"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/05/2018

Jurisprudência europeia (TJ) (164)


Reg. 2201/2003 – Âmbito de aplicação – Conceito de “direito de visita” – Artigo 1.°, n.° 2, alínea a), e artigo 2.°, pontos 7 e 10 – Direito de visita dos avós
 

TJ 31/5/2018 (C‑335/17, Valcheva/Babanarakis) decidiu o seguinte:

O conceito de «direito de visita», referido no artigo 1.°, n.° 2, alínea a), e no artigo 2.°, pontos 7 e 10, do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000, deve ser interpretado no sentido de que abrange o direito de visita dos avós aos netos.
 
 

Jurisprudência europeia (TJ) (163)


Reg. 1215/2012 — Competência jurisdicional — Competências especiais — Artigo 8.°, ponto 3 — Pedido reconvencional que deriva ou que não deriva do contrato ou do facto em que se baseia a acção principal


TJ 31/5/2018 (C‑306/17, Nothartová/Boldizsár) decidiu o seguinte:

O artigo 8.°, ponto 3, do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que se aplica, a título não exclusivo, numa situação em que o órgão jurisdicional competente para apreciar uma alegação de violação dos direitos de personalidade do demandante pelo facto de terem sido feitas fotografias e realizadas gravações de vídeo sem o seu conhecimento é chamado, pelo demandado, a pronunciar‑se sobre um pedido reconvencional de reparação a título de responsabilidade extracontratual do demandante, nomeadamente, pela restrição da sua criação intelectual objeto da ação principal, quando a análise deste pedido reconvencional exija que esse órgão jurisdicional aprecie a licitude ou não dos factos em que o demandante funda as suas próprias pretensões.


Informação (226)


Conferência da Haia

O projecto de Convenção sobre o reconhecimento e a execução de decisões estrangeiras pode ser consultado, nas versões inglesa e francesa, aqui e aqui.



Jurisprudência 2018 (27)


Reg. 2201/2003;
residência habitual da criança

1. O sumário de RC 27/2/2018 (1356/15.6T8FIG-A.C1) é o seguinte: 

I – O chamado Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho da União Europeia, de 27 Novembro de 2003, é relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental (e revogou o Regulamento (CE) nº 1347/2000).

II - Na consideração inicial (12) desse Regulamento diz-se que ‘
as regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado-Membro da residência habitual da criança, excepto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental’.

III - Daí que no artº 8º, nº 1 do citado Regulamento se estatua que ‘
os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal’.

IV – Da Consideração (12) citada resulta o chamado critério de proximidade (residência habitual da criança) -, que se afigura ser também o superior interesse do menor, dado que vive com o pai e em Espanha, o que não é posto em causa na presente ação.

V - No presente caso e conforme é alegado pela própria Requerente/recorrente, a menor B… reside em Espanha desde Agosto de 2017, portanto há já mais de 3 meses à data da propositura da presente ação – 27/11/2017 -, na companhia do pai, cuja responsabilidade parental exclusiva não é posta em causa na ação, face ao falecimento da mãe da menor em 21/08/2017, pelo que nos termos do artº 8º, nº 1 do Regulamento são internacionalmente competentes para conhecer desta ação os tribunais espanhóis."
 

2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreve-se o seguinte: 

"I

No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Juízo de Família e Menores da Figueira da Foz - Juiz 2, em 27/11/2017 M…, divorciada, reformada, residente na Rua …, instaurou a presente ação, com processo declarativo especial tutelar comum, contra I…, solteiro, residente na Avenida …, Córdova, Espanha, pedindo que seja reconhecido à Requerente o direito de visita ou de convívio com a sua neta B…, nascida a 20/04/2015, que se encontra a residir com o pai, em Espanha, uma vez que a mãe da menor, filha da requerente, de nome B…, faleceu em 21/08/2017, progenitora esta que até então tinha a guarda da menor, razão pela qual a menor passou, desde então, a residir com o pai, que tinha a filha consigo em Agosto de 2017, de férias de verão, ao abrigo da então vigente regulamentação dos poderes parentais.

Nos pedidos que formula pretende que lhe seja proporcionado o convívio com a neta uma semana por mês, em local a combinar de …, Córdova, Espanha; o convívio com a neta nos períodos de natal e da páscoa; o convívio com a neta no período das férias de verão; o convívio com a neta noutros períodos que a menor deseje e que o pai consinta; e que a Requerente possa ter contactos por via telefónica e por via ‘skype’ com a menor.

Refere o disposto no artº 1887º-A do C. Civil para o pedido de deferimento da sua pretensão.


II

Foi proferido despacho inicial a mandar os autos com ‘vista’ ao Digno Agente do M.º P.º junto do Tribunal ‘a quo’, dado que a menor reside com o pai, em Espanha, desde Agosto de 2017, portanto há mais de 3 meses à data da propositura da presente ação – fls. 16.

Foi então emitido parecer pelo M.ºP.º a requerer a declaração de incompetência internacional do Tribunal português – fls. 17. [...]
VI
O recurso interposto foi admitido em 1ª instância, como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, tendo como tal sido aceite nesta Relação, nada obstando ao conhecimento do seu objecto, o qual se resume à reapreciação do despacho recorrido, nele se tendo decidido que o Tribunal português é internacionalmente incompetente para conhecer das questões suscitadas pela Requerente/Recorrente na ação, competência essa que é nele atribuída aos Tribunais espanhóis.

Apreciando, diremos que a presente ação é uma ação declarativa com processo especial tutelar civil comum, com fundamento no disposto no artº 1887º-A do C.Civil (na redação da Lei nº 84/95, de 31/08), disposição esta que inibe os pais de injustificadamente privarem os filhos do convívio com os irmãos e com os ascendentes, ou seja, que prevê a possibilidade de ser fixado um regime de convívio ou de visitas dos menores com os seus irmãos e com os seus ascendentes, designadamente os avós.

Não está em causa o disposto nos artºs 1903º, nº 1, e 1904º, nº 2, ambos do C. Civil (na redação da Lei nº 137/2015, de 7/09), disposições segundo as quais em caso de morte de um dos progenitores de um menor caberá ao outro progenitor o exercício das responsabilidades parentais.

O que já antes resultava do disposto no anterior artº 1904º, na redação da Lei nº 61/2008, de 31/10.

Para se levar a cabo tal pretensão de fixação judicial desse tipo de convívio, a Lei nº 141/2015, de 8/09, aprovou o chamado Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), em cujos artºs 1º, 3º e 67º está prevista a chamada ação tutelar (cível) comum.

No que diz respeito à competência internacional dos Tribunais portugueses para conhecerem das questões suscitadas pela presente ação, que é a questão nuclear do presente recurso, temos de atender ao disposto no artº 59º do nCPC (aprovado pela Lei nº 41/2013, de 2606), disposição segundo a qual se impõe ter presente o que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, pois que não é caso de aplicação dos artºs 62º e 63º.

Assim, no caso presente temos de atender ao chamado Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho da União Europeia, de 27 Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental (e que revogou o Regulamento (CE) nº 1347/2000).

Na consideração inicial (12) desse Regulamento diz-se que ‘as regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado-Membro da residência habitual da criança, excepto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental’.

Daí que no artº 8º, nº 1 do citado Regulamento se estatua que ‘os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal’.

Ora, no presente caso e conforme é alegado pela própria Requerente/recorrente, a menor B… reside em Espanha desde Agosto de 2017, portanto há já mais de 3 meses à data da propositura da presente ação – 27/11/2017 -, na companhia do pai, cuja responsabilidade parental exclusiva não é posta em causa na ação, face ao falecimento da mãe da menor em 21/08/2017, pelo que nos termos do artº 8º, nº 1 do Regulamento são internacionalmente competentes para conhecer desta ação os tribunais espanhóis.

O que também resulta da Consideração (12) citada – critério de proximidade (residência habitual da criança) -, até porque se nos afigura ser também esse o superior interesse da menor, dado que vive com o pai e em Espanha, o que não é posto em causa na presente ação.

Afigura-se-nos que no caso presente não deve ter lugar a regra da ‘extensão da competência’ resultante do artº 12º, nº 3, al. a) do Regulamento, pelo simples facto da menor ser de nacionalidade portuguesa, pois que nada impede que também possa adquirir a nacionalidade espanhola, e porque as citadas regras de proximidade e do superior interesse da criança ditam que sejam os tribunais espanhóis os competentes internacionalmente para conhecer das questões da presente demanda, tanto mais que os pretendidos direitos de visita ou de convívio deverão em grande parte ter lugar em …, Córdova, pelo que são os Tribunais espanhóis os efetivamente melhor posicionados para aferirem da pretensão da Requerente e encetarem as diligências tidas por necessárias para esse efeito.

Compreende-se o interesse e a preocupação da Requerente/recorrente com a sua neta, o que cumpre louvar e é digno de todo o apreço e do maior respeito, tanto mais que terá sido ela quem ajudou a mãe da menor durante os ainda poucos meses de vida da menor, dela tendo tomado conta, donde os maiores laços afetivos criados pela Requerente em relação à neta, mas não se pode deixar de ter presente a atual situação da menor e a responsabilidade parental exclusiva do pai da menor, pelo que à data da propositura da presente ação a residência habitual da menor o o seu particular interesse aconselham que seja um Tribunal de Espanha a apreciar a pretensão da Requerente – regra de proximidade -, tanto mais que será em Córdova que deverão ter lugar as diligências de averiguação das atuais condições de habitabilidade e de relações familiares atuais da menor, com vista a melhor se apurar das reais condições de visita e de convívio da menor com a Requerente – o superior interesse da criança.

Donde se nos afigurar que quer o despacho recorrido quer as contra-alegações do Digno Agente do M.º P.º têm toda a razão de ser, não ficando a Requerente impedida de exercer a sua pretensão, como é seu desejo e propósito, mas cujo interesse na propositura da presente ação em Portugal não pode relevar face ao superior interesse da menor e face à sua real e atual situação, a viver com o pai em …, Córdova – critério de proximidade.

No apontado sentido, entre outros, designadamente os arestos do TJUE citados nas contra-alegações do M.ºP.º, podem ver-se os seguintes arestos:

- Ac. Rel. de Coimbra de 27/05/2008, Proc.º nº 668-F/2002.C1, in C.J. ano XXXIII, tomo III, pg. 17, também disponível em www.dgsi.pt/jtrc;

- Ac. Rel. Coimbra de 10/11/2009, Proc.º nº 870/09.7TBCTB.C1;

- Ac. Rel. Coimbra de 23/04/2013, Proc.º nº 1211/08.6TBAND-A.C1;

- Ac. Rel. Coimbra de 11/10/2017, Proc.º nº 6484/16.8T8VIS.C1;

- Ac. Rel. Lisboa de 12/07/2012, Proc.º nº 1327/12.4TBCSC.L1-2;

- Ac. Rel. Guimarães de 07/05/2013, Proc.º nº 257/10.9TBCBT-D.G1;

- Ac. Rel. Porto de 06/12/2016, Proc.º nº 199/11.0TBESP-B.P1;

- Ac. STJ de 28/01/2016, Proc.º nº 6987/13.6TBALM.L1.S1;

- Ac. STJ de 26/01/2017, Proc.º nº 1691/15.3T8CHV-A.G1.S1 [...].

O que se traduz, pois, na sequente confirmação do despacho recorrido e na improcedência do presente recurso, o que se decide."

[MTS]

30/05/2018

Jurisprudência estrangeira (30)


Interesse processual
prova ilícita


BGH 27/2/2018 (VI ZR 86/16) considerou, aplicando uma jurisprudência que afirma ser constante quanto à falta de interesse processual para a propositura de uma acção para defesa da honra contra afirmações realizadas num outro processo, que também falta o interesse processual na acção proposta para uma parte de uma acção contra a outra parte desta mesma acção, visando a condenação desta a reconhecer a utilização ilícita das fotos juntas nessa acção. O BGH afirma que a apreciação da ilicitude da prova deve ser exclusivamente realizada na acção na qual as fotos foram juntas.

[MTS]


Jurisprudência 2018 (26)


Audiência final; objecto; 
prescrição; decisão-surpresa
 

I. O sumário de RE 22/2/2018 (1048/14.3TBPLB.E1) é o seguinte:

1 - No despacho que designa realização da audiência, deve o juiz ter o cuidado e o rigor de indicar expressamente, o objeto da mesma, atendendo a que em abstrato, ela pode cumprir diversas finalidades, havendo, por isso, que definir em cada concreto processo quais as finalidades a considerar.

2 - Só com o conhecimento concreto do objeto da diligência, poderão as partes aquilatar da necessidade da respetiva presença no ato, dado que a sua falta ou dos seus mandatários não constitui motivo de adiamento, bem como prepararem a intervenção que entendem ser oportuna sobre o(s) tema(s) concreto(s) em discussão ou apreciação.

3 - Não se mostrando de todo adequado, nem cumpre a lei, o despacho que contenha apenas singelas referências genéricas ou que se limite a remeter para as alíneas do n.º 1 do artº 591º do CPC ou a reproduzi-las.

4 – O juiz ao ter previsto poder conhecer da exceção perentória da prescrição, no âmbito do saneador, impunha-se que no despacho que designou a audiência prévia tivesse feito referência expressa a tal finalidade, a fim de alertar designadamente o autor de modo a que este tivesse a possibilidade de poder exercer, nela, efetivamente, o contraditório sobre a problemática da prescrição, uma vez que tal faculdade não lhe tinha sido, ainda permitida, devido ao facto da ação não ser de simples apreciação negativa e não ter sido deduzida reconvenção. 

5 – Não o tendo feito e, em sede de saneador conhecido da exceção da prescrição no sentido da sua procedência, há que considerar violado o disposto no artº 3º nº 3 do CPC, constituindo o saneador-sentença uma a decisão-surpresa, impondo-se a sua anulação.
 
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O recorrente defende que o Julgador a quo ao não indicar, em concreto, o objeto da audiência prévia, designadamente que pretendia ouvir as partes, nomeadamente o autor, acerca da exceção da prescrição a fim de conhecer da mesma, violou o disposto no artº 591º n.º 2 do CPC e obstou a que não tivesse sido exercido o contraditório sobre tal problemática, atendendo a que não existindo réplica a posição do autor seria apresentada verbalmente na audiência prévia, se para o efeito tivesse sido expressamente alertado, o que não foi.

Dispõe o artº 591º n.º 2 do CPC que o despacho que marque a audiência prévia indica o seu objeto e finalidade.

“O teor deste despacho é muito importante. Na realidade a instituição desta audiência no processo civil resulta do reconhecimento das vantagens do diálogo proporcionado pelo contacto direto dos intervenientes no processo. Tal diálogo só será proveitoso se todos forem preparados para o mesmo”, o que implica que os mandatários da partes saibam o que efetivamente vai discutir-se devendo, por isso, “ser informados pelo despacho que marca a audiência, devendo o juiz “ter o cuidado e o rigor de indicar expressamente, o objeto da audiência prévia, tanto mais que, podendo em abstrato, a audiência prévia cumprir diversas finalidades há que definir em cada concreto processo quais as finalidades a considerar.” [v. João Correia, Paulo Pimenta, Sérgio Castanheira in Introdução ao Estudo e Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, 1ª edição, 72; Paulo Pimenta in Processo Civil Declarativo, 2014, 226],

Só, assim, poderão as partes aquilatar da necessidade da respetiva presença no ato, dado que a falta das partes ou dos seus mandatários não constitui motivo de adiamento (cfr n.º 3 do artº 591º do CPC), bem como prepararem a intervenção que entendem ser oportuna sobre o(s) tema(s) concreto(s) em discussão ou apreciação.

Não se mostrando de todo “adequado, nem cumpre a lei, o despacho que contenha singelas referências genéricas ou que se limite a remeter para as alíneas do n.º 1 do artº 591º ou a reproduzi-las.” [v. João Correia, Paulo Pimenta, Sérgio Castanheira in Introdução ao Estudo e Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, 1ª edição, 72; Paulo Pimenta in Processo Civil Declarativo, 2014, 226].

Pois, “com a indicação do objeto e finalidade da audiência prévia pretende-se evitar que as partes sejam surpreendidas com a discussão de finalidades não previamente fixadas” [v. Jorge A. Pais do Amaral in Direito Processual Civil, 13ª edição, 277; Igualmente no mesmo sentido e dando exemplo do teor do despacho que se entende ser o correto e adequado, v. J. P. Remédio Marques in A Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 2ª edição, 517; Também, F. Ferreira de Almeida in Direito Processual Civil, vol. I, 2ª edição, 473], pelo que o juiz “deve ser transparente quando designa a data para a audiência prévia” concretizar de modo claro e assertivo a indicação do seu objeto e as respetivas finalidades. [ v. Gabriela Cunha Rodrigues, O Novo Processo Civil (A Ação Declarativa Comum), CEJ, Setembro de 2013, 120].

No caso em apreço o dever de transparência não foi minimamente cumprido, pois o Julgador não concretizou o objeto e a finalidade da audiência, fazendo apenas simples alusão ao “caldeirão” consubstanciado na previsão legal, ao referir que a audiência prévia tem “as finalidades indicadas no n.º 1 do art. 591º do CPC”.

No fundo, do que transparece da ata da audiência prévia o Julgador limitou-se “ao abrigo do artº 591º n.º 1 al. d) do CPC” a conhecer da exceção perentória da prescrição, julgando-a procedente e consequentemente a absolver as rés do pedido, não aflorando nem submetendo à discussão quaisquer outras questões, que cabiam na previsão das alíneas do n.ºs 1 do artº 591º do CPC.

Ao ter previsto poder conhecer de tal exceção perentória, impunha-se que no despacho que designou a audiência prévia tivesse feito referência expressa a tal finalidade, ou seja, a de proferir despacho saneador com o fito de conhecer da invocada exceção perentória [artº 591º n.º 1 al. d) e 595º n.º 1 al. b), ambos do CPC], a fim de alertar designadamente o autor de modo a que este tivesse a possibilidade de poder exercer efetivamente o contraditório sobre a problemática da prescrição, uma vez que tal faculdade não lhe tinha sido, ainda permitida, já que a ação não é de simples apreciação negativa e não foi deduzida reconvenção, pelo que não é admissível, mestas circunstâncias o articulado réplica (cfr. artº 584º do CPC) só sendo permitido ao autor responder às exceções deduzidas na contestação em sede de audiência prévia (cfr. artº 3º n.º 4).

O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo em caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem (cfr. artº 3º n.º 3 do CPC).

Mesmo quando acontece, como no caso em apreço, não ser possível responder por escrito, tem de ser dada à parte a oportunidade de o fazer oralmente. 

Por isso, mais se impunha, a clarificação e concretização do objeto da diligência com vista assegurar o efetivo respeito pelo exercício do contraditório tendo em vista descartar a prolação de decisão surpresa.

O autor salienta que a absolvição das rés do pedido, por força da procedência da exceção da prescrição é uma verdadeira decisão surpresa, pois nada fazia esperar tal desiderato, muito embora a questão da prescrição tivesse sido levantada na contestação.

É certo que o mandatário do autor não compareceu à diligência e, por isso, não exerceu o contraditório. Mas este não exercício decorrente da sua não presença, só seria de revelar em seu desfavor se, à partida, lhe tivesse sido comunicado que no âmbito de audiência prévia se iria conhecer, em sede de despacho saneador, da exceção perentória da prescrição, de modo a avaliar as repercussões da sua não presença na “omissão” do exercício do contraditório, relativamente a exceção em questão.

Pois, “mesmo sendo a audiência convocada para o exercício do contraditório sobre determinada questão” (o que efetivamente não foi) “deve ser esta identificada no despacho” sob pena de constituir uma decisão surpresa, mesmo que porventura venha a ser dada a palavra aos mandatários das partes, no decorrer da mesma, “para querendo, se pronunciarem sobre o mérito da causa ou sobre a verificação dos pressupostos processuais, ao abrigo do artº 591º n.º 1 al. b) do CPC”. [v. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2013, vol. I, 489

A violação do contraditório inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do artº 195º nº 1 do CPC (a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influenciar a decisão da causa).

Temos para nós, que o despacho que designou a audiência prévia, está despido da formalidade que a lei prescreve, pois nele não se explicitou com clareza por insuficiente fundamentação o objeto e a finalidade da diligência, por forma a que as partes destinatárias, designadamente, o autor relativamente à questão da prescrição, pudesse exercitar conscientemente, no momento próprio, meios legais que tinha à disposição para fazer valer os fundamentos tendentes a pôr em causa o facto extintivo invocado pelas rés.

Tal irregularidade, analisada no contexto da tramitação dos presentes autos, teve influência no exame e decisão da causa, obstando a que o autor tivesse percecionado o que o tribunal pretendia apreciar e conhecer no âmbito da diligência designada e por esse motivo não tivesse providenciado pelo assegurar da presença do seu mandatário a fim de se poder respeitar o princípio do contraditório, já que o seu exercício, no caso, pressupunha ser realizado oralmente e no ato.

Assim, dada a importância do contraditório, é indiscutível que a sua inobservância no contexto em que se evidencia e decorrente de atuação do Tribunal a quo é suscetível de influir no exame ou decisão da causa, e estando a irregularidade coberta por decisão judicial nada obsta a que a mesma porque invocada em sede recurso nas respetivas alegações seja conhecida.

Nestes termos, tendo o saneador-sentença sido proferido em sede de audiência prévia, sem do facto ter sido dado conhecimento prévio às partes, designadamente ao autor, que a audiência de destinava, à prolação de despacho saneador para conhecimento da exceção perentória da prescrição, concluindo pela verificação desta, sem que o autor tivesse tido possibilidade de sobre tal matéria fazer valer a sua posição, violou-se o disposto no artº 3º nº 3 do CPC, constituindo o saneador-sentença uma a decisão-surpresa, pelo que se impõe a sua anulação, a fim de ser designada nova data para realização de audiência prévia devendo mencionar-se no despacho, expressamente, qual ou quais a(s) efetiva(s) finalidade(s) a que a mesma se destina, a fim de que qualquer das partes possa efetivamente, querendo, exercer o devido contraditório."
 
III. [Comentário] O vício da decisão está correctamente identificado. Discutível é, no entanto, a sua qualificação. Como já houve oportunidade de referir (clicar aqui), não é adequado qualificar como nulidade processual o vício que respeita ao conteúdo da decisão, ou seja, um vício respeitante à decisão como acto (e não como trâmite de um procedimento). O vício de que padece a decisão do tribunal de 1.ª instância é efectivamente o de excesso de pronúncia (cf. art. 615,º, n.º 1, al. d), CPC).
 
