de acordo com a orientação defendida pelos aludidos Autores e pela jurisprudência  acima citada, a novação invocada pelo executado em embargos também deveria constar de um título executivo, porque o reconhecimento judicial dessa novação naqueles embargos é igualmente susceptível de retardar a satisfação do crédito exequendo. 

Quer dizer: a exigência de que o contracrédito conste de um título executivo não é harmónica no contexto do art 729.º, dado que exige para uma das formas de extinção da obrigação um requisito que não é exigido para nenhuma outra forma de extinção do crédito exequendo. Acresce que, se assim se entendesse, ter-se-ia que concluir que o legislador do nCPC teria restringido a possibilidade da invocação da compensação na oposição à execução, dado que -- como os próprios Autores reconhecem (p. 236) -- essa possibilidade já existia em função do disposto no art. 814.º, al. g), aCPC e este preceito só exigia que o contracrédito constasse de documento (e não de documento com valor de título executivo).

Em conclusão: na opinião dos Autores (e da jurisprudência acima citada) é hoje mais difícil provocar a compensação na acção executiva do que na vigência do aCPC. Se a exigência da prova documental que é feita pelo art. 729.º, al. g), CPC é discutível (possivelmente, o regime provém da época em que o processo executivo era considerado um processo sumário com cognição restrita pelo juiz: cf. Danz, Grundsätze der summarischen Prozesse, 2.ª ed. (1798), 49 ss. e 64), mais discutível é ainda a exigência de que o contracrédito que o executado pretende alegar deva constar de um título executivo. 

4. Os Autores aceitam a distinção que é feita no post entre a compensação extrajudicial (que é aquela que é anterior à acção executiva e que é invocada nesta como excepção peremptória) e a compensação judicial (que é aquela que é solicitada e obtida em juízo). Esta distinção ajuda a compreender a diferença entre as al. g) e h) do art. 729.º CPC:

-- A compensação extrajudicial é subsumível à al. g): o executado limita-se a afirmar que o crédito exequendo (já) não existe, porque se extinguiu por uma compensação que foi declarada e que operou antes da acção executiva;

-- A compensação judicial é subsumível à al. h): o executado alega que tem um contracrédito contra o exequente e pretende provocar na acção executiva a extinção do crédito exequendo.

Os Autores entendem que esta última possibilidade está excluída, sempre que o contracrédito pudesse ter sido invocado na acção declarativa em que se formou o título executivo relativamente ao crédito exequendo, dado que, quando o título executivo for uma sentença condenatória, a compensação judicial só é permitida através de contracréditos que sejam posteriores ao encerramento da discussão em 1.ª instância (p. 239).

Esta orientação suscita, no entanto, o seguinte problema: ela pressupõe que existe um ónus de alegação do contracrédito na acção declarativa em que foi reconhecido o crédito exequendo. Mais até: dado que os Autores defendem que, numa acção executiva baseada numa sentença condenatória, a compensação judicial só é admitida se o contracrédito for posterior ao encerramento da discussão em 1.ª instância, esses mesmos Autores atribuem ao réu do anterior processo declarativo o ónus de deduzir a compensação mesmo com base num contracrédito superveniente, isto é, com base num contracrédito que seja posterior ao momento de dedução da contestação (e da reconvenção: art. 266.º, n.º 2, al. c), e 583.º, n.º 1, CPC), mas anterior ao encerramento da discussão em 1.ª instância.

Mesmo sem discutir especificamente esta solução (que implicaria a atribuição de um ónus de dedução de uma reconvenção superveniente ao demandado no processo declarativo), a verdade é que a imposição de um ónus de alegação do contracrédito (mesmo não superveniente) nesse processo é contrariada por três razões retiradas do direito positivo:

-- Em primeiro lugar, nada no disposto no art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC (quanto à invocação da compensação por via de reconvenção) permite concluir que existe qualquer ónus de alegação desse contracrédito na acção pendente, sob pena de preclusão da alegação do contracrédito numa acção posterior; recorde-se que a regra é a de que a dedução de um pedido reconvencional é sempre uma faculdade do réu, nunca um ónus desta parte; aliás, compreende-se perfeitamente a inexistência desse ónus, dado que em parte alguma do sistema jurídico se encontra a regra de que o devedor tem de invocar o contracrédito contra um crédito específico do seu credor (isto é, contra o crédito x, mas já não contra o crédito y); assim, em termos de estratégia processual, é perfeitamente justificável que o titular do contracrédito o queira "reservar" para a execução, ou seja, que lhe seja permitido escolher a execução em que pretende alegar o contracrédito;

-- Em segundo lugar, resulta da comparação entre as al. g) e h) no art. 729.º CPC que, enquanto o facto extintivo ou modificativo que pode ser invocado com base na al. g), tem de ser posterior ao encerramento da discussão em 1.ª instância, esta exigência não é feita quanto à invocação do contracrédito; a proximidade da regulação dos regimes joga certamente no sentido de que a exigência que é feita na al. g) não pode ser estendida para a al. h); em reforço desta conclusão pode ainda argumentar-se com o disposto no art. 860.º, n.º 3, CPC; a oposição à execução com fundamento em benfeitorias não é admissível se estas já pudessem ter sido invocadas num anterior processo declarativo; pode assim afirmar-se que a lei define claramente os casos em que considera verificar-se a preclusão da alegação de um fundamento de oposição à execução, pelo que há que concluir que o regime legal aponta indiscutivelmente para que o contracrédito que pode ser invocado nos termos da al. h) não tem de ser posterior ao encerramento da discussão em 1.ª instância: a lei não o diz e o elemento sistemático da interpretação não só não corrobora essa exigência, como a contradiz;

-- Finalmente, o disposto no art. 732.º, n,º 5, CPC permite concluir que, se o executado não alegar o contracrédito através dos embargos de executado, nunca mais o pode alegar para provocar a extinção do crédito exequendo (ou uma outra parcela do mesmo crédito que seja alegada numa execução posterior); portanto, onde realmente o direito positivo consagra um ónus de invocar o contracrédito é na acção executiva (para maiores desenvolvimentos sobre este ponto, cf. o paper divulgado em Paper (172)).
 
Em suma: o direito positivo indicia uma construção contrária àquela que é defendida pelos referidos Autores, dado que, onde realmente há um ónus de concentração da defesa e um ónus de alegação do contracrédito, não é na acção declarativa, mas na acção executiva.

MTS