Petição inicial; correcção; ineptidão;
dever de esclarecimento
1. O sumário de RP 3/3/2016 (439/15.7T8VFR.P1) é o seguinte:
I - Deve ser admitido e deferido um pedido de retificação dos pedidos apresentados pelo autor na petição inicial pelo qual se invoca omissão da indicação da coordenada disjuntiva “ou” entre o pedido A e o pedido B, sendo aquele o de declaração de ineficácia em relação ao autor do ato de partilha e de reconhecimento do direito de praticar atos de conservação de garantia patrimonial autorizada por lei e executar determinados bens/direitos no património da segunda ré, na medida do necessário para obter a satisfação integral do crédito, e o pedido B, de declaração de nulidade do negócio titulado na aludida escritura de partilha, com fundamento em simulação absoluta.
II - Assim, deve ser admitida a correção da pretensão da ação a pedido do autor no sentido de que, deduzido um pedido próprio da impugnação pauliana e, em simultâneo, um pedido de nulidade por simulação de um determinado ato negocial, sem que se diga expressamente que são cumulativos, o segundo é alternativo/subsidiário do primeiro.
III - Nestas circunstâncias, a petição inicial não deve ser considerada inepta nos termos do art.º 186º, nºs 1 e 2, al. c), do Código de Processo Civil.
2. Na fundamentação do acórdão constam as seguintes passagens:
"[...] Não obstante as especialidades dos efeitos da nulidade por simulação que resultam dos art.ºs 242º e 243º do Código Civil, as suas consequências jurídicas são a não produção dos efeitos jurídicos associados, nos termos do art.º 286º e seg.s do Código Civil, designadamente o art.º 289º.
Temos assim que, enquanto o pedido típico da ação pauliana pressupõe a validade do ato e a respetiva procedência acarreta apenas a sua ineficácia relativamente ao credor impugnante, na medida do interesse deste, conforme atrás explanado, já a invocação da simulação e a sua procedência vão trazer, como consequência a sua nulidade e, por força desta, a não produção de efeitos jurídicos.
Manifestamente, não pode o autor numa ação de impugnação pauliana, simultaneamente, obter procedência com aquele fundamento e a declaração de nulidade do contrato com fundamento em simulação. O negócio impugnado, pressupondo-se válido para efeito da sua ineficácia relativamente ao impugnante, apenas na medida do interesse deste, não pode ser ao mesmo tempo declarado nulo, não produtor de qualquer efeito jurídico. É impossível a procedência simultânea daquelas duas pretensões. Por isso também não pode o autor deduzir tais pedidos conjuntamente, para que ambos procedam, por serem substancialmente ou intrinsecamente incompatíveis, ou seja, incompatíveis entre si, com efeitos inconciliáveis.
Resulta do art.º 186º, nº 2, al. c), que a petição inicial é inepta “quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”. Sendo inepta a petição, é nulo todo o processo (nº 1).
Em todo o caso, o autor pode formular pedidos subsidiários. Pode apresentar ao tribunal um pedido para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior (art.º 554º, nº 1). A oposição entre os dois pedidos não impede que sejam deduzidos subsidiariamente (nº 2 do mesmo artigo).
Quer isto significar que nada obstava a que na ação aqui em causa o A. deduzisse os dois pedidos que efetivamente deduziu: um deles típico da ação de impugnação pauliana, visando a declaração de ineficácia em relação a ele do ato de partilha referido no texto da petição inicial; o outro de declaração de nulidade da partilha, próprio da simulação que também invocou[9].
Pese embora a questão não seja pacífica, temos entendido que o pedido de impugnação pauliana deve ser deduzido em primeiro lugar, por se mostrar ser a mais conforme aos requisitos do artigo 554º e suas conexões normativas. Como dissemos, a impugnação pauliana aproveita apenas ao credor requerente, com exclusão dos demais credores daquele devedor (art.º 616º, nºs 1 e 4, do Código Civil), podendo consequentemente representar uma posição vantagem para ele em relação à declaração de nulidade, que redunda, como é sabido, em benefício de todos os credores (art.ºs 289º, n.º 1 e 605.º, n.º 2).
Como assim, esta forma de disposição dos pedidos, da parte do autor da ação, não é habitualmente aleatória, antes se adequa ao modo próprio da sua dedução quando um (segundo) é subsidiário do outro (o primeiro).
Retomando o caso concreto, foi o que o A. fez: deduziu em primeiro lugar o pedido da impugnação pauliana e, em segundo lugar, o pedido da simulação contratual.
Mas, tê-lo-á feito de modo cumulado ou a título subsidiário?
Dispõe o art.º 555º, nº 1, que “pode o autor deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação”.
Os pedidos são incompatíveis quando o sejam os efeitos jurídicos derivados da procedência de cada um deles, ou quando o reconhecimento de um excluir a possibilidade de verificação dos restantes, sejam eles emergentes ou não da mesma causa de pedir.
Na fundamentação da petição inicial não há uma discriminação absoluta entre as duas causas de pedir, mas evidenciam-se claramente, por grupos, os artigos que se repostam a uma e a outra, havendo outros artigos que são necessariamente comuns a ambas. A matéria da simulação está descrita sob os artigos 40º a 83º, no que à matéria de facto diz respeito; a restante respeita sobretudo à impugnação pauliana.
Nem da fundamentação nem da formulação dos pedidos resulta expressa a ideia de subsidiariedade entre o primeiro e o segundo. Mas não podemos deixar de dizer que também não está expressa a vontade do A. de apresentar as causas de pedir e os respetivos pedidos com intenção de obter um resultado cumulativo: a procedência de ambos.
A conclusão de que os pedidos são cumulativos como que se presume pelo facto de o A. não ter apontado a relação de subsidiariedade que deve existir entre eles, como aconteceria se, na sua formulação, os tivesse separado pela coordenada disjuntiva “ou”, ou tivesse utilizado, expressamente, o advérbio “subsidiariamente”, a expressão “a título subsidiário”, “em alternativa” ou outra que indicasse a relação de subsidiariedade.
Contudo, manda a verdade que se diga que também não consta declaração que expresse a vontade do A. de que pretende os dois efeitos (incompatíveis) dos dois pedidos que deduziu. Não consta, por exemplo, a coordenada copulativa “e” entre os dois pedidos da ação.
Porquê concluir, sem mais e irremediavelmente, que o A. quis a procedência dos dois pedidos?
Foi o A. que, após as contestações dos RR. e sem que para tal tivesse sido alertado pela parte contrária ou pelo tribunal, veio, a fl.s 295 verso (em 20.4.2015), pedir a relevação do que considerou ser um erro de escrita e que entre as al.s a) e b) dos pedidos, se considere «intercalada a conjugação “ou”», com os argumentos que expôs assim:
«1- ao formular os pedidos, no final da petição inicial, o A. optou por fazê-lo, organizando-os pelas alíneas a) e b).
2- Porém, entre uma e outra alínea, por lapso, nenhuma expressão intercalou, sendo verdade que pretendia intercalar a conjugação “ou”.
3- Na verdade, era e é vontade do A. formular o pedido contido em b) como pedido alternativo, a ser apreciado e decidido no caso de sucumbência do pedido formulado em a).
4- Pelo lapso de escrita que se descreve, torna-se necessário vir esclarecer os autos para que não subsistam dúvidas acerca da real intenção e vontade do A. aquando da formulação dos pedidos.»
Vê-se, portanto, que o A. não quer a procedência dos dois pedidos. A sua vontade terá sido a de que, apenas na improcedência do pedido de impugnação pauliana, se apreciasse o pedido da simulação negocial; só que não o disse expressamente na petição inicial.
Por mera hipótese, se o A. nada tivesse dito e a ação prosseguisse para julgamento e subsequente decisão final com os pedidos tal como estão formulados na petição inicial, esta não teria que ser considera um peça imprestável, inútil ou condenada ao absoluto insucesso. Poderia então o tribunal decidir a ação em função dos factos que lograssem adesão de prova e, na procedência do pedido de impugnação pauliana, decidir do prejuízo que daí resultaria necessariamente para a apreciação do pedido deduzido, em acumulação, no segundo lugar (de simulação). Na improcedência do primeiro pedido, o tribunal conheceria do segundo.
Com ou sem procedência parcial da ação --- nunca poderia ser total, dos dois pedidos --- o tribunal não deixaria de conhecer do mérito da causa.
Então, porquê bloquear absolutamente a prossecução da ação quando ela não é uma peça imprestável, a falha existente não obsta a que dela se conheça de mérito e o A. pretende esclarecê-la, no sentido da subsidiariedade, em termos que os RR. muito bem compreendem e que são absolutamente compatíveis com a defesa já por eles desenvolvida nas respetivas contestações, até sem qualquer comprometimento do contraditório ou necessidade da sua renovação?
A situação é bem diferente de outras em que, definitivamente, há incompatibilidade entre os pedidos, como é o caso de ser pedido ao mesmo tempo, a condenação na realização da prestação e na omissão de a realizar, ou a resolução de um contrato e a condenação do réu no seu integral cumprimento. Há nestes casos uma clara contradição no objeto do processo (pedido individualizado pela causa de pedir) que impede a sua necessária identificação e gera claramente a nulidade do processo.
Ora, no exercício do dever de gestão processual, o juiz deve dirigir ativamente o processo, promovendo as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, garantindo a justa composição do litígio em prazo razoável (art.º 6º, nº 1). De igual modo, constitui dever elementar do processo civil o de colaboração entre as partes e entre estas e o tribunal, concorrendo para que se obtenha, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio, podendo o juiz, em qualquer altura, convidar alguma delas a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes (art.º 7º).
No despacho pré-saneador o juiz deve convidar as partes s suprir as irregularidades dos articulados, designadamente quando careçam de requisitos legais (art.º 590º, nº 2, al. b) e nº 3) ou a suprir insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (subsequente nº 4).
Não apenas os fundamentos da petição inicial, mas também o próprio pedido integra aquela peça e pode conter irregularidades, insuficiências e imprecisões que não o comprometam totalmente, mas que justifiquem o seu aperfeiçoamento nos termos das referidas disposições, para que o tribunal fique rigorosamente esclarecido sobre a pretensão e possa prosseguir para a decisão final com a segurança necessária, prevenindo o risco da não realização da justiça. Convidar a parte a corrigir o pedido nessas circunstâncias é um imperativo do interesse último do processo, da justa composição do litígio em tempo razoável.
Do art.º 186º, nºs 1 e 2, al. c), resulta que a petição inicial é inepta e o processo é todo nulo quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
Esta norma não é incompatível com a possibilidade de correção da petição inicial quando se justifique a correção de um lapso, um esclarecimento, a supressão de uma insuficiência ou de uma mera irregularidade.
Sabendo-se que o autor --- como vimos já --- pode deduzir na petição inicial, simultaneamente, um pedido de ineficácia de um determinado ato jurídico com base em impugnação pauliana e um pedido de nulidade por simulação negocial, contanto que sejam subsidiários um do outro, na dúvida, nada obsta a que o tribunal solicite ao demandante o esclarecimento sobre se os deduz a título subsidiário e qual seja o pedido principal.
Por maioria de razão, deve admitir-se que o autor, por iniciativa própria, terminados os articulados da ação, venha aos autos esclarecer que, por lapso, nenhuma expressão intercalou entre o pedido a) e o pedido b), sendo sua vontade intercalar ali a coordenada disjuntiva “ou”.
O nº 2 do art.º 146º estabelece que “deve ainda o juiz admitir, a requerimento da parte o suprimento ou a correção de vícios ou omissões puramente formais de atos praticados, desde que a falta não deva imputar-se a dolo ou culpa grave e o suprimento ou a correção não implique prejuízo relevante para o regular andamento da causa”.
A omissão em que o A. incorreu na não indicação da natureza subsidiária do pedido b)[...] não pode considerar-se dolosa ou gravemente culposa, nem, só por si, conduzir ao fracasso absoluto da ação, sob pena de contrariar frontalmente os objetivos do processo, inutilizando-o totalmente em circunstância que impõem o seu aproveitamento.
O suprimento da omissão, não é mais do que uma correção na formalização dos pedidos, traz vantagem relevante para o processo, desde logo quanto à eficácia e à celeridade, dado o aproveitamento dos atos praticados, é simples e nem sequer justifica novo contraditório, pois que se mantêm, sem tirar nem por, os fundamentos da ação expostos na petição inicial e para os quais os RR. desenvolveram já a defesa nas respetivas contestações, sem sequer terem manifestado ali serem contra a cumulação dos pedidos."
3. A fundamentação do acórdão merece total concordância. Embora possa parecer que se trata de um pormenor, a verdade é que o autor não tinha apresentado os dois pedidos que formulou nem como conjuntos, nem como alternativos ou subsidiários. Nesta circunstância, incumbia ao tribunal de 1.ª instância, fazendo uso do seu dever de esclarecimento (cf. art. 7.º, n.º 2, CPC), ter procurado informar-se sobre a modalidade de cumulação de pedidos que o autor tinha apresentado na petição inicial.
Neste contexto legal, nunca o tribunal de 1.ª instância devia ter indeferido o requerimento de rectificação da petição inicial apresentado pelo autor e, na sequência disso, indeferido essa petição com fundamento numa cumulação substancialmente incompatível de pedidos (cf. art. 186.º, n.º 2, al. c), CPC). Num certo sentido, o tribunal de 1.ª instância violou o dever de esclarecimento duas vezes: ao não fazer uso desse dever e ao rejeitar o esclarecimento apresentado pelo autor.
MTS