MTS
 

29/05/2018

Bibliografia (674)


-- Alessandra Silveira / Joana Abreu / Pedro Froufe / Sophie Perez, União de direito para além do direito da União – as garantias de independência judicial no acórdão Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Julgar Online, Maio de 2018



Bibliografia (Índices de revistas) (89)

Jurisprudência (841)

 
Seguro automóvel; anulabilidade;
inoponiblidade a terceiros
 

1. O sumário de STJ 30/11/2017 (425/12.9TBVFR.S1) é o seguinte:
 
I. Segundo doutrina e jurisprudência hoje pacíficas, o artigo 429.º do Código Comercial, aplicável ao caso dos autos, estatui o regime da anulabilidade, no âmbito do contrato de seguro, em caso de declarações inexatas, por parte do tomador do seguro, que possam influir sobre a existência ou condições do contrato. Tal anulabilidade não é oponível aos terceiros lesados em acidente de viação.

II. Por sua vez, o artigo 428.º, § 1.º, do mesmo Código, estatui a regime da nulidade para o caso em que o tomador do seguro ou aquele em nome de quem o seguro é feito não tem interesse na coisa segurada.

III. Todavia, a jurisprudência tem vindo a divergir quanto à oponibilidade dessa nulidade aos terceiros lesados em acidente de viação, nomeadamente num contexto, como o do caso presente, de falsas declarações do tomador de seguro respeitante à indicação do proprietário do veículo.

IV. Assim, segundo certa orientação, aquela nulidade seria oponível aos referidos lesados, enquanto que outra orientação considera que o indicado § 1.º do artigo 428.º deve ser tido por derrogado por efeito do preceituado no artigo 2.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31/12, correspondente ao atual artigo 6.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, porquanto, nos termos deste normativo, no âmbito do regime especial do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, é permitida a celebração do contrato de seguro por terceiro como modo de suprir a obrigação das pessoas a tal sujeitas.

V. Nessa linha, a situação prefigurada do § 1.º do artigo 428.º seria sancionada em sede de declarações inexatas na celebração do contrato de seguro com o regime da anulabilidade, nos termos do artigo 429.º do Código Comercial, sendo esta anulabilidade inoponível aos terceiros lesados.

VI. Sucede que o TJUE proferiu acórdão, em 20/07/2017, no processo de reenvio prejudicial C-287/16, com a seguinte teor dispositivo:
 
 «O artigo 3.º, n.º 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, e o artigo 2.º, n.º 1, da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tem por efeito que seja oponível aos terceiros lesados a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade essa que resulta de falsas declarações iniciais do tomador do seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo em causa ou do facto de que a pessoa por quem ou em nome de quem esse contrato de seguro é celebrado não tinha interesse económico na celebração do referido contrato.»

VII. O respeito devido ao efeito útil daquelas diretivas, na interpretação dada em sede de reenvio prejudicial pelo TJUE, impõe que se opte pela solução jurídica decorrente do direito nacional mais conforme com aquela interpretação,

VIII. Assim, tem-se por solução mais conforme a de que a situação prevista do § 1.º do artigo 428.º, mormente consubstanciada nos factos constantes dos pontos 1.22 a 1.28 da factualidade provada, em conjugação com o disposto no artigo 6.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, é sancionada, em sede de declarações inexatas na celebração do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, com o regime da anulabilidade nos termos do art.º 429.º do Código Comercial.

IX. Como tal, essa anulabilidade não é oponível aos terceiros lesados e seus herdeiros, nem ao FGA, na qualidade de sub-rogado no direito daqueles, nos termos do artigo 54.º, n.º 1, do mesmo diploma.
 
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"Relativamente à nulidade prevista no § 1.º do artigo 428.º do Código Comercial para os casos em que se verifique a falta de interesse económico do tomador do seguro, nomeadamente num contexto de falsas declarações deste quanto à indicação do proprietário, a nossa jurisprudência tem vindo a divergir.

Com efeito, uma certa orientação tem considerado que tal nulidade fundada na falta de interesse do tomador do seguro é oponível aos terceiros lesados.

Outra orientação tem enveredado pelo entendimento de que o prescrito no § 1.º do artigo 428.º do Código Comercial deve ser tido por derrogado por efeito do preceituado no artigo 2.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31/12, correspondente ao atual artigo 6.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 291/ 2007, de 21-08, porquanto, nos termos deste normativo, no âmbito do regime especial do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, é permitida a celebração do contrato de seguro por terceiro como modo de suprir a obrigação das pessoas sujeitas a tal.

Nessa linha, a situação prefigurada no § 1.º do artigo 428.º seria sancionada em sede de declarações inexatas na celebração do contrato de seguro com o regime da anulabilidade, sendo esta inoponível aos terceiros lesados.

Foi ante esta divergência jurisprudencial que, no âmbito da revista n.º 40/10.1TVPRT.P1.S1, em que era relatora a aqui 1.ª Adjunta, num caso similar aos dos presentes autos, se suscitou o reenvio prejudicial junto do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, nos seguintes ter-mos:

«O artigo 3º, nº 1, da Directiva 72/166/CEE, o artigo 2º, nº 1, da Directiva 84/5/CEE, e o artigo 1º, da Directiva 90/232/CEE, relativas à aproximação das legislações dos Estados-Membros, respeitantes ao seguro da responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, opõem-se a uma legislação nacional que comine com a nulidade absoluta o contrato de seguro, em consequência das falsas declarações sobre a propriedade do veículo automóvel, assim como sobre a identidade do seu condutor habitual, sendo o contrato celebrado por quem não tem interesse económico na circulação do veículo e estando subjacente o intuito fraudulento dos intervenientes (tomador, proprietário e condutor habitual) de obter a cobertura dos riscos de circulação, mediante: (i) a celebração de contrato que a seguradora não celebraria se conhecesse a identidade do tomador; (ii) o pagamento de um prémio inferior ao devido, em razão da idade do condutor habitual?»

Em resposta à questão prejudicial, aquele Tribunal de Justiça proferiu acórdão, em 20/07/2017, no processo C-287/16 [...], com a seguinte teor dispositivo:

«O artigo 3.º, n.º 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, e o artigo 2.º, n.º 1, da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tem por efeito que seja oponível aos terceiros lesados a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade essa que resulta de falsas declarações iniciais do tomador do seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo em causa ou do facto de que a pessoa por quem ou em nome de quem esse contrato de seguro é celebrado não tinha interesse económico na celebração do referido contrato.»

Ora, o respeito devido ao efeito útil daquelas diretivas, na interpretação dada em sede de reenvio prejudicial pelo TJUE, impõe que se opte pela solução jurídica decorrente do direito nacional mais conforme com a interpretação adotada naquela sede. 
 
Assim sendo, tem-se por solução mais conforme, e que aqui se acolhe, a de que a situação prevista do § 1.º do artigo 428.º, mormente consubstanciada nos factos constantes dos pontos 1.22 a 1.28 da factualidade provada, em conjugação com o disposto no artigo 6.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, é sancionada, em sede de declarações inexatas na celebração do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, com o regime da anulabilidade. Como tal esta anulabilidade não é oponível aos terceiros lesados e seus herdeiros, nem ao FGA, na qualidade de sub-rogado no direito daqueles, nos termos do artigo 54.º, n.º 1, do mesmo diploma.

Idêntica solução foi já adotada no recente acórdão do STJ, de 02/11/ 2017, proferido no acima indicado processo n.º 40/10.1TVPRT.P1.S1, relatado pela aqui 1.ª Adjunta e também subscrito pela ora 2.ª Adjunta, e que aguarda publicação.

Posto isto, verifica-se que as indemnizações satisfeitas pelo A. aos terceiros lesados respeitam a danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais daqueles, derivadas do acidente de viação em referência, imputável à condutora do veículo EX então objeto do contrato de seguro celebrado com a 1.ª R., não excluídas pelo artigo 14.º, n.º 1, e garantidas pelo FGA nos termos do art.º 49.º, n.º 1, alínea a), do Dec.-Lei n.º 291/2007. E incluem ainda o reembolso das demais despesas efetuadas pelo mesmo A., nos termos do art.º 54.º, n.º 1, do mesmo diploma. "
 
[MTS